Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre a morte e os temores primitivos

A matéria de capa de Veja da semana passada (edição 1.904, de 11/5/2005), com a chamada ‘Vida após a morte’ ilustrada por um par de pés sustentando uma etiqueta pretensamente irônica (‘Volto já’), mais que de péssimo gosto é um atentado à inteligência de seus leitores. Além de evidência do ponto em que estamos quanto à banalização e superficialidade na cobertura jornalística. Por várias e diferentes razões.

Se os editores de Veja tivessem interesse em tratar seriamente um assunto que, de uma ou outra forma, interessa a todas as pessoas (até onde sabemos, todos vamos morrer, o que parece irrelevante e sujeito à suspeição por parte de Veja), deveriam, antes de tudo, articular uma pauta minimamente consistente.

O que foi publicado, sob o chapéu de ‘especial’, não passa de colagem de lugares-comuns, entremeada por uma e outra entrevista, evidência clara de que o assunto não foi pensado, avaliado, nem devidamente considerado – o que, para citar Sigmund Freud (1856-1939), invocado a corroborar afirmações que nunca leu, é um sintoma a ser considerado.

A pretensa ironia do texto, articulada por suposta superioridade de um crítico falando aos ouvidos do leitor, não passa de atitude defensiva para um trabalho que, honestamente, não paga a pena, como se dizia à época dos manuscritos.

Mal-disfarçado, aqui e ali, por citações de psicanálise, sociologia, antropologia (e a praga jornalística de gente famosa), a matéria de capa de Veja é uma costura no melhor figurino do que Alan Sokal e Jean Bricmont chamaram de ‘imposturas intelectuais’, num livro que leva este título, referindo-se ao abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos (Editora Record, 1999, 316 pp.).

Mesmo que fosse tratar de religião, abordagem a que o texto na verdade se limita, a superficialidade já seria insuportável. Há uma bibliografia razoável em português, de fácil acesso, capaz de sustentar um tratamento mais promissor que o pastiche oferecido por Veja.

O que é a vida?

Se a principal revista semanal do país aborda um assunto com a dimensão da morte com tamanha superficialidade, o que esperar de redações de vestibulares?

Num quadro comparativo, entre espiritismo, cristianismo, budismo e outras religiões, Veja faz referência aos Camaiurás, povo do tronco lingüístico Tupi-Guarani, do Xingu, como contraponto.

O exotismo pode parecer interessante à primeira vista. Na realidade é um recurso invocado sistematicamente na tentativa de dar sabor a abordagens insípidas, onde se serve gato por coelho.

O fato, aqui, é que hoje o Alto Xingu forma uma sociedade intercultural, o que implica uma influência mútua entre todos os povos da região, retirando dos Camaiurás, em particular, a legitimação a eles atribuída.

Criticar Veja, deve-se dizer, é uma tarefa espinhosa. Como seus editores costumam fabricar textos a partir do que pensam que deveria ser esta ou aquela realidade, nunca se sabe exatamente o que um repórter originalmente escreveu, mesmo que o texto lhe seja atribuído, configurando uma realidade que vai além dos escritos de Freud, aproximando-se de Fiodor Dostoievski (1821-1881) enquanto construção de absurdos.

Numa abordagem promissora do que é a morte e dos insondáveis domínios além do Aqueronte, o rio que as almas devem cruzar segundo descreveu Homero na Odisséia, certamente é imprescindível discutir o que é a vida.

E descrever o que é a vida em sua essência permanece um desafio para a ciência, mesmo com a publicação, há mais de meio século, do clássico O que é vida (Editora Unesp, 1977, 192 pp.), do físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961), volume que inclui os textos ‘Mente e matéria’ e ‘Fragmentos autobiográficos’. Sem falar da releitura de Schrödinger, em uma obra homônima (O que é vida? 50 anos depois – Especulações sobre o futuro da biologia, Editora Unesp, 1997, 221 pp.).

Sociedades diferenciadas

Deixar ao alcance dos leitores a dificuldade de se compreender o mistério da vida neste início de século 21 – quando tudo parece revelar-se com meia dúzia de procedimentos banais – certamente abre uma perspectiva mais promissora para abordar a natureza enigmática da morte.

Neste caso, o núcleo de interesse está em saber o que sobrevive a esse processo radical. Se é que alguma coisa que poderíamos reconhecer como um ‘eu’ mantém-se em outra dimensão. E o que sobrevive à morte, se de fato algo sobrevive, como acreditam praticamente todas as culturas humanas desde os tempos mais remotos?

Stanislav Grof, autor de A mente holotrópica (Editora Rocco, 1994, 280 pp.), líder de pesquisas no Centro de Pesquisas Psiquiátricas de Maryland e professor-assistente na escola de medicina da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, considera que ‘as modernas pesquisas sobre a consciência lançam luz nova sobre a questão da sobrevivência da consciência depois da morte’. Mas, adverte Grof, para isso é preciso rever a postura da grande parte de pesquisadores científicos não habituados a essas evidências e que, por isso mesmo, preferem ignorá-las.

No texto ‘Sobrevivência depois da morte: Observações a partir de modernas pesquisas sobre a consciência’, que integra Explorações contemporâneas da vida depois da morte (Editora Cultrix, 1997, 265 pp, Gary Doore, organizador), Grof defende a alteração de consciência com o uso de drogas como LSD, psicoterapia experimental e diferentes formas de meditação, além de estados de consciência não habituais, como meios capazes de fornecer ‘uma experiência direta de muitos fenômenos descritos em visões do mundo místico-religioso e mitologias escatológicas’, tratados sobre os fins últimos dos humanos.

Essas evidências, defende Grof, ‘dão apoio a uma visão de mundo que reconhece a realidade da sobrevivência post mortem da consciência’.

A perspectiva, aqui, evidentemente, não é a da aceitação pura e simples de hipóteses envolvendo as possíveis realidades post mortem, ou determinada concepção de consciência. Mas o fato de haver um número crescente de abordagens nesta direção. Até porque, resultado de um discurso alienante da mídia (a que Veja dá sua contribuição), substâncias capazes de alterar estados de consciência são tratadas como assunto de polícia, jamais como teorias do conhecimento.

Neste caso específico, um clássico – Plants of the Gods: origins of hallucinogenic use, de Richard Evan Schultes e Albert Hofmann (McGraw-Hill, 1979, 190 pp.) – nunca editado no Brasil refuta qualquer interpretação policialesca. Schultes, para localização de interessados, é naturalista e diretor do Museu Botânico da Universidade de Harvard e Hofmann, químico, o sintetizador do LSD.

Assim, se sociedades diferenciadas, como determinados povos indígenas brasileiros, caso dos ianomâmis, fazem uso de substâncias ‘mágicas’ em rituais religiosos, a tendência é interpretá-las não como sociedades diferenciadas, mas como retardatárias numa espécie de corrida em direção a um conceito vago de ‘progresso’.

Campo de batalhas

Abordar um tema como ‘vida após a morte’ como se propôs Veja sem se referir especificamente à natureza da consciência é contribuir para a confusão, em lugar de algum esclarecimento.

Rupert Sheldrake, biólogo e filósofo da ciência inglês, tem sua própria legião de detratores, em função de abordagens pouco convencionais expostas em livros como A new science of life e The presence of the past, entre outros. Mas seus conceitos de campo morfogenético, ressonância mórfica e hipótese de causação contínua para investigar o desenvolvimento de embriões a partir de um ‘banco de memória’, ou ‘memória acumulada’ de uma espécie, é, no mínimo, interessante para não ser levado em conta, como faz Veja.

Relacionado à noção de campo, uma estrutura imaterial como o campo gravitacional tem sido considerada para explicar a consciência individual comparada a um aparelho de rádio doméstico, que capta emissões – o que significa dizer que a música que se ouve no rádio não está contida em seu interior. A analogia aqui é que a consciência não seria produzida pelo cérebro individualmente, mas o cérebro, como um equipamento de rádio, ‘sintoniza’ o que chamamos consciência, como admitem Sheldrake e o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941).

Claro que são considerações não-estabelecidas. A ciência é um campo de batalhas para as idéias. Algumas sobrevivem e prosperam, ao menos por certo tempo. Outras são aniquiladas de imediato. A ciência leva a marca do homem. Não tem nada de supra-humano, ainda que discursos com este conteúdo sejam relativamente freqüentes, mesmo em ambientes de boa cultura.

Razão básica

Há outras referências e autores indispensáveis em qualquer abordagem mais consistente sobre a possível sobrevivência de algo após a morte que Veja simplesmente ignora.

As Experiências de Quase Morte (EQMs) são uma delas. Esses casos têm sido relatados por pacientes que num determinado momento foram considerados como clinicamente mortos e que, por razões diversas, não cruzaram o Aqueronte.

Relatos de deslocamentos fora do corpo, de travessia de túneis luminosos e mesmo de cursos d’água, remetendo-nos a Homero e ao Aqueronte visitado por Ulisses, são freqüentes nesses casos. Em conexão com o que narra também O livro tibetano dos mortos, ou Bardo Todol, compilação de relatos milenares com instruções e recomendações para um moribundo partir deste mundo com dignidade, conhecimento de que praticamente nos esquecemos e nos ressentimos, sem consciência do significado desta perda.

Uma corrente de pesquisadores atribui esses fenômenos a uma espécie de ‘delírio do cérebro’. Mas eles não são a totalidade dos pesquisadores e, se fossem, a mera estatística não lhes garantiria a certeza de estarem de posse da verdade.

A ciência mecanicista que emergiu com o século 17 trouxe um avanço no conhecimento natural e um recuo do universo mágico/teológico cultivado desde o desmoronamento da ordem greco-romana, na altura do século 4. Mas isso também não significa – para citar Thomas Kuhn (1922-1996), filósofo da ciência muito citado e pouco lido – que desde então tudo tenha se estabelecido definitivamente.

Quanto a alguns autores praticamente indispensáveis em investigações nos domínios da morte estão Michael Grosso, Ian Wilson e Raymond A. Moody Jr., nenhum deles presente nos relatos de Veja.

Michael Grosso, filósofo e autor de The final choice, entre um sem-número de artigos nesta área de pesquisa intriga-se com o fato de ‘pessoas inteligentes não só permanecerem indiferentes, mas manifestarem resistência’ em relação a novas considerações no domínio da morte. Considera que existe ‘uma espécie de conspiração contra essas informações, uma necessidade de torná-las inofensivas, irrelevantes ou inexistentes’, como faz Veja. Para Grosso, essa resistência ‘é um fenômeno interessante e desconfio que faz parte de um medo do irracional, profundamente arraigado, um medo da sombra, em dialeto Junguiano’.

Quanto a Ian Wilson (A experiência da morte – Indícios de vida após a morte, Editora Campus, 1995, 274 pp.) e Raymond Moody Jr (Vida depois da vida, Nórdica, 1979, 172 pp.) também não servem para consumo indiscutível. Mas são citações indispensáveis nessa área de investigação, mesmo para serem refutados.

A razão básica para ser assim é que a ciência é, fundamentalmente, um encontro renovado com o desconhecido, sistematizada pelo método que, como tudo, também se transforma ao longo do tempo.

Sob o domínio da futilidade

Apegar-se a determinados conceitos como definitivos é um erro já demonstrado como a aceitação ortodoxa do aristotelismo e o princípio de que, além da esfera da Lua, reinava a perfeição, caracterizada pelo imutável. Mesmo que a morte de estrelas, algo então inaceitável, fosse visível a olho nu, à luz do dia.

A proposta de novas abordagens na investigação da morte e da eventual sobrevivência seja lá do que for (se é que algo realmente sobrevive) a este evento inevitável, a única certeza que temos neste universo, encontra sistematicamente oposições formais, mas entre eles a capa de Veja nem chega a ser exemplo.

Isso a partir da pressuposição de que o mundo físico fosse algo mais familiar, mais tangível e confiável, por assim dizer – o que, rigorosamente, não chega a ser verdade. Ao menos nos termos em que é comumente referido.

Em ‘Além do dualismo e do materialismo: Um novo modelo de sobrevivência’, abordagem que também compõe o livro Explorações contemporâneas da vida depois da morte (organizado por Gary Doore), Mark Woodhouse, da Geórgia State University, retoma Einstein para dizer que ‘consideramos a matéria como sendo constituída pelas regiões do espaço nas quais o campo é extremamente intenso’, interpretando, em relação à relatividade, que ‘neste novo tipo de física não há lugar para campo e matéria, pois o campo é a única realidade’.

Ou ainda, tomando de empréstimo a descrição de Herman Weyl (1885-1955), matemático alemão com importantes trabalhos na teoria da relatividade e filosofia matemática, para quem…

‘…uma partícula material, como o elétron, é apenas um minúsculo domínio do campo elétrico em cujo interior a intensidade do campo assume valores extremamente elevados. Este nó energético, que não está claramente delineado em função do campo remanescente, propaga-se através do espaço vazio como uma ondulação da água na superfície de um lago’.

A conclusão destas últimas considerações é que, ao contrário do senso comum, a vida e o que chamamos realidade, com lastro na materialidade do que nos parece familiar, é, na essência, uma experiência de profundo estranhamento.

Daí que abordagens sobre a morte, sua inevitabilidade e as tentativas de mapeamento de seu interior, como incursão num buraco negro, devessem ser mais metódicas e abrangentes. Caso contrário estaríamos apenas ampliando os domínios da futilidade, ignorância e medo – acuados por temores primitivos, como sugere Michael Grosso.