Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Ponto de encontro entre filmes, jornalismo e novas tecnologias

Em meio a tantos fatos empolgantes e comoventes, que despertam a ira, o repúdio, a identificação e a empatia do público, é evidente que o jornalismo passou a ser muito mais do que simples fonte de informações para o cinema e seus festivais. Neste artigo procuramos destacar os principais conteúdos e apontar as tendências das novas tecnologias para o futuro do cinema e do jornalismo.

O jornalismo se tornou uma conexão entre fato, notícia e leitor, entre o mundo individual e coletivo. O grande responsável por fazer essa ponte entre mundos particular e exterior é o cinema do futuro, que faz um belo trabalho ao adaptar as pautas cotidianas em expressões cinematográficas. Com o advento das novas tecnologias em 3D estamos diante dos desafios de novas produções em Realidade Virtual.

Por meio de narrativas imersivas próprias, o cinema e o jornalismo permitem que sua audiência visualize, escute, sinta e se identifique com o que, muitas vezes, são apenas palavras abstratas em uma página de jornal ou imagens na TV ou na Internet. Estamos diante do desafio do Cinema e do Jornalismo que confunde a ficção com a realidade analógica ou virtual, cada vez mais imersivo em suas próprias notícias que se transformam em boas histórias.

Jornalismo e Cinema estão intimamente interligados e a maior expressão dessa conexão no futuro é a própria permanência da Berlinale. Em uma longa história de inovações e provocações, o Festival de Cinema de Berlim se destaca de outros festivais como o principal ponto de encontro de duas vertentes igualmente importantes à sociedade: a militância política e o realismo cinematográfico.Berlinale Brasil

Como não é surpresa para ninguém, o grande vencedor do Festival de Berlim deste ano foi Fogo no Mar, um documentário do italiano Gianfranco Rossi. O filme, de 108 minutos, focaliza na crise de refugiados na Europa a partir da ilha de Lampedusa, na Sicília, um dos principais pontos de entrada de quem busca refúgio no continente. O que talvez muita gente não saiba é que a ideia inicial de Rossi era bem diferente do que veio a se tornar uma obra-prima: ele foi à Lampedusa pela primeira vez na primavera de 2014, com o plano de filmar um curta de 10 minutos para um festival internacional.

Após um ano morando na ilha, observando o fluxo de pessoas, a situação emergencial em que se encontravam e com o desejo de mostrar algo mais aprofundado do que o trabalho da mídia até então, o diretor decidiu rodar Fogo no Mar, mostrando o real ritmo da chegada dos imigrantes.

O trabalho de Rossi é, indiretamente, uma crítica ao hábito da mídia de aparecer apenas quando há uma emergência. Para ele, “lá, o termo emergência não tem significado algum. Todo dia há uma emergência”. Não se pode negar que os planos do diretor foram afetados e drasticamente modificados por um fato urgente da vida real: era o Jornalismo e suas questões mais inerentes dando o tom do Cinema.

Aproximando realidades divergentes

Enquanto manchetes estampavam incontáveis capas de jornais e revistas mundo afora, Rossi fez um apurado trabalho de pesquisa, investigação e análise da dramática situação da crise humanitária mundial.

O projeto singular e de altíssima qualidade do diretor italiano revela novos rumos e inclinações no cinema mundial. As crescentes preocupações, os confrontos iminentes e a atmosfera de angústia global pedem que o cinema aproxime realidades divergentes de seus espectadores. A audiência não mais se convence com filmes de contos de fadas ou, muito menos, com os finais felizes. Ela anseia por temas reais, tópicos da vida, que tragam reflexões, motivem mudanças, produzam efeitos concretos na sociedade. E, então, em uma tentativa de renovação, o cinema começa a beber de novas fontes criativas, sendo uma delas (se não a principal) o jornalismo.

Um bom exemplo de como pautas jornalísticas são, também, inspirações para enredos cinematográficos é o longa de ficção Rota para Istambul, de Rachid Bouchareb. O filme, que compôs a seção Panorama da Berlinale 2016, traz a história de uma mãe belga cuja única filha, de 20 anos, foge de casa para se juntar ao Estado Islâmico em algum lugar entre a Síria e o Iraque. Apesar de uma obra ficcional, o roteiro poderia muito bem se encaixar em várias histórias familiares na Bélgica, França e outros países europeus. As notícias de jovens ocidentais – oriundos de países como Bélgica, Inglaterra, Áustria e Escócia, entre outros – estão em evidência na mídia desde meados de 2013, quando o Estado Islâmico já começava a conquistar territórios.

Em fevereiro de 2015, o exército americano avaliava em torno de 3400 o número de dissidentes ocidentais que se juntaram ao EI. Um ano depois, a agência de notícias France Presse divulgou que 55% dos jovens menores de idade que decidem lutar ao lado do grupo terrorista são mulheres. Os dados mostram, portanto, que a saga da nossa mãe fictícia belga em busca da sua filha radical é, na verdade, bem real.

Outra produção que transita entre os mundos da realidade e ficção é Nunca estarás sozinho, de Alex Anwandte, que conta a saga de um pai para buscar justiça e pagar o tratamento de seu filho gay que foi vítima de homofobia. O longa também foi exibido na seção Panorama da Berlinale deste ano. Um tema grave, relevante e, sem dúvida, inspirado nas inúmera notícias de crimes de ódio ao redor do mundo.

No final de fevereiro deste ano, por exemplo, a Agência Brasil divulgou um alerta emitido pela ONG Fare Network sobre possíveis casos de racismo e homofobia nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. Algumas semanas antes, o jornal espanhol El País publicou uma extensa reportagem sobre o crescente número de agressões contra refugiados gays na Holanda, juntando dois temas de forte expressão na Berlinale (refugiados e homofobia). O periódico ainda trouxe materiais abordando medidas governamentais que ferem os direitos LGBT, a homofobia no esporte e na igreja e as reações de pessoas ordinárias ao presenciarem manifestações de carinho homossexuais.

Outro enredo que pode ser, facilmente, retirado dos trabalhos jornalísticos é o impactante Tell Spring not to come this year, exibido na edição de 2015 do Festival de Berlim. O documentário de Saeed Farouky e Michael McEvoy mostra a precariedade em que vivem e lutam os soldados afegãos após a retirada das tropas da Otan. Não por coincidência, a partir de meados de 2011, notícias sobre a debandada das forças americanas inundaram veículos jornalísticos por todo o mundo. Após um ano acompanhando as atividades de soldados afegãos em uma perigosa região do país depois da saída dos americanos, os diretores trazem o relato crítico das precárias condições desses combatentes. A produção ganhou o Prêmio do Público de Melhor Documentário na mostra Panorama e melhor filme no prêmio Anistia Internacional, ambos concedidos na Berlinale 2015.

Já no cenário brasileiro, um assunto que causou bastante polêmica foi a PEC das Domésticas, sancionada pela presidente Dilma Rousseff no dia 1º de junho de 2015. A regulamentação prevê vários direitos dos trabalhadores domésticos, como regularização da jornada de trabalho, garantia a horas extras, férias e décimo terceiro salário, além de adicional noturno e indenizações em caso de demissão sem justa-causa. Vários patrões se mostraram indignados e contrários à resolução.

O tema foi exposto e abordado de maneira crítica no longa Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. Com uma narrativa que revela feridas abertas e veladas da sociedade brasileira, a diretora conquistou o Prêmio do Público de Melhor Ficção na mostra Panorama do Festival de Berlim 2015, além de outros prêmios internacionais. O filme, assim como sua alta recepção e repercussão, é um dos principais exemplos de como o jornalismo vem, cada vez mais, pautando a cena cinematográfica.

Documentários em 3D

Em 2016, Muylaert retornou à Berlinale, desta vez com Mãe só há uma, que, apesar de ser uma história de fantasia, lembra muito um crime que tomou conta das manchetes brasileiras e causou frenesi na sociedade em 2003. O caso Pedrinho, como ficou conhecido, revelou a história de Pedro Pinto, que foi sequestrado ainda bebê de uma maternidade em Brasília. Após 16 anos, o sequestro veio à tona e o adolescente foi localizado vivendo com outro nome e outra família, assim como o protagonista da produção de Muylaert.

Quanto ao futuro dos festivais como ponto de encontro entre o Cinema, o Jornalismo e as Novas Tecnologias é importante destacar a transição entre a produção e exibição de filmes em 3D para os desafios da Realidade Virtual. Cinema 3D

Na Berlinale 2015 podemos assistir a um dos primeiros e mais impressionantes documentários jornalísticos produzidos com a tecnologia de captação de imagens em 3D: Odisseia no Iraque (Iraq Odissey) do cineasta suiço Samir Jamal al Din. Ver o trailer aqui .

Trata-se de uma produção documental que procura utilizar a linguagem jornalística para investigar a história da família do diretor que se confunde com a própria e trágica história recente do Iraque.

Além da participação no Festival de Cinema de Berlim em 2015 com boa recepção tanto pela crítica como pelo público, o documentário de Samir al Din também foi selecionado para representar a Suiça na competição de Oscar de melhor filme estrangeiro em 2016.

Na Berlinale de 2017 a expectativa é a inclusão das primeiras sessões experimentais com filmes em Realidade Virtual com utilização de óculos especiais que prometem uma imersão ainda mais profunda em novas narrativas audiovisuais.

Resta saber como os documentários jornalísticos enfrentarão os desafios dessas novas tecnologias para manter os bons resultados nos festivais internacionais de cinema.

Das primeiras experiências cinematográficas dos pioneiros irmãos Lumiére que assustaram o público parisiense ao mostrar a chegada de um trem na estação de Lyon às promessas de total imersão de imagens e sons da Realidade Virtual, o Cinema continua a buscar no bom Jornalismo a fonte de suas melhores historias.

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Antonio Brasil é jornalista e professor de jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina