Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cinema em prosa, verso e política

Um paradoxo, enquanto a civilização da imagem se impõe sobre a nova geração, reduzindo mesmo o uso do vocabulário e dificultando o raciocínio abstrato, o Festival de Berlim surpreende propondo na sua principal mostra, a da competição internacional, nada menos que quatro filmes literários.

O filme chinês de Yang Chao, “Seguindo a Corrente”, é uma composição poética, calcada na navegação de um barco cargueiro enferrujado, uma verdadeira sucata, pelo rio Yangtzé, o maior da Ásia, com 6300 quilômetros de comprimento. Nasce nos Montes Kunlum, no Tibete, atravessa a China até o mar da China Oriental, irrigando suas terras férteis e serpenteando entre montanhas.

É uma narrativa poética feita ao desfilar das imagens, a exemplo do filme “Cartas da Guerra”, numa mistura de contos e lendas ligadas à viagem do filho do falecido capitão piloto do cargueiro, obrigado, segundo a tradição, a navegar pelo rio a fim de libertar a alma do pai ao chegar ao mar.

O jovem Gao Chun, enquanto navega, procura em cada cidade de acostamento, encontrar o amor de sua vida, mas cada moça que encontra é sempre a mesma ou na sua cama ou correndo nos declives das montanhas costeiras.

Os portos envoltos pela neblina ou poluição, como o de Shangai, se sucedem, surgem desfiladeiros entre altas montanhas, meandros, numa longa viagem cheia de histórias, como a da jovem que, depois de uma noite de amor, rouba o corpo de um capitão e desaparece no porto, obrigando o capitão, agora com corpo de mulher, a repetir a façanha para poder continuar a navegar.

Não será surpresa se este filme poético, imagino em rimas chinesas, ganhar algum Urso, pela beleza das imagens, pelo som, pelas histórias e pelo caminho sobre as águas do Yangtzé, todo ele uma história da China.

Outro filme literário do tipo epistolar foi o português “Cartas da Guerra”, de Ivo Ferreira, já comentado aqui , e forte candidato ao Urso.

Editada em prosa é a história real do filme inglês “Genius”, de Michael Grandage, envolvendo um escritor, Thomas Wolfe e seu editor, Max Perkins, descobridor de talentos literários, como Hemingway e Fitzgerald.

Mais literário não poderia ser, pois o filme começa com o editor Perkins preso no texto de um enorme pacote de páginas datilografadas, que o autor enviara à sua editora. Ali, naquela descoberta de um novo escritor, começa uma forte amizade entre o autor excêntrico, hiperativo, incontrolável com o editor, um autêntico gentleman, contido e sério, cuja missão maior era a de orientar a vertente prolixa de Thomas Wolf, em favor de uma maior concisão.

Thomas Wolfe se tornou um autor de sucesso, praticou a ingratidão de se revoltar contra seu descobridor, mas com ele se reconciliou poucos dias antes da morte prematura com trinta e poucos anos.

O outro filme literário é “O Futuro”, da francesa Mia Hansen-Love com a atriz Isabelle Huppert, séria candidata ao premio de melhor atriz. Conta a vida acadêmica de um casal, ela é professora de filosofia num liceu parisiense, escreve numa coleção de livros filosóficos de uma pequena editora, enquanto o marido leciona numa universidade.

O clima na família é intelectual com cenas, no filme, de gente comprando livros, lendo no transporte público, discutindo o que leu em casa, com amigos ou na escola, ou seja, um filme bem francês. Nesse contexto filosófico literário, o marido encontra uma espanhola e rompe um casamento de 26 anos, a mãe da professora morre e a editora suprime a coleção na qual ela escreve. Só lhe resta um gato e a necessidade de se adaptar à nova vida solitária.

Livros, poesia, cartas de amor, tratados de filosofia, editor de livros à procura de autor de sucesso, esse é o 66. Festival de Cinema de Berlim, sem se esquecer de que praticamente quase todos os filmes se inspiraram em livros de sucesso, como “Sós em Berlim“, romance inspirado numa história real de Hans Fallada.
Michael Moore e a ilusão americana

Convalescendo de uma pneumonia, o cineasta documentarista, escritor e provocador Michael Moore não pôde vir a Berlim para  lançar seu novo filme “Onde Será a Próxima Invasão”. Para não ficar um vazio entre seus admiradores, Moore enviou um vídeo, ao que parece trajando um roupão, mas já em casa.

Os Estados Unidos costumam resolver tudo na força e na violência, invadindo e desfechando guerras sem negociar antes uma solução pacífica, utilizando mentiras se for necessário e ignorando a ONU quando isso lhe convém.

Michael Moore propõe um tipo de invasão diferente – em lugar do petróleo, buscar nos outros países, sem dar nenhum tiro, aquelas iniciativas e soluções inexistentes entre os americanos, embora tantos latinos pensem ser os EUA, o Eden criado por Deus.

Algumas horas antes da projeção do filme de Moore, foi Spike Lee quem insistiu no fato dos EUA ser um país violento e com sua cultura calcada em cima do dólar e do lucro. “Onde Será a Próxima Invasão” vai na mesma linha, porém, não de maneira acusatória e sim para evidenciar as falhas e atrasos dos americanos nas questões trabalhistas, educacionais, de direitos humanos e assim por diante.

Entre soluções superiores às encontradas pelos americanos estão o sistema de saúde e previdenciário dos franceses ; a política de legalização de certas drogas aplicada pelos portugueses ; o comportamento natural de muitos europeus com relação aos seus corpos nos campos naturistas de nudismo ; as merendas escolares nas escolas francesas ; as longas férias concedidas aos operários italianos ; o melhor sistema educacional dos finlandeses ; a maneira como foram processados e presos os banqueiros islandeses envolvidos na falência do país ; e como os noruegueses processaram sem violência o maior assassino do país, o extremista neonazista autor de mais de 80 assassinatos, sem condená-lo à morte.

Há muito sabor na surpresa, quase ingênua, do irônico Moore, quando lhe contam haver quatro a cinco semanas de férias pagas para os trabalhadores na Itália, sem se contar a proteção e férias dadas às mulheres grávidas e depois do parto. Nos EUA são duas semanas no máximo e nem sempre férias pagas.

Como um país tão moderno em armas destruidoras não dispõe do trem bala mas de uma rede ferroviária antiquada, apesar de ser um país de grandes  distâncias?

E com que prazer Moore participa do almoço com as crianças, numa escola francesa, boquiaberto pela refeição equilibrada oferecida às crianças. Enfim, nos países europeus existem melhores qualidades de vida e melhores condições de trabalho. Os alemães não escondem terem vivido o regime nazista e o extermínio dos judeus, enquanto os EUA ignoram o extermínio dos índios e suas guerras e invasões intoleráveis – Coreia, Vietnã, Líbano, Iraque, Afeganistão, Líbia.

O objetivo meramente lucrativo da educação faz as escolas americanas serem de má qualidade, além de terem eliminado do currículo matérias ligadas à arte, consideradas desnecessárias, enquanto as universidades são um privilégio das elites, pela impossibilidade de jovens pobres pagarem as elevadas anuidades.

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Rui Martins está em Berlim, convidado pelo Festival Internacional de Cinema.