Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ideologias científicas e mass media



‘Essa classe de empresários e de senhores da finança tem a faculdade de usar o poder conferido pela posse dos meios de produção e pelo controle do dinheiro e do crédito para beneficiar o conjunto da sociedade, ou simplesmente entregar-se ao ‘amor ao dinheiro’ e à proteção patrimonial, produzindo crises e desigualdades’. (Luiz Gonzaga Belluzzo)


A revolução científico-tecnológica do fim do século 19 e princípio do século 20 não só trouxe a energia elétrica, o aço, o motor de explosão, a gerência ‘científica’ e a esteira transportadora: ela também inaugurou uma era de frutífera combinação entre o desenvolvimento econômico e o progresso do conhecimento.


Durante muito tempo, a pesquisa científica e o ofício de inventor eram ocupações de homens curiosos (lúdicos, esquizotímicos, obsessivos, solitários…), muitas vezes levadas a cabo em galpões de residência e em fundos de quintal. Nesta época, os empresários capitalistas pouco ou nada gastavam com ciência e suas aplicações práticas: apenas se apropriavam do conhecimento científico até então acumulado.


Aos poucos, porém, a empresa capitalista passou a investir e a patrocinar ela própria ou por intermédio de seu ‘sindicato’ (o Estado ‘desenvolvimentista’ moderno, tal como o foi o Estado alemão da época de Bismarck) as atividades científicas, incorporando-as aos seus escritórios e oficinas. ‘De uma economia ‘externa’, o conhecimento científico transformou-se num artigo de balanço geral’ (…) ‘numa mercadoria comprada e vendida como outros implementos e trabalhos de produção’ (Harry Braverman, 1974), em suma, numa força produtiva ‘capitalista’.


E assim surgiu, entre o Capital e a Ciência – para o Bem ou para o Mal –, essa relação de simbiose altamente profícua que se mantém até hoje.


Relação assimétrica


Ocorre que essa sociedade é assimétrica, uma vez que os cientistas e engenheiros nela figuram, no melhor dos casos, como sócios subordinados, e, no mais das vezes, como trabalhadores intelectuais assalariados melhor remunerados que os escriturários e os operários do chão da fábrica, mas que são, tanto quanto estes, produtores de mais-valia.


Quanto aos sócios principais, os que determinam o rumo e o critério da produção – o bem-estar da comunidade? A satisfação das necessidades humanas de forma sustentável e no limite do racional? O lucro pelo lucro?… –, estes continuam sendo os barões da indústria e os lordes das finanças. Ora, para essa ‘aristocracia’, o que mais interessa num produto não é o valor de uso, mas o valor de troca, de modo que, se é a indústria de revólveres a mais lucrativa no momento, então é para esse setor que o capital aflui, inclusive o dos fundos de pensão que mantêm muitas viúvas cujos maridos foram assassinados a tiro.


Por isso, a relação simbiótica Capital/Ciência, embora profícua, é perigosa; até porque, se o conhecimento científico é neutro do ponto de vista ético (Segundo um dos princípios epistemológicos mais sólidos, ‘de juízos de fato não se extrai juízos de valor e vice-versa’), também o movimento do capital (dinheiro que gera mais dinheiro ad nauseam) não se orienta por critérios morais, mas por motivos puramente econômicos; de sorte que, sem a intervenção de uma instituição que represente a Razão mesmo que imperfeitamente – o Estado de Direito Democrático – a associação entre capital, arrivismo e ciência é enxofre, carvão e salitre numa combinação fatal.


O vínculo de subordinação do cientista e do engenheiro aos interesses da empresa capitalista (eficiência e lucratividade) pode se dar, inclusive, por razões extracientíficas, isto é, a expensas do compromisso com a objetividade do conhecimento, com a correspondência entre o juízo e o fato.


Relação perigosa


Realmente, algumas denúncias têm sido divulgadas na mídia indicando a existência dessa ‘relação perigosa’ entre a comunidade científica e as grandes corporações capitalistas. Recentemente, a médica e pesquisadora americana Adriane Fugh-Berman, da Universidade Georgetown (Washington, EUA), acusou casos de ghost-writing envolvendo a corporação farmacêutica britânica AstraZeneca (por ghost-writing entenda-se: ‘recrutamento de cientistas para assumir a autoria de um estudo e ocultar os interesses dos redatores originais’).


E, numa pesquisa feita com 3 mil cientistas ligados à área da medicina (NIH, Institutos Nacionais de Saúde dos EUA), chegou-se a um resultado estarrecedor: de que esse viés não é algo tão incomum. Com efeito, à questão nº 10 da pesquisa – ‘Você mudou o projeto, a metodologia ou os resultados de um estudo em resposta a pressões de uma fonte de financiamento?’ –, 15,5% dos entrevistados admitiram que sim. Trata-se de uma percentagem alta demais, o que denota não ser esse comportamento transgressor (essa venalidade) algo atribuível a indivíduos isolados, mas uma ‘endemia’ da comunidade científica.


De resto, em maio deste ano o jornal britânico The Independent revelou minudências de um estudo ‘secreto’ patrocinado pela Monsanto, um dos oligopólios do ramo de alimentos transgênicos. Segundo esse estudo, ‘ratos alimentados com milho geneticamente modificado (cognominado MON 863) tinham rins menores e variações patológicas na composição sangüínea’. O mais grave em toda essa história é que a Monsanto recusou-se a divulgar o relatório dessa pesquisa por conter ‘informações confidenciais de negócios que poderiam ter uso comercial por nossos competidores’.


Mas esses problemas dizem respeito às vicissitudes do uso da ciência – pelo Capital – como força produtiva ou, no jargão da economia acadêmica neoclássica marginalista, como fator de produção (ao lado do trabalho, da terra, do capital e da criatividade empresarial).


A ciência e a técnica como ideologia


Só que, como enunciou Jürgen Habermas, o Capital tem se valido da ciência não apenas como força produtiva material ou fator de produção, mas também como ‘ideologia’, ou seja, como justificação ideal e moral da sua existência outrora, agora e sempre; como chancela de autenticidade de valores, panacéia e seta da existência.


Ora, está claro que se trata de um uso indevido, de uma manipulação da ciência para fins inautênticos, uma vez que, como disse antes, o método científico somente produz juízos no indicativo – asserções acerca do mundo tal como ele ‘é’ –, jamais sentenças normativas, imperativos, reflexões morais sobre como a realidade ‘deve ser’.


É fato que o capital não só sobreviveu a todas as suas crises como tem lucrado bastante com o comércio das obras dos seus críticos mais mordazes, entre os quais figuram cientistas consagrados, como Noam Chomsky, Stephen Gould e muitos outros.


Mas essa original ‘metabolização’ da intelligentsia crítica pelo Sistema – a conversão da literatura anticapitalista em mercadoria ‘capitalista’ – é um fenômeno secundário um tanto afastado da grande mídia (jornais e revistas de grande circulação, redes de TV etc.) que leva a informação – e também a contra-informação – ao homem médio, ao grosso da população.


Quanto ao ‘cientificismo’ apologético do mercado universal e do estilo de vida high tech, após sua elaboração pelo establishment técnico-científico – intelectuais orgânicos da tecnoestrutura, pesquisadores do setor P&D e do Human Engineering, economistas acadêmicos com ares de cientista hard –, ele então é lançado no mercado de varejo das ilusões pelos mass media, onde concorrerá com outros artigos de fé.


As ‘ideologias científicas’ (expressão cunhada por Gramsci) têm por escopo precípuo convencer as pessoas de que as questões abertas das esferas social, administrativa, jurídica, econômica e ambiental não devem mais ser encaradas como demandas políticas, mas como problemas técnicos que exigem soluções técnicas e, para tanto, uma corporação de agentes com proficiente conhecimento técnico-científico (isto é, uma ‘tecnocracia’ ou ‘tecnoburocracia’).


Ciência ‘dura’ ou apologia descarada?


O modelo mais recente de ideologia ‘científica’ jaz expresso no programa ultraliberal da Escola de Chicago e nas resoluções do Consenso de Washington. Os representantes desse sistema de idéias (que não esconde sua pretensão de pensamento único) aferram-se a uma ‘ciência’ econômica que, orgulhosa de sua ‘matematicidade’, tenta passar-se como ciência natural dura. Pois, afinal, não disse o cientista Galileu que a matemática é a linguagem da natureza? Sim, mas o místico Pitágoras também insinuou isso.


O apelo à racionalidade (razão tecnicista), a defesa da liberdade (liberdade dos predadores) e da autonomia do consumidor (como se o setor de marketing não fosse uma fábrica de produzir demanda, de criar necessidades econômicas artificiais, de forjar, com o auxílio da psicologia ‘científica’, behavioristas, uma massa de consumidores não autônomos, mas ‘autômatos’), todo esse discurso não passa de retórica ‘cavalo de Tróia’. Pois, o que a ideologia ‘científica’ de Milton Friedman & Cia. pretende mesmo é reduzir ao máximo o poder de decisão dos cidadãos – valendo-se, para tanto, de uma campanha midiática objetivando desacreditar o Estado, mormente os seus aparelhos de representação popular e seus agentes políticos – e, ipso facto, aumentar o poder das tecnocracias pública e privada.


Ao argumentarem que o grosso dos problemas humanos são questões de natureza técnica (cuja resolução demanda conhecimento especializado, o que o homem médio não tem), esses ideólogos pseudocientistas estão apenas tentando convencer o cidadão ‘leigo’ da sua incompetência não só para lidar com essas questões, mas também para ‘questionar’ as soluções técnicas arranjadas por quem realmente saca do assunto.


Despolitização


Em síntese, o intuito desses cientificistas tardios é despolitizar a sociedade; alienar o cidadão; fazer-nos aceitar a idéia de que o estado ‘natural’ das coisas (e, acreditam eles, as leis do mercado são leis ‘naturais’) é intranscendível; converter a democracia numa cerimônia e o seu exercício num ritual vazio (os católicos que vão à igreja apenas em batizados, casamentos e missas de sétimo dia sabem do que estou falando) e, assim, concentrar poder em suas mãos. — A propósito, depois da bancarrota do comunismo, os liberais reacenderam suas antigas críticas à democracia, acusando sua incompatibilidade com a governabilidade – pois seus canais sobrecarregam o Estado com demandas sociais impossíveis de serem atendidas simultaneamente e a médio prazo –, seu potencial de degenerar-se em despotismo da maioria ou de representar, segundo Friedrich Hayek, ‘um caminho para a servidão’.


Essa indisposição com as instituições democráticas de governo combinada com a paixão cega por esquemas técnico-administrativos manifesta-se de forma cristalina nas seguintes propostas ultraliberais atualmente em debate: a) a de autonomia do Banco Central; b) a de uma política econômica levada a cabo exclusivamente pelo Banco Central largamente autônomo em relação ao parlamento e a outras instituições políticas (por meio das quais a ‘arraia miúda’ costuma ‘meter o bedelho’).


Anti-ideologismo ideológico


Uma outra faceta dos cientistas ideólogos é o seu discurso supostamente anti-ideológico, seu vaticínio sobre o ‘fim das ideologias’ e do advento apoteótico da Realpolitik, isto é, de uma práxis política que segue todas as regras traçadas pela tecnoburocracia.


E no lixão das ideologias eles jogam não só as religiões e todas as doutrinas político-filosóficas (com exceção do ultraliberalismo, é claro). Nesse aterro sanitário também são atiradas quaisquer ciências que, pela natureza intangível ou imponderável do seu objeto – como a ‘mente’, por exemplo, que, segundo Murray Gell-Mann, alguns behavioristas não ousam designar pelo nome, mas pela expressão ‘a palavra M’ – não podem seguir à risca o método das ciências naturais, razão pela qual estão mais para literatura ou coleção de ‘sacações’ do que para estudo rigoroso dos fatos.


Ora, de acordo com o cientificismo, a maioria senão todas as ciências humanas cabem na categoria das pseudociências. Isso porque, em tais disciplinas, o sujeito cognoscível e o objeto cognoscente se confundem (trata-se da mente investigando a mente, o homem estudando o homem), o que as faz prisioneiras dos paradoxos da auto-referência, envoltas com a dificuldade quase insuperável de demonstrar, seja através da argumentação lógica ou da experiência, a falsidade ou a pertinência de suas hipóteses.


A solução cientificista para esse impasse é das mais simples, para não dizer simplória: consiste em ater-se ao que há de palpável e mensurável no homem, ou seja, suas estruturas e estados corpóreos: o cérebro, o genoma, o comportamento.


O filósofo Willard Van O. Quine, um positivista de calibre, certa vez declarou: ‘Seja como for, os estados corpóreos existem; para que juntar-lhes os outros?’ (K. Popper, O conhecimento e o problema corpo-mente, 1994).


A ideologia cientificista nua e crua


Pela mesma razão, em vez da sociologia, por que não abordar os problemas atinentes a essa disciplina à luz da ‘sociobiologia’ do animal humano? Para que uma economia discursiva (bem ao gosto de Galbraith) se o essencial do discurso pode ser explicado pela econometria? Em vez da psicologia social, por que não considerar o seu objeto sob o ponto de vista da psicologia evolutiva, que explica nossos comportamentos altruístas e egoístas por meio da físico-química do gene, algo que, ao contrário dos valores, afetos e outras ‘subjetividades’, é material e ponderável? Afinal, para que uma psicologia (estudo da mente) se existe a neurociência, que investiga os processos neurais, inclusive os que se expressam em imagens mentais?


E, conduzindo a lógica da ideologia cientificista ao seu limite, onde ela se revela nua e inteira, ‘por que lutar por um mundo mais democrático, mais justo, mais livre, mais igual, mais solidário e, portanto, mais feliz e pacífico, se a felicidade e a paz de espírito podem ser alcançadas, graças aos avanços da ciência e da farmacologia, por um atalho químico, isto é, através da ingestão diária de um reles comprimido contendo, além de farinha, resquícios de carbonato de lítio, ou de cloridrato de fluoxetina, ou bupropiona, ou amitriptilina, ou bromazepan etc.?’.


Em miúdos, o culto das ciências naturais é uma ideologia ordinária, in casu ideologia ‘positiva’, pois que se presta não a contestar o sistema, mas a blindá-lo, a imunizá-lo contra qualquer crítica, a nos persuadir de que ele próprio cria as soluções para seus problemas — como sói ser, segundo o marketing da indústria farmacêutica, a ‘pílula da felicidade’: o prozac.


Felicidade? Vide bula


Como escrevi em outro texto (‘A miséria do cientificismo’, que será publicado brevemente em meio a uma coletânea de ensaios, ‘As esquisitices do óbvio’), a grande conclusão a que essa variante do cientificismo quer chegar é que ‘somos infelizes não porque sofremos injustiças; não porque somos tiranizados ou maltratados seja no local de trabalho, em casa ou na rua; não porque nos faltam meios materiais para a satisfação das nossas necessidades e as dos nossos entes queridos. Somos infelizes não porque nos negam reconhecimento e nos rebaixam à condição de coisa, mercadoria força-de-trabalho à mercê das forças de um mercado cada vez mais mutante e caótico. Em verdade, somos infelizes porque nos falta um pouco mais de serotonina. Nada que não possa ser resolvido com uma simples pílula. Aliás, até mesmo a angústia do ser-no-mundo, a sensação de absurdo e de falta de sentido, a perene insatisfação humana que não nos deixa nunca ficar parados, estagnados; até mesmo a simples e basal dor de ser humano (a dor da indecisão, da dúvida e da renúncia que só quem é livre experimenta) irá necessariamente desaparecer num futuro próximo, no admirável mundo novo dos homens-prozac’.


Claro que nem todos sucumbem a este canto de sereia. O problema é que, muitas vezes, esse criticismo toma a forma de desespero cujo escape ou é a implosão psicótica ou – o que é pior – a explosão terrorista, como foi o caso do ‘Unabomber’. Confesso que, por esse indivíduo, tenho o mais absoluto desprezo, não só por tratar-se de um serial killer, mas também porque se revelou um intelectual confuso e um péssimo escritor. No entanto, mesmo nos monstros e até nos escrevinhadores sofríveis há um quê de humanidade. Vez por outra, eles acertam a mão, e o Unabomber não é exceção: num trecho do seu ‘manifesto’, ele escreveu: ‘Imaginem uma sociedade que sujeita pessoas a condições que a tornam tremendamente infelizes, e depois lhes dá as drogas para eliminar tal infelicidade. Ficção científica? Ela já existe. Antidepressivos são de fato o meio de modificar um estado interno do indivíduo de modo a torná-lo capaz de tolerar condições sociais que de outro modo ele acharia intoleráveis’. (In O demônio do meio-dia; Andrew Solonon; Ed. Objetiva; Rio de Janeiro; 2002; p. 119).

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Escritor e analista judiciário