Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Editores não souberam onde cantou o galo

Todos já se cansaram de ouvir falar do caráter colonialista do Brasil, que se abaixa frente às demandas impostas pelas nações desenvolvidas, pelo que a globalização e o chamado neoliberalismo trouxeram ao mundo menos provido, às mudanças no caráter das atividades que geram muito dinheiro, das industriais, para as de tecnologia de informação e financistas (vide o último relato dos ‘homens mais ricos do mundo’ da Forbes, quando Bill Gates, há 15 anos, desbancou o sultão de Brunei e persiste na pole position). A submissão da chamada grande imprensa às determinações vindas especialmente de Washington também volta e meia são lembradas. Mas por vezes o absurdo chega a extravasar a quantidade de antipsicóticos disponíveis. Vamos aos fatos.


Entre 17 e 18 de dezembro, vários sítios da internet, como UOL, Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e a compilação automática do Google News em português passaram a divulgar uma informação que chegou por algumas horas a ser manchete do sítio BBC Brasil e foi citado no Wall Street Journal: ‘Brasil ameaça pesquisa sobre a Aids, diz instituto’.


Na referida matéria,o American Enterprise Institute (AEI) afirmou, em pesquisa de Richard Tren e Roger Bate, que ‘(…) o programa de combate à Aids no Brasil é um sucesso, mas também uma ameaça ao desenvolvimento de novos medicamentos e, portanto, poderá ser um problema para o tratamento de doentes no futuro’.


O tal estudo, no resumo da BBC e reproduzido por outros órgãos, afirma que isso se deveria ao fato de que ‘(…) a ação agressiva que o governo tomou ao ameaçar patentes de medicamentos e forçar a redução de preços podem enfraquecer o incentivo para o desenvolvimento de longo prazo de novos medicamentos’. E mais: que o desenvolvimento da resistência do vírus HIV é inevitável, necessitando-se no futuro de novas drogas, sendo o Brasil o responsável pela timidez em pesquisa da indústria farmacêutica, temerosa das atitudes cá de nosso país. Falam que ‘gerações futuras vão necessitar de novas drogas anti-retrovirais, especialmente em países mais pobres, que provavelmente vão pagar pelas ações do Brasil’.


Um sucesso


Reconhecem que no momento a situação do Brasil é um sucesso, seja pela distribuição ampla de genéricos, como pela redução do preço dos medicamentos ainda patenteados, que acabam por fazer acordos com o governo temerosos das ameaças de quebra de patente e propriedade intelectual. Concluem os autores, segundo a BBC, que ‘o Brasil possui condições únicas para países que tentam fornecer grandes quantidades de medicamentos anti-retrovirais, pois o país tem economia forte e em crescimento e baixa prevalência de Aids’, daí não se poder usar o mesmo modelo em outras nações.


Observem novamente essa frase: o Brasil tem economia forte e em crescimento e baixa prevalência da Aids. Ora, parece que passamos a fazer parte do Primeiro Mundo, deveremos ser convidados a integrar o G8 como membro pleno, e ditaremos regras em Davos! Eu não sabia disso, e o AEI nos fez o favor de, via BBC e WSJ, nos informar de nossa real condição. Somos mesmo um banco de Macunaímas que não percebem a pujança e riqueza em que realmente estamos. Somos a Noruega do Sul, nossas cidades todas são melhores que Vancouver e da Aids apenas poucos pacientes e médicos tiveram notícia de que aconteceu algum caso nessas plagas.


Que os programas de prevenção à Aids no Brasil são um sucesso não há dúvida, assim como a distribuição de preservativos e seringas descartáveis gratuitas e campanhas intensas de divulgação do assunto – especialmente os jovens têm se mostrado sensíveis a elas, como recente pesquisa do Ibope apontou: aumentou a proporção do uso do preservativos na primeira relação sexual de homens e mulheres, passando dos 90%. E mais: o país também ataca no campo do tratamento, disponibilizando os medicamentos mais atuais também gratuitamente.


Figuras marcadas


O que parece ter faltado aos que reproduzem esses releases automaticamente é justamente o famoso olhar crítico. Afinal de contas, que raio de instituto é esse e quem são essas pessoas? De modo geral, basta aparecer uma instituição e pessoas com nomes anglo-saxônicos para ganhar um certificado de veracidade autenticado no próprio cartório do Céu.


Eu me dei ao trabalho – se é que se pode chamar assim, pois a coisa é rápida – de procurar o mesmo AIE na internet e ver do que tratava. Ora, é uma ONG com sic bem grande dedicada à mais radical não-interferência governamental na iniciativa privada, e seus membros são ou foram das duas administrações de George W. Bush. Combatem qualquer coisa que não esteja dentro de seus padrões morais, defendem a economia e os planos militares de Bush, são ligados a inúmeras corporações de grande porte. Mas não têm, tanto o sítio como seus scholars, o jeitão caipira, texano, do cinturão da Bíblia ou coisa semelhante: a apresentação é bem feita, embora formal e clássica, e as pessoas, mesmo pertencendo ou tendo pertencido ao staff de Bush, reúnem títulos acadêmicos, posições universitárias e que tais. Uma espécie de ‘DasBush’.


Mas entre seus membros encontramos pessoas que ganharam notoriedade, como Lyne Cheney (será que tem algo a ver com Dick, o vice-presidente das trevas?), Thomas Donelly (editor de Armed Forces e ex-presidente da Comissão de Segurança do Congresso dos EUA) e, pasme, Newt Gringrich, ex-speaker da Câmara dos Deputados, geralmente traduzido por aqui como presidente da casa, e um dos mais radicais e conhecidos membros do Partido Republicano! Os autores desse ‘estudo’ também atuam em áreas similares.


O perigo do entusiasmo


Por quem sois, profissionais de imprensa, prestem atenção no que reproduzem! De ONG, tem apenas o formal – é um dos braços apoiadores do governo norte-americano atual, na sua versão mais radical, embora formatada de maneira palatável. E os elogios ao programa contra a Aids no Brasil, assim como nos chamar de grande economia em crescimento e local com baixa prevalência da doença, assopram para depois bater: não vai ter retroviral novo no futuro, e a culpa de não haver pesquisa por parte da indústria será do Brasil, e os países mais pobres sofrerão! (Ainda temos que purgar também o sentimento de culpa.)


Combatem os métodos do governo brasileiro que, desde o aparecimento do AZT, rapidamente cedeu à pressão dos portadores de HIV e passou a ter um programa realmente modelar, em especial a forma como ‘pressionamos’ as ‘indefesas’ indústrias farmacêuticas. Ora, se as coisas fossem ao contrário, como no caso dos subsídios agrícolas, os americanos não teriam o menor pejo em atuar do mesmo modo ou pior! Não querem que os outros, incluindo a União Européia, usem seus consagrados métodos de fazer negócios e comércio.


Finalizando, o temor é que a nossa cabeça-de-planilha, como Luís Nassif os chama, ou a ekipekonômica, no dizer de Elio Gaspari, se entusiasme com esse artigo, modifique nossa postura no combate à Aids, aumente impostos, suba os juros e o superávit primário e talvez resolva adiantar mais uma parcela de bilhões de dólares ao FMI: afinal, na Genebra do Distrito Federal ou na City Piratininga, todos sabemos que cada um de nós está disputando o páreo no olho mágico com o casal Bill e Melinda Gates, e apenas uns poucos coitados, o sem-shopping center, possuem uns trocados, tal como o sultão de Brunei, a família real saudita e quejandos.

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Médico