Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pouca saúde, muita saúva

O editorial da Folha de S. Paulo intitulado ‘Demanda por saúde’ (10/4/04) fez com que me lembrasse de uma frase ainda tristemente válida do Macunaíma, de Mário de Andrade: ‘Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são’. Acontece que, embora correto, o editorial citado foi superficial e até ingênuo, não concluindo com nenhuma sugestão realmente útil: foi um editorial morno, talvez carente de informações, portanto incompatível em relação à importância da Folha.

A questão básica do editorial referia-se à recente disposição da Superintendência do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP, que divulgou que, por ser hospital terciário e portanto dedicado a doenças mais complicadas e dispondo de equipamentos de elevada tecnologia e alta complexidade, além de corpo clínico altamente gabaritado, deixaria de atender os casos mais simples. O HC da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp também está adotando procedimento similar, porém de forma mais humanizada, triando os pacientes mais simples e a eles explicando que aquela instituição é voltada para casos complexos, que seria mais simples e útil para o próprio paciente procurar atendimento no posto de saúde próximo de sua residência. Mesmo assim, não deixaram de atender os chamados casos simples, o que foi elogiado no editorial da Folha.

Neste ponto merece ser feita uma pausa, para algumas explicações e informações. A Constituição em vigor, de 1988, declara formalmente que saúde é direito de todos e dever do Estado, criando um serviço público de saúde aberto a todos, o Sistema Único de Saúde (SUS). Após ser criado pelos constituintes, o SUS foi regulamentado pela Lei 9.090. Ocorre que, no papel, qualquer pessoa que ler tais documentos certamente vai achar o SUS um dos melhores sistemas públicos de saúde de todo o mundo – ele se baseia na municipalização da saúde, cabendo à União o repasse de verbas para as cidades. Boa parte dos municípios está sob gestão plena dos SUS. No estado de São Paulo, apenas a capital não está em gestão plena: os postos de saúde estaduais, por exemplo, foram corretamente passados para a Prefeitura. Os hospitais federais foram repassados ao governo estadual, que também tem rede hospitalar própria, que por motivos provavelmente de ordem técnica e política não foi repassada ao controle municipal.

Outra questão é por todos conhecida: embora a destinação de verbas do Orçamento da União seja grande para o Ministério da Saúde, que é quem repassa o dinheiro às prefeituras (com um pit stop nos governos estaduais), há uma carência generalizada de recursos, com o famoso sucateamento de instituições, a falta de material e medicamentos, profissionais da área em número inferior ao necessário e salários muito baixos. As instituições privadas conveniadas ao SUS, principalmente as Santas Casas, estão sempre reclamando dos baixos índices de remuneração e atraso nos pagamentos.

As questões levantadas no editorial citado são graves: discriminar entre casos simples e complexos viola a própria Constituição, o que pode gerar conflitos com o Ministério Público e o Poder Judiciário. Por outro lado, a Organização Mundial da Saúde há tempos dividiu a atenção à saúde em atendimento primário, secundário e terciário. O atendimento primário seria aquele similar ao dos consultórios particulares e importantíssimo: o posto de saúde faria o atendimento de rotina e acompanhamento de pacientes. Como exemplo, um hipertenso arterial precisa comparecer regularmente ao médico, que pode solicitar exames e modificar a medicação, assim como um diabético. As crianças merecem atenção em nível de puericultura, para acompanhar seu desenvolvimento no primeiro ano mês a mês, assim como as consultas necessárias na idade, além da vacinação. Os postos também distribuiriam os medicamentos disponíveis para a rede pública e agendariam os exames complementares.

‘País das Maravilhas’

Paralelamente há o atendimento de urgência, nas unidades de pronto-socorro ou primeiro atendimento, para casos de urgência ou emergência, e por aqui também há a experiência do Programa Saúde da Família (PSF), pelo qual as equipes dos postos vão às casas dos pacientes, verificam como eles estão seguindo seus tratamentos, marcando ou adiantando consultas nos postos de saúde etc.; o PSF ainda está longe de funcionar de maneira ideal, mas é um passo importante a ser dado para que atue adequadamente.

Uma informação que me foi passada extra-oficialmente: as empresas prestadoras de planos de saúde têm estatísticas mostrando que cerca de 90% dos atendimentos são em consultórios e exames complementares, e apenas 10% necessitam de internação hospitalar. Esse estudo parece ser sério, e o mesmo deve ocorrer na rede pública.

Tudo isso seria perfeito, mas há um detalhe: as coisas funcionam muito mal. Dessa maneira, no que concerne ao material jornalístico, há duas sugestões naquele editorial que são fruto de má-informação ou ingenuidade: congratulando o esquema da Unicamp, a Folha aplaude a iniciativa de esclarecer a população para não procurar o pronto-socorro por qualquer coisa, pois sua finalidade é a emergência médica, e sim os postos de saúde. Acontece que inúmeros postos de saúde, na capital, por exemplo, estão fechados: não há material nem funcionários, tampouco médicos. O que o povo faz? Ao se sentir mal, em vez de procurar o posto – ou unidade básica de saúde (UBS), como é denominado por aqui –, que dificilmente encontra, para o correto acompanhamento de casos crônicos e mais simples e medidas preventivas, vai ao único local disponível: o pronto-socorro. Assim, a demanda é enorme nos PSs, que atendem em sua grande maioria os casos simples e não podem fazer acompanhamento, apenas fazer frente a uma situação pontual, desvirtuando sua função principal, que é o atendimento das urgências.

Desse modo ocorrem as enormes filas de atendimento, a consulta rápida demais, a falta de continuidade no tratamento e mesmo conflitos entre pacientes e funcionários ou médicos, que por vezes chegam à agressão física.

A verdade é que não há postos de saúde funcionando em número e capacidade suficiente para a população: de nada adianta esclarecer o paciente que deve procurar os postos e que PS é lugar para emergência: ele terá imensas dificuldades em encontrar postos que funcionem. Esses mesmos problemas existem no superlotado HC da FMUSP, na Santa Casa de São Paulo, na Unicamp.

À guisa de esclarecimento, cito como exemplo o Posto Maria Zélia, que pertencia ao antigo Inamps, portanto federal, e que foi repassado ao governo estadual. É uma unidade grande, com 90 consultórios, que está fechado desde a passagem para o estado, mas poderia ser extremamente útil à enorme população da Zona Leste de São Paulo.

A Folha aplaudiu assim uma medida informativa e não-autoritária da Unicamp, mas pouca importância deu ao fato de que o atendimento primário em saúde é extremamente precário, e por pura necessidade, e nem sempre falta de informação, a população procura os PSs e hospitais terciários por falta de opção. A omissão desses graves fatos torna o editorial inócuo ou a serviço de um ‘País das Maravilhas’, que na realidade só existe no papel, em legislação aprovada há mais de 10 anos. Desse modo, perde a imprensa uma oportunidade de iluminar o problema do atendimento primário, e a saúde continua pouca, mas as saúvas certamente aumentaram…

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Médico, mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo, ex-conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo