Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Resposta a um fantasma de Boston

Dentre as reações aos meus artigos sobre o dr. Dawkins, destaca-se especialmente a do engenheiro José Colucci Jr., da cidade de Boston [veja remissão abaixo]. Destaca-se, é claro, não pelo seu conteúdo, em substância não muito diferente de dezenas de outros, mas pelo fato de ter sido publicada pelo Observatório da Imprensa, enquanto as demais me chegaram por e-mail ou circularam por obscuras listas de discussão na internet. Destaca-se, também, pelo seu tamanho, cinco vezes maior que o dos meus dois artigos somados. Destaca-se, por fim, pela forma muito peculiar com que articula os seus argumentos, a qual merece um exame em separado. Dividirei, pois, a minha resposta em duas partes: a primeira consagrada à técnica expositiva do Sr. Colucci, a segunda à substância da questão discutida, isto é, aos méritos e deméritos das idéias de Richard Dawkins sobre religião. Publico aqui a primeira. A segunda virá dentro de algumas semanas.

1. O Sr. José Colucci Jr. inicia sua argumentação rotulando-me de ignorante, obsedado com o comunismo, carente de civilidade e ostentador de falsa coragem intelectual.

Logo em seguida, comentando meu primeiro artigo, afirma: ‘Olavo de Carvalho, de maneira típica, começa por desqualificar o oponente.’

Será um caso extremo de demência senil, em que o esquecimento do passado recente chega a apagar o parágrafo anterior tão logo o doente começa a escrever o parágrafo seguinte? Ou é apenas língua dupla de um hipócrita que acha lindo nele próprio aquilo que condena em mim?

Creio mais nesta última hipótese, pois a esse admirador professo e enfático de Richard Dawkins [Não atribuí ao Sr. Colucci essa admiração a Dawkins por mera conjeturação leviana como ele me atribui (v. adiante) similar devoção por Richard Milton. Resumo apenas suas próprias palavras: Dawkins, no seu entender, é ‘um cientista com currículo brilhante’, ‘goza de prestígio tanto entre cientistas quanto entre o público leigo, é culto e inteligente, é dono de uma prosa concisa e elegante’. Só faltou dizer que é lindo de morrer.] não falta um modelo a quem copiar. Respondendo a Richard Milton num artigo do New Statesman (Londres, 28 de agosto de 1992), Dawkins já começa, na primeira frase, por chamar o adversário de ‘teórico da terra plana’, ‘mercador de motos-perpétuos’ e ‘maníaco’ (fruitcake). Só depois entra no assunto. [Em outro artigo, Dawkins chamou Milton de ‘insano’, ‘estúpido’ e ‘necessitado de assistência psiquiátrica’ (‘loony, stupid and in need of psychiatric help’). Ao mesmo tempo, escreveu cartas a vários jornais e canais de TV, advertindo que Milton era um perigoso criacionista (Milton não é criacionista nem de longe), ao qual se deveria negar toda oportunidade de falar ao público.]

Diferenças iniciais

Já o primeiro parágrafo do meu artigo em O Globo começa por resumir a opinião a ser comentada, sem nada dizer de bom ou de mau sobre o seu autor.

No segundo parágrafo, afirmo que a boa reputação científica do Sr. Dawkins não é unânime nem mesmo na área da sua especialidade e advirto que a opinião dele em matéria de religião é a de um amador dando palpites numa área que lhe é estranha.

São dois juízos de fato, passíveis de comprovação empírica. Como prova da primeira, citei o livro de Richard Milton, Shattering the Myths of Darwinism, não por admirá-lo especialmente como o insinua o Sr. Colucci, mas por ser obra de jornalista que menos expõe sua opinião pessoal do que resume a de vários profissionais da ciência, entre eles Stephen Jay Gould, evolucionista que acha o Sr. Dawkins apenas um pateta dotado de algum talento. [Veremos adiante três outros expedientes usados pelo Sr. Colucci nesta parte da discussão: (1) A falsa rotulagem em bloco das fontes de Milton como ‘autores notoriamente comprometidos com o criacionismo bíblico’, (2) a mentira difamatória pura e simples (‘criacionistas não fazem pesquisa experimental’) e, com base nos dois anteriores, (3) A negação de ouvir os argumentos do adversário, por meio da sua desqualificação a priori.]

A segunda não precisa ser provada, sendo público e notório que o Sr. Dawkins não tem um único trabalho publicado na área da ciência das religiões, na qual creio, em contrapartida, ter alguma autoridade, se não como conferencista constantemente convidado a falar sobre o assunto em instituições religiosas e universitárias, ao menos como autor de um estudo sobre história islâmica premiado em 1986 pela Universidade de Al-Azhar, há séculos o principal centro de erudição religiosa muçulmana no mundo.

Há alguma diferença entre começar citando fatos e sair logo de cara cuspindo adjetivos infamantes. Entre o meu artigo e o do Sr. Colucci (bem como o do Sr. Dawkins sobre Richard Milton), o leitor está livre para decidir quem é que ‘começa por desqualificar o adversário’.

Falsa impressão

2. Entrando já um pouco na substância do assunto, o Sr. Colucci acusa-me de ‘tomar liberdade com as palavras alheias’, falseando a declaração de Richard Dawkins. A imputação é grave. Se fiz isso, sou mesmo um calhorda. Vejamos como o demonstra o Sr. Colucci:

‘No jornal O Globo de 26/6/04, Olavo de Carvalho implica com a afirmação de Richard Dawkins para a Veja (edição 1.859, de 23/6/04) de que ‘o mundo teria mais paz se todas as religiões fossem abolidas’. Dawkins não disse isso. A frase que aparece na entrevista é: ‘Se pudéssemos abolir a religião ou convencer as pessoas de que suas religiões são ilusões, provavelmente não teríamos mais atentados suicidas’.’

O leitor quer, por gentileza, me informar qual a diferença entre ‘o mundo teria mais paz’ e ‘haveria menos atentados suicidas’? Mesmo que esta última expressão não fosse uma sinédoque, como indiscutivelmente o é, ou seja, uma alusão ao todo por meio da parte; mesmo, portanto, que o Sr. Dawkins quisesse aludir apenas à eliminação dos atentados suicidas e a nenhum outro sinal de melhora do estado de coisas, quem pode negar que o mundo sem homens-bomba teria mais paz do que com eles? E como não enxergar que a abolição das religiões, no entender do Sr. Dawkins, ajudaria a produzir esse resultado, se foi exatamente isso o que ele disse?

Qual a distorção que houve aí? O Sr. Colucci está bêbado, caiu no pote de cachaça quando era pequeno ou é pequeno ainda e jamais saiu dele?

Não é nada disso: ele sabe que está blefando, sabe que está tentando criar uma falsa impressão de desonestidade para indispor o leitor contra mim e prepará-lo para cair em blefes mais arriscados ainda.

Referência e devoção

3. Seguro de que o leitor não se deu conta do primeiro blefe, o Sr. Colucci passa à etapa seguinte: imputar-me ‘acusações levianas’ feitas a Richard Dawkins, ‘cientista com currículo brilhante’. A primeira delas teria consistido em depreciar injustamente uma de suas realizações científicas, a invenção dos biomorfos, dizendo que ela não consistiu senão em ‘inventar figuras computadorizadas e tomá-las como seres vivos’. Isso lá são modos de falar de uma grande descoberta científica? Que acinte! Que desplante! Que ousadia de um apedeuta intrometido! Os biomorfos, assegura o Sr. Colucci, não são nada disso. São, isto sim, ‘algoritmos que interagem com o ambiente e entre si, e dão origem a figuras que se parecem com seres vivos’. Bem, da minha parte reconheço que assim ficou mais bonito, mais elegante. Mas novamente apelo ao leitor para que decida se há alguma diferença substantiva entre isso e o que eu disse. Para mim, não há nenhuma. Tanto que, se a redação que dei à frase for substituída pela do Sr. Colucci, o sentido do artigo permanecerá intacto. Posso até fazer essa troca, se o Sr. Colucci insiste. Mas daí a me chamar de ‘acusador leviano’ só porque não troquei seis por meia dúzia, a distância é grande. É precisamente a distância que vai entre o crítico honesto e um autêntico acusador leviano.

4. Mas, diz o Sr. Colucci, não sou apenas um detrator leviano de quem merece respeito. Sou também um admirador leviano de quem não o merece. Meu ídolo, segundo esse engenheiro de Boston, é Richard Milton, o jornalista de Alternative Science e autor de Shattering the Myths of Darwinism. ‘Olavo de Carvalho traz à cena Richard Milton, que ele admira por ‘ter reduzido a nada’ as idéias do autor de O Relojoeiro Cego (Dawkins). Aceitar a autoridade de Milton em assuntos científicos – assegura ele – é confessar de público ser ainda mais ignorante do que este em evolução.’

Não deveria ser preciso explicar isto, mas referências a livros servem para abreviar argumentos invocando diretamente algum testemunho ou documento. Só que, para o Sr. Colucci, referência não é isso. Referência é devoção. Citar um livro – ao menos quando sou eu quem o faz – é prestar culto, é prosternar-se ante um altar, é invocar uma sabedoria superior. Logo, se citei Milton, sou seu devoto seguidor, cegamente confiado na autoridade do meu guru.

Recurso à erística

Vasculhando o meu artigo, não encontro nele uma única palavra de louvor a Richard Milton, apenas a menção breve e seca ao fato de que no seu livro ele fez em cacos algumas idéias de Dawkins. Pode-se até discutir a validade das objeções que ele apresentou, e, para qualquer mente sã, citar o livro em que elas se encontram não é validá-las automaticamente, nem muito menos celebrá-las como a última palavra, o magister dixit a respeito do assunto. É apenas mostrar que elas existem e dar ao leitor a oportunidade de averiguá-las por si mesmo.

Nunca me ocorreu – nem nada no meu artigo sugere isso –- que Milton fosse especialmente admirável (aliás nem desprezível) por havê-las apresentado, mesmo porque em geral os argumentos com que o faz não são dele próprio, e sim de vários cientistas antievolucionistas ali citados. Mencionei o livro, como já expliquei, só como sinal de que a boa reputação de Dawkins não era unânime, e a simples existência dessa obra já é prova disso.

Alterar o sentido das palavras do adversário para lhes dar postiçamente uma aparência ridícula é um dos expedientes mais baixos da pseudo-retórica que os antigos chamavam de erística, a cujo estudo consagrei as cento e tantas páginas do meu comentário à obra que Schopenhauer escreveu a respeito.

Transformar uma simples referência em preito de admiração, porém, já não é nem mesmo erística: é expediente bobo de deboche pueril.

5. Bobo, é claro, quando visto isoladamente. O uso que o Sr. Colucci faz dele no conjunto da sua argumentação é de uma astúcia verdadeiramente criminosa. Uma vez impingida ao leitor a farsa de que sou um devoto seguidor de Richard Milton, qual o passo seguinte? Desmoralizar Richard Milton para me atingir por tabela. O procedimento é bem conhecido. Chama-se, em erística, ‘boneco de palha’, e já foi usado muitas vezes contra mim. Consiste em atribuir a um autor idéias que ele não tem e, destruindo-as com a maior facilidade – pois foram concebidas para esse objetivo –, fingir tê-lo derrotado gloriosamente.

Mais conveniente

A malícia especial do Sr. Colucci consiste em que, usando Richard Milton como boneco de palha para simular vitória na discussão comigo, ele ataca a reputação de Milton, precisamente, por meio da acusação de ter usado da mesma tática do boneco de palha contra Richard Dawkins:

‘Milton usa a estratégia [Perdoem ao Sr. Colucci o não saber a diferença entre estratégia e tática. Afinal, ele é apenas um engenheiro.] conhecida como ‘boneco de palha’: constrói um simulacro ridículo das idéias do adversário – o boneco de palha – e o destrói para cantar vitória.’

Se de fato Milton faz isso com Richard Dawkins, veremos na segunda parte. Por enquanto basta notar o seguinte: é preciso muita prática em estudos retóricos para perceber que a acusação de construir um boneco de palha está sendo usada, no mesmo ato, como palha para construir um segundo boneco. O leitor comum não tem essa prática e, desviados os seus olhos para a safadeza que Milton supostamente fez com Dawkins, nem de longe se dá conta de que a mesmíssima safadeza está sendo feita comigo bem diante dos seus olhos.

É a aplicação mais literal e exata da receita leninista para destruir os inimigos: ‘Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.’

6. Mas, por incrível que pareça, um só boneco de palha escondido por trás de outro não satisfaz à volúpia construtiva do engenheiro. Para completar a empulhação é preciso ainda inventar um Olavo de Carvalho criacionista e, esmurrando esse simulacro, jurar que está batendo em mim.

Já no primeiro parágrafo o Sr. Colucci impinge ao leitor a ilusão de que sou não só um adepto dessa teoria, mas um ardoroso porta-voz local de seus teorizadores americanos:

‘Criacionismo é a noção de que os seres vivos foram criados tal qual são pelo criador onipotente. Se o leitor pensa que essa é uma esquisitice americana que jamais chegará aos trópicos, é melhor pensar de novo. Graças aos esforços de religiosos fundamentalistas, o criacionismo começa a organizar-se no Brasil. Uma vez que os criacionistas não fazem ciência, e não contam com o suporte de evidências, pesquisas e teorias minimamente plausíveis, sua obsessão é criticar a evolução e os evolucionistas, ou o que percebem como falhas nestes. Para essa tarefa contam com a ajuda ocasional de um ou outro ignorante em ciência que os defende na imprensa com fervor, digamos, religioso.’

Evidentemente o Sr. Colucci não me perguntou o que penso do criacionismo. Atribuiu-me a teoria mais conveniente aos seus propósitos, camuflando o seu procedimento ardiloso sob a acusação feita a Milton de usar do mesmo ardil.

Criatividade pura

Caso ele me perguntasse, eu teria lhe passado às mãos esta minha apostila do Seminário de Filosofia de 2002:

Evolucionistas e criacionistas

Olavo de Carvalho

Talvez não haja mais eloqüente sinal da miséria mental dos nossos tempos do que o debate entre o evolucionistas e anti-evolucionistas. Nunca tanta informação científica foi usada a serviço de idéias tão simplórias e filosoficamente insustentáveis.

Invariavelmente, a questão toma aí a direção de um confronto entre a combinatória espontânea e a idéia de um ‘propósito’ da criação. Se for possível provar que o homem como espécie biológica nasceu de adaptações oportunistas às exigências do meio-ambiente físico, acreditam os materialistas, estará derrubada a hipótese de um plano inteligente na engenharia da criação. Inversamente, para sustentar essa hipótese, será preciso reduzir cada passo da história natural a uma etapa lógica de um longo silogismo cosmogônico cuja premissa maior seriam as metas fixadas por Deus antes da criação do mundo.

Em termos aristotélicos, é uma disputa entre causas eficientes e causas finais. O método consiste portanto em examinar as primeiras para saber se elas se bastam a si mesmas ou se exigem uma explicação suplementar finalística.

O papa atual do evolucionismo, Richard Dawkins, simplifica ainda mais a fórmula do problema: trata-se apenas de saber se ‘organizações complexas’, como homens e computadores — e homens que fazem computadores — podem ser explicadas a partir de meros arranjos bem sucedidos ou se requerem um plano inteligente. Se a sucessão de arranjos não deixar nenhum hiato para as causas finais, adeus causas finais. Os adversários do evolucionismo, por isso, são pertinazes buscadores de hiatos na sucessão de arranjos oportunistas (ou causas eficientes).

Ninguém aí parece se dar conta de que a finalidade de qualquer coisa transcende, por definição, a existência material dessa coisa. Nenhum ente, examinado nas minúcias da sua constituição imanente, revelará jamais sua finalidade, porque esta, se existe, só pode realizar-se para além dele. Sinais que insinuem uma finalidade podem-se talvez encontrar no corpo do imanente, porém sempre juntos com indícios contraditórios que ao menos pareçam desmenti-la. Se a finalidade estivesse explícita, manifesta, nítida na atualidade corporal do ente, ao ponto de poder ser provada empiricamente como um dado sensível, ela estaria, por isso mesmo, plenamente realizada na existência atual, sem qualquer necessidade de um salto para o transcendente.

Mais ainda, nenhum fato, por mais simples que seja, pode produzir-se sem o encadeamento completo de suas causas eficientes, acidentais inclusive. Se por explicação se entende a reconstituição intelectual desse encadeamento, todo e qualquer ato ou acontecimento pode ser inteiramente ‘explicado’ por suas causas eficientes, sem qualquer necessidade de uma causa final. Esta só aparece pelo sentido total do resultado último, que se estende para além da materialidade do fato mesmo.

Por exemplo, toda a sucessão causal de gestos que um marceneiro realiza para construir uma mesa tem de poder ser explicada pelas causas psicofisiológicas e processos mecânicos postos em movimento durante a operação. Se um só desses elementos falhar, a mesa não chegará a existir. Logo, a sucessão das causas eficientes não pode ser incompleta. Se dependêssemos disso para poder apostar numa causa final da mesa, jamais as mesas teriam qualquer finalidade ou utilidade. A finalidade — portanto a intenção — só se revela no sentido da forma final tal como este se revelará no uso que alguém possa vir a fazer da mesa. Este sentido evidentemente está para além da sucessão de gestos do construtor, portanto também além da operação total de construção da mesa. Nenhum exame das operações realizadas pelo marceneiro, bem como das transformações sofridas pela madeira durante essas operações, nos dirá jamais para que serve uma mesa ou o que o marceneiro tinha ‘em mente’ ao construí-la. É verdade que o uso previsto determina a forma essencial da mesa; mas a conexão entre a forma essencial e a seqüência da construção é meramente acidental, já que há muitas maneiras de construir uma mesa. Logo, o conhecimento dessa seqüência, por si, não pode mostrar o propósito final senão a quem o conheça antecipadamente.

Se isso é assim para a simples fabricação de um artefato, quanto mais não o será para a totalidade operante da natureza universal!

No entanto, os evolucionistas não cessam de tentar completar a descrição em detalhes do processo originante dos seres da natureza, na esperança de suprimir as causas finais, e os anti-evolucionistas não cessam de buscar hiatos nesse processo, na esperança de salvá-las.

A dose de canhestrice filosófica necessária para se empenhar em qualquer dessas linhas de argumentação é formidável.

A rigor, seria inconcebível, metafisicamente, um mundo criado que mostrasse claramente, nos lineamentos da sua construção material, a prova da sua finalidade. A razão disto é simples. Nenhuma realidade concreta pode consistir somente de seus traços essenciais, reveladores da sua natureza. Tudo o que existe requer, para existir, a concorrência de um número ilimitado de acidentes que preparam, acompanham e sustentam sua existência. A possibilidade de localizar, na malha de acidentes, a linha nítida de uma ‘finalidade’, é praticamente nula. Sinais, indícios da finalidade, certamente existirão, mas sempre de mistura com uma massa obscura de acidentes fortuitos que ao menos parecerão desmenti-la e que a desmentirão mais ainda se, na esperança de encontrá-la, revirarmos cada um em busca de descobrir as causas eficientes que os produziram; pois nada acontece sem causa eficiente e a descoberta das causas eficientes que produziram os acidentes pode prosseguir indefinidamente, sem que jamais se reconstitua a lógica do todo.

Por exemplo, a execução de uma sinfonia consiste de uma grande número de gestos corporais e efeitos mecânico-acústicos que, rastreados um a um, dissolverão cada vez mais a forma final da sinfonia num caos de processos fisiológicos e físicos nos quais será impossível encontrar o menor sinal de uma ‘idéia musical’. É deplorável o esforço com que os anti-evolucionistas se empenham em demonstrar a existência da Quinta Sinfonia de Beethoven mediante a revelação de hiatos causais na fisiologia dos músicos e na mecânica dos instrumentos. É grotesco o ar de triunfo com que os evolucionistas, preenchendo esses hiatos, crêem ter demonstrado a inexistência de Beethoven.

Nem o evolucionismo nem o anti-evolucionismo são teorias científicas, porque nenhum dos dois pode ser validado ou impugnar o outro exceto por uma acumulação ilimitada de provas e contraprovas.

A discussão só prossegue porque é possível alguém conhecer muita biologia ignorando ao mesmo tempo os princípios da lógica científica, enquanto seu adversário conhece muita teologia sem ter a menor idéia de quanto ela depende de pressupostos metafísicos.

05/03/02

O mesmo argumento, mais compactamente, foi apresentado no meu artigo ‘Evolução e mito’, publicado no Jornal da Tarde de 6 de maio de 2004:

‘As discussões correntes sobre evolucionismo e criacionismo, ciência e fé, espiritualismo e materialismo, são em geral bem pobres de compreensão filosófica, em comparação com a riqueza de dados e argumentos que põem em jogo. Se eu metesse minha colher no assunto, seria apenas no intuito de chamar a atenção para algumas precauções básicas que têm sido aí bastante negligenciadas.

É que o ser humano só tem três linguagens para dar forma ao que apreende da realidade: o mito, que expressa compactamente impressões de conjunto; a ciência experimental, que descreve e explica grupos particulares de fenômenos segundo um protocolo convencional de métodos e aferições; a filosofia, que faz a transição entre as duas anteriores. Qualquer conhecimento satisfatório das origens escapa necessariamente às possibilidades da ciência, já que a descoberta delas seria apenas mais um capítulo do mesmo processo cósmico que se pretende explicar e não um miraculoso arrebatamento da mente científica para fora e para cima do processo. Um evolucionismo conseqüente teria de explicar-se a si mesmo como etapa da evolução, mas para isso seria forçado a abdicar da pretensão de veracidade literal e consentir em ser apenas mais um símbolo provisório depois de tantos, sujeito, como todos eles, a converter-se no seu contrário mais dia menos dia. A única verdade do evolucionismo é a de uma contrapartida dialética do criacionismo, assim como nenhum criacionismo pode existir sem deixar aberta alguma brecha evolucionista.

(…) Tanto o evolucionismo quanto o criacionismo são mitos, isto é, narrativas analógicas, insinuações finitas de um conteúdo infinito, separadas do seu sentido por um hiato tão imensurável quanto esse mesmo sentido.’

É bem difícil fazer do autor desses textos um ‘criacionista’ no sentido em que o termo é empregado nas polêmicas usuais pró e contra o evolucionismo. Bem mais difícil é fazer dele um fanático empenhado em defender o criacionismo ‘com um fervor, digamos, religioso’. Para inventar esse personagem, o Sr. Colucci já teve de transcender a mera falsificação e entrar no campo da criatividade pura.

Exame dos procedimentos

Mas para que iria o engenheirinho de Boston perder tempo com o mero detalhe de investigar quais são as idéias de um autor, se era mais cômodo lhe atribuir outras, mais estereotipadas e toscas, mais fáceis de expor ao ridículo?

A expressão ‘fundamentalismo religioso’ já está tão carregada de conotações ruins, e o criacionismo tão associado à imagem dos fundamentalistas, que o mais prático era construir logo um espantalho com esses materiais e, destruindo-o, dar o adversário como derrotado por nocaute técnico (e derrotado duplamente, como ‘criacionista’ e como ‘admirador de Richard Milton’) antes mesmo de começar a discutir o conteúdo dos seus argumentos, isto é, o comprometimento do darwinismo com as ideologias totalitárias e a ‘paralaxe cognitiva’ imputada ao Sr. Richard Dawkins.

Sim, porque o escrito do Sr. Colucci é extenso, e ele só entra nesses dois assuntos após um longo rodeio consagrado à operação preliminar de construir dois bonecos de palha e destruí-los para indispor o leitor contra mim, preparando-o para acumpliciar-se às tontas com o restante da patifaria como quem compartilha as delícias de uma vitória já assegurada de antemão.

A essa altura, já carimbado como criacionista fanático, fundamentalista cego, falsificador de declarações alheias e admirador de ignorantes, com que cara compareço diante do leitor para defender minhas opiniões? Com a cara pisoteada e estraçalhada dos bonecos que o Sr. Colucci tão engenhosamente construiu, tão cuidadosamente disfarçou sob as feições do boneco atribuído a Richard Milton e, por fim, tão valentemente destruiu no palco do seu teatrinho verbal.

O exame dos procedimentos argumentativos do Sr. Colucci não deixa margem a dúvidas: estamos diante de um vigarista consumado.

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Jornalista e escritor