Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Cinema é alma de um país

(Foto – Divulgação- 43ª Mostra)

As notícias abrem o mundo diante do leitor, como acontece com os livros e os filmes. É isso que faz todo ano a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que corre esta semana e vai até o dia 30, com reprise dos vencedores no primeiro fim de semana de novembro. Na seleção deste ano, é possível desvendar a posição da mulher em vários países. Como na Argélia dos anos 1990 – onde, em Papicha, na direção de Mounia Meddour, descobre-se o perigo e o drama de uma jovem que estuda francês e ousa dispensar o véu, a religião, os costumes arcaicos do país e gostar de baladas. E na ficção da Macedônia dirigida por Teona Strugar Mitevska, Deus é Mulher e seu nome é Petúnia, em que mulheres são proibidas de apanhar a cruz de madeira atirada ao rio todos os anos pelo padre, cuja posse traz sorte e prosperidade reservada aos homens. Uma surpresa descobrir o roubo de bebês na Sérvia – 500 bebês desaparecidos em Belgrado sem solução até hoje – na ótima ficção Cicatrizes, de Miroslav Terzic. Na Turquia, outra ficção remete os brasileiros ao caso de Suzane von Richthofen e a morte dos pais pela filha e o namorado, como acontece em Pertencer, de Burak Çevic. A realidade fica mais tocante quando se trata de um documentário sobre catorze mulheres relatando a dor de um estupro, anos, décadas atrás, na produção belga-francesa O que não mata, de Alexe Poukine. E o real fica bem focado noutro documentário, Isso muda tudo, de Tom Donahue, onde Geena Davis, Meryl Streep, Cate Blanchett e várias mulheres desvendam a disparidade entre homens e mulheres nos bastidores cinematográficos de Hollywood.

O cinema no cinema começa com Banquete Coutinho, que dá uma lição sobre a passagem da ficção para o documentário – uma forma de se livrar dos preconceitos e utopias. “As pessoas comuns não temem pelo seu discurso, não têm muito a perder, e o que me interessa é saber o que se passa entre o seu nascimento e sua morte, só isso”, disse Eduardo Coutinho, morto há cinco anos. O documentário é o primeiro de Josafá Veloso, para quem o cineasta entregou sua alma. Bárbara Paz arranca a alma de Hector Babenco em cenas íntimas e dolorosas até o final de sua morte por um câncer que o acompanha desde os 38 anos, e o cineasta argentino vai falando de cinema em várias memórias e reflexões em Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou. O renascimento do cinema brasileiro nos anos 1990 começa com o casamento inusitado de cineastas nordestinos e paulistas que resulta num núcleo de resistência e uma firme vontade de desenterrar raízes brasileiras na música, pintura, teatro e literatura.

Infelizmente, o apoio a produtores e diretores brasileiros não acontece na mesma dimensão que na Argentina ou na Coreia do Sul, ambos com ótimos filmes na Mostra, como A bóia, de Fernando Spiner, documentário sobre a poesia e o mar, e Parasita, de Bong Joon-Ho, sobre as distâncias sociais entre a família de Ki-taek e os abastados Park. O encontro dos dois resulta num conflito inesperado e um belo filme, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes.

O distanciamento entre Brasil e Portugal ainda atrapalha e há uma chance de diminuir com O filme de Bruno Aleixo, de João Moreira e Pedro Santo, com várias citações a filmes clássicos e a personagens lusos que não são familiares a brasileiros. O personagem principal é cômico e famoso, existe há vários anos no YouTube, agora no telão. Outra peculiaridade do cinema é o filme feito com três celulares, Viajante da meia-noite, do Catar, com produção do Canadá, Reino Unido e EUA. Com direção de Hassan Fazili, fala sobre a saga da própria família de Fazili, obrigada a deixar o Afeganistão em busca de um refúgio pelo mundo durante três anos.

Nem sempre as coisas dão certo no cinema. O diretor húngaro Peter Medak amargou, em 1973, o filme O fantasma do sol do meio-dia, boicotado pelo principal e temperamental ator, Peter Sellers – drama só revelado por ele agora, 46 anos depois, num documentário tragicômico, O fantasma de Peter Sellers. O mesmo aconteceu com Orson Welles e sua produção milionária É tudo verdade, de 1 milhão de dólares, iniciada no Ceará para reconstituir, um ano depois, a épica viagem de 2.381 quilômetros de quatro jangadeiros em 61 dias no mar, em 1941, entre Fortaleza e o Rio de Janeiro. Tudo entremeado com o Carnaval e Grande Otelo, mas o estúdio RKO cancelou o projeto no meio, justo depois de Jacaré, um dos jangadeiros, morrer na travessia durante a filmagem. Welles não desistiu e voltou meses depois com US$ 10 mil para terminar seu filme, que não vemos neste documentário A jangada de Welles, de Firmino Holanda e Petrus Cariry.

O que se aprende sobre Cuba e Estados Unidos em 130 minutos de prazer no filme Wasp network é tudo verdade, filmado pelo francês Olivier Assayas em cima do livro de Fernando Morais, Os últimos soldados da Guerra Fria (Companhia das Letras, 2011). Trata-se da espionagem de quatro cubanos personificados por um ator argentino, Leonardo Sbaraglia, um venezuelano, Edgar Ramirez, um mexicano, Gael García Bernal, e o brasileiro Wagner Moura. A atriz que faz a mulher cubana de Ramirez é a espanhola Penélope Cruz. Uma espetacular engrenagem de bastidores em Miami e Havana produz um filme interessantíssimo. Tudo documentado no livro sobre a Rede Vespa, pesquisada entre os dois países por Fernando Morais. “Fui a Miami pelo menos vinte vezes enquanto escrevia o livro. E tinha tanto medo de apanharem meus documentos na alfândega que fiz duas cópias de cada, uma veio no vôo comigo para o Brasil e, a outra, de navio”. Quando terroristas americanos começam uma onda de ataques a Cuba visando dinamitar o turismo da ilha e matar Fidel Castro, os cubanos entram no contra-ataque sem que nem suas próprias famílias saibam, pensando que são gusanos, traidores, não heróis da pátria arriscando suas vidas. Para disfarçar, falam russo entre eles.

Autores em geral odeiam filmes sobre seus livros, o que aconteceu com Alberto Dines e Morte no Paraíso e Antônio Callado com todos os filmes rodados sobre suas obras. Jorge Amado confidenciou a Fernando Morais, que perguntou o que ele recomendaria a um autor sobre um filme feito por um cineasta inspirado em seu livro: “Que não veja. Você cria um personagem suarento, de camisa aberta, e encontra na tela seu fulano enfiado num toureiro espanhol magrinho, limpinho, elegante”. Amado nunca viu a versão de seus livros em filmes. Fernando Morais também conta que Rachel de Queiroz mandou retirar seu nome dos doze capítulos da minissérie Memorial de Maria Moura, da TV Globo, por não reconhecer seu livro na telinha. Fernando Morais, ao contrário, gostou muito dos atores escalados por Assayas e do enredo. Especialmente por Assayas não ter usado a saída fácil de contratar atores americanos com sotaque espanhol-cubano, e sim hispano-americanos, além de Wagner Moura. No final, aparece uma cena do próprio Fidel intrigado com a atitude dos Estados Unidos: “O país que mais espiona países está processando Cuba, o país mais espionado do mundo?”

Na Mostra deste ano, nenhum filme supera o do palestino Elia Suleiman, que interpreta ele próprio em O paraíso deve ser aqui e quase não fala, apenas diz “Nazaré” e “sou palestino” para um taxista nova-iorquino. Mas ouve muita discrepância, como a recusa do estúdio onde tenta obter financiamento na França. A justificativa: “O projeto não é suficientemente palestino”, ou seja, não tem os estereótipos necessários. Não há referência política explícita, apenas um carro que passa ao lado com dois policiais israelenses transportando uma mulher árabe vedada. O olhar de Suleiman, a câmera focada nos seus olhos, as imagens que registra e enquadra como se os olhos fossem uma câmera, simbolizam o próprio cinema, às vezes ressaltando o que há de cômico e surreal entre Paris e Nova York e sua Nazaré.

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Norma Couri é jornalista.