Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Propaganda disfarçada

Na edição nº 392 o OI perguntou se a mídia pode contribuir para a paz no conflito entre Israel e seus vizinhos. E, por incrível que pareça, o ‘sim’ venceu. Minha descrença vem ao observar a função da mídia em questões mais simples do que esta, que envolve conflitos milenares, questões políticas, dilemas religiosos, imposições de resoluções a força aos mais fracos. Falo das questões científicas, em que se podem medir resultados facilmente. Pode-se pensar que em algo tão simples, pelo menos, a mídia faria alguma diferença. Mas não é o que se vê na realidade.

Na semana retrasada o OI abrigou o texto ‘IstoÉ no além – Ciência paga o pato da incompetência jornalística‘, pois a revista estaria confundindo com ciência alegações da religião espírita. Devemos lembrar que a IstoÉ faz parte do mesmo grupo editorial da Revista Planeta, especializada em pseudociência e esoterismo. Esta semana escancarou na matéria da capa ‘A consagração da acupuntura’. Sua chamada garante: ‘A terapia das agulhas chega aos melhores hospitais do país, ganha novos e sofisticados recursos e amplia leque de tratamento para várias doenças, câncer, asma, distúrbios do sono, dores, ansiedade e até para rugas’.

Abrimos o texto curiosos. Com tanta dificuldade, o Sistema Único de Saúde oferecer acupuntura, embora desabastecido para manter a assistência aos que procuram ajuda médica e medicamentosa (o jornal Zero Hora de 8/8 apresentou reportagem, ‘Saúde precisa de remédio’, sobre o drama das pessoas que não conseguem seus medicamentos de uso continuo; transplantados, insuficientes renais, aidéticos, portadores de neoplasias malignas… Segundo a Istoé, a acupuntura seria solução no tratamento de tudo. No Rio Grande do Sul um mutirão entre várias entidades médicas e hospitalares tenta resolver 60 mil consultas de especialidades em atraso de atendimento há anos.

Muitos modismos

Infelizmente a base da reportagem não é científica; tenta reproduzir ditas evidências científicas, mas mostra apenas que os grupos adeptos deste tratamento politicamente detêm peso nos serviços médicos no Brasil. Isto pode apenas representar que vendem bem, e não que tenha resolutividade, como o prometido. Uma abordagem, cientificamente, da situação em países mais desenvolvidos e mais sérios fica em falta. Afinal, a homeopatia, reconhecida como ‘especialidade’ médica apenas no Brasil, também é usada em hospitais e universidades não pela evidência científica. Articulistas alegam que ela é objeto de muito estudo em instituições do porte do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. No entanto, ao procurarmos em serviços que avaliam a medicina baseada em evidências (que demonstram resultados), como The Cochrane Collaboration, americano, ou Bandolier, do Reino Unido, verificamos que falha em conseguir se diferenciar do placebo. A sua posição no FDA continua a mesma. Nunca foi merecedora de um Prêmio Nobel, apesar das promessas extraordinárias.

São propagandas disfarçadas em reportagens, que pegam o leitor desprevenido achando que está lendo uma matéria séria. Alguns anos atrás, pacientes apareciam com agulhas e sementes nas orelhas para parar de fumar e emagrecer. Hoje só incauto deixa a orelha para tentar obter o que outros não conseguiram. Um aspecto interessante da acupuntura é que não tem limite. Trata de tudo. Muito semelhante ao placebo, que serve para qualquer situação. No século 18 houve um fenômeno muito parecido. Chamava-se mesmerismo, pois fora inventado pelo Dr. Anton Mesmer (1733-1815). Consistia na aplicação de ímãs nas pessoas para tratar tudo pelo ‘agente magnético’. Foi um furor na Áustria e grande sucesso em Paris, reunindo multidões. Hoje em dia se usa em centros espíritas como terapêutica (o passe). Com o tempo chegou a ser usado para anestesiar pacientes no século 19: o Dr. James Esdaile (1808-1859), como médico da British East India Company, realizou importantes intervenções cirúrgicas durante a guerra na Índia, inclusive 19 amputações (não existia anestesia na época) apenas sob o efeito da anestesia mesmérica, depois entendida como hipnose.

Samuel Hahnemann (1755-1843) e Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), foram adeptos do tratamento magnético antes de aderirem aos espíritas da época. A própria hipnose foi modismo, sendo a solução para tudo, prometendo cura. Igual à acupuntura atual: foi apregoado que na China eram realizadas cirurgias só com acupuntura. Assim como o toque dos imãs, consegue-se efeito espetando agulhas finas. Muitos paralelos das explicações unem as duas: energias desbloqueadas pelo agente magnético ou agulhadas.

Ato médico

A sangria foi usada por dois mil anos após excelentes resultados obtidos na medicina tradicional européia, e faz parte de medicina tradicional chinesa ainda hoje. As pessoas sentiam-se bem com ela. Até passavam mal se fossem ao médico e não fizessem uma limpeza do sangue. Ainda hoje as pessoas mais humildes atribuem doenças de pele ao sangue ‘sujo’. A sangria tinha indicação para todos os males, dores de cabeça, enxaquecas, diarréia, dor de garganta, dores no corpo. Como um efeito placebo, podia ser usado em todas as situações para ‘complementar’ qualquer outro tratamento. Assim também, desde o tempo dos egípcios, existia a crença na auto-intoxicação por estase intestinal, ‘causa’ de doenças e sintomas diversos. Males como enxaquecas, erupções de pele, sapinho, barriga estufada, regras atrasadas seriam originados pela estase (parada) das substâncias tóxicas no intestino, ‘apodrecendo’ o corpo por dentro. No início do século 20, era coqueluche ir ao médico receber uma receita de sal amargo, óleo de rícino ou clisteres para uma limpeza por dentro. Como se milhões de anos de evolução estivessem esperando um laxante para o organismo funcionar.

Como especialidade, a acupuntura é peculiar, pois não tem bases científicas. Não se aprende em fisiologia, anatomia, farmacologia ou patologia. Não tem nenhuma relação com a medicina interna ou a cirurgia. Apenas se descobrem seus princípios e alegações em literatura esotérica e mística. Estas são as conseqüências de usarmos abordagens baseadas em meios irracionais de tratamento. Fundamentado em pensamento mágico de energias imaginárias, acúmulos não-demonstrados, tóxicos não-detectados. A isto se opõe a moderna medicina científica, que finca sua intervenção em medicina baseada em evidências (eficácia).

Uma palavra sobre se seria ato médico ou, como querem alguns, e o nosso Judiciário nisso acredita, outra forma de tratar diferente da medicina. Em primeiro lugar me parece óbvio que se trata de um ramo da medicina tradicional chinesa. Portanto, medicina, que visa tratar as pessoas doentes que procuram ajuda. Deve-se, portanto, diagnosticar o que as pessoas têm, se é tratável usando-se apenas agulhadas, ou se precisa ser enviada a tratamento médico. E isto não me parece que possa ser exercido por quem não seja médico. Não vejo as bases farmacológicas para ser uma especialidade da farmácia, assim como parece nada ter a ver com as bases da psicologia, ou da enfermagem, menos ainda de leigos totais.

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Médico, Porto Alegre