Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quem paga, manda

Na época da ditadura militar, muito se falava dos empresários que financiavam a tortura organizada – promovida por entidades como a Operação Bandeirantes (Oban), que se transformaria em DOI-Codi. Parte das verbas destinadas à guerra clandestina e à tortura tinha como origem o desvio de recursos orçamentários; mas o dinheiro grosso, que pagava automóveis descaracterizados, viagens pelo Brasil e a países vizinhos, esquemas para livrar-se de corpos, compra de informações, compra de delações, infiltração, este não tinha como ser oficial. Dava-se como certo que o empresário Henning Albert Boilesen, que seria morto numa emboscada, era um dos grandes financiadores da repressão clandestina; mas outros certamente atuariam na mesma área, já que apenas um Boilesen não teria condições de sustentar um orçamento de tamanho porte.

Comenta-se que muitos empresários colaboraram por motivos ideológicos: queriam evitar a possibilidade de que movimentos apoiados por Cuba, China e União Soviética chegassem ao poder. Outros, também se comenta, foram vítimas de chantagem. E alguns (há muitos depoimentos que citam esse tipo de acontecimento, embora os torturados, até o ponto em que este colunista saiba, não tenham feito depoimentos formais sobre isso) usaram sua proximidade com a repressão para obter favores oficiais e ampliar suas empresas, criando dificuldades para as concorrentes.

Pois bem: discute-se quem matou e quem foi morto, discute-se onde estão os corpos, discute-se os desaparecidos, discute-se a possibilidade de, entre os desaparecidos, alguns terem mudado de lado, pagos ou não, e recebido estrutura e recursos para mudar de aparência, de vida e até de país. Quem pagou?

A Comissão da Verdade ainda não tocou neste assunto. O pedetista gaúcho Carlos Araújo, ex-marido da presidente Dilma Rousseff, cobrou essa investigação; e relatou à própria Comissão sua experiência pessoal, em que empresários com frequência assistiram à tortura, ou a incentivaram. Há pelo menos um caso, narrado a este jornalista, em que um empresário que o torturado não conhecia assistiu à tortura e se masturbou, comentando que há algum tempo não chegava ao orgasmo sem assistir ao sofrimento de alguém.

Quem? Quantos? Por quê? A resposta é complicadíssima: basta acompanhar os casos de corrupção que foram julgados para apurar que o intermediário pagou, que o corrompido recebeu. Na hora de descobrir e julgar quem deu o dinheiro ao intermediário faz-se um ruidoso silêncio. Um bom exemplo é o de PC Farias, condenado por intermediar subornos, e o de subornados por ele que também foram atingidos.

É uma especificidade brasileira: há um intermediário, há vários receptores do dinheiro, e não há quem tenha desembolsado a quantia entregue ao intermediário.

Tudo bem, faz muito tempo. Provavelmente a maior parte dos envolvidos já morreu. Se alguém estiver vivo e ficar provado que financiou a tortura, estará coberto pela Lei de Anistia e não sofrerá punição. Inútil procurar? Talvez. Mas, se tanta gente e tantos recursos são usados para descobrir o que realmente houve, deve haver um esforço para saber quem financiou todo o processo.

 

O veneno encoberto

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ficou uma semana assistindo inerte ao envenenamento de consumidores pelo refresco de soja AdeS, sabor maçã. Depois de uma semana, e de 12 vítimas (número fornecido pelo fabricante, que levou onze dias para atender pela primeira vez à imprensa – que também, diga-se de passagem, não fez lá muita força para ser atendida), a Anvisa agiu: suspendeu as atividades da fábrica de Pouso Alegre (MG), de onde saiu o produto contaminado. É estranho: se a contaminação se limitava a um lote do produto sabor maçã, por que proibir algo como vinte outros sabores ali produzidos?

A história está toda muito esquisita: o presidente da Unilever, por exemplo, diz que 12 consumidores estão sendo tratados de problemas leves, causados pelo produto de limpeza contido nas embalagens do AdeS maçã. Problemas leves? O cliente sedento toma um bom gole de uma bebida contendo soda cáustica e sofre problemas leves? Ninguém esclareceu também como é que uma empresa de grande porte produz um lote com 96 litros, para ser distribuído em três Estados – dá 32 litros por Estado. Imaginava-se que o produto não vendesse tão mal assim. Enfim, esta é a informação distribuída pela empresa. A propósito, informa o ótimo portal de negócios GiroNews, o veículo que mais se vem preocupando com o caso, o lote médio de embalagem é de cinco mil unidades, não de 96. Que sorte teve a empresa, de por acaso ter reduzido tanto o lote que acabaria contaminado, não é mesmo?

E a história da contaminação, que meiguinha! Um operário (que vai acabar levando a culpa toda) não percebeu que o envase tinha terminado e que a máquina estava sendo desinfetada com a solução de limpeza. Acionou o equipamento e soltou as bebidas contaminadas. E, embora tenha percebido rapidamente o erro (por isso há tão poucos refrescos na praça!), não se lembrou de avisar que havia embalado veneno para consumidores que queriam beber um suquinho.

Quer dizer que a segurança da fábrica depende de um operário que, por sua livre e espontânea vontade, aciona a máquina envasadora quando quer? Um carro de preço médio não libera a chave do contato se o câmbio não estiver em ponto morto; já uma empresa de porte mundial, que lida com a saúde dos consumidores, trabalha com uma máquina que aceita as ordens mais estapafúrdias, sem qualquer controle. Quer dizer, também, que o operário ou não sabia que estava assumindo o risco de afetar a saúde dos clientes, ou sabia e não deu a isso qualquer importância? Que tipo de treinamento recebem funcionários que, em última análise, lidam com produtos que, manipulados de forma inadequada, podem colocar em jogo a saúde e até a vida dos clientes da empresa?

Quanto à imprensa, que delicadeza ao tocar na multinacional! Não houve matérias dos correspondentes sobre casos semelhantes que tenham ocorrido em outros países, ou a inexistência desse tipo de acidente; não houve aquele plantão tradicional, de jornalismo explícito, na porta dos escritórios da empresa, esperando que alguém finalmente contasse como estão as coisas. Todos aguardaram onze dias até que a multinacional lhes concedesse – e a seus leitores, ouvintes, telespectadores, internautas – alguma informação, assim mesmo racionada. Não deve ser tão impossível fazer aquelas reportagens insistentes, para mostrar que, entra dia sai dia, as informações continuam represadas, e quando liberadas o são a conta-gotas, bem devagar, bem devagar, bem devagar devagar devagarinho. E para lembrar que, nas imortais palavras de um bom ministro, que acabou caindo por falar o que não devia, o que é ruim a gente esconde.

 

A notícia que fica

O jurista e escritor pernambucano José Paulo Cavalcanti esteve há alguns dias no lançamento de um livro do secretário de Redação do maior jornal de Lisboa, o Diário de Notícias. E ele lhe contou uma história magnífica, mostrando que Redação é Redação, no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos, provavelmente em todos os lugares onde haja jornalismo. No começo do século 20, os jornalistas lisboetas acompanhavam o noticiário sem se cansar muito: ficavam num barzinho próximo à Assembleia Nacional, tomando bagaceira e esperando os deputados. Ao final dos trabalhos, os deputados iam ao bar, em busca da saideira e dos jornalistas; e lhes contavam o que tinha acontecido.

Em 1918, o presidente Sidônio Paes foi assassinado. Uma curiosidade: Sidônio Paes era um político populista, estilo Odorico Paraguaçu. E sobre ele um dos maiores poetas de língua portuguesa, Fernando Pessoa, escreveu um livro – por incrível que pareça, com o título O Bem Amado (confira: este livro é citado no ótimo Fernando Pessoa, uma quase autobiografia, trabalho muitas vezes premiado, de autoria do próprio José Paulo Cavalcanti).

Bom, Sidônio Paes foi baleado e o mais famoso jornalista da época, conhecido pelo pseudônimo de Repórter X, foi escalado para narrar o caso. Mas ninguém apareceu no bar para lhe contar o que tinha ocorrido. O Repórter X voltou à Redação sem saber sequer que Sidônio tinha morrido. Soube quando lhe perguntaram quais tinham sido as últimas palavras do presidente. Ele disse, na hora: “Morro bem, salvem a Pátria”.

A frase real, verdadeira, que saiu em oito outros jornais, foi: “Afastem, afastem, que estou apertado”. Mas a frase que passou à História foi o “Morro bem”.

 

E também mais longe

E como funciona nos Estados Unidos? Não deve ser muito diferente. No filme de John Ford O homem que matou o facínora, James Stewart conta aos editores do jornal de sua cidade que sua carreira política tinha sido iniciada por engano: um bandido que aterrorizava a região o desafiou para um duelo. Ele, que mal sabia atirar, disparou e o bandido morreu. Virou herói e se transformou numa grande figura nacional. Mas, na verdade, conta ele, quem dera o tiro certeiro no bandido tinha sido um personagem popular da cidade, que morrera na miséria.

Terminada a entrevista, o diretor do jornal rasga as anotações. E explica: quando a lenda é melhor que os fatos, imprima-se a lenda.

 

Enem, como sempre

Cuando çurge auviverdi inponente, miztura o Miogio com um tempero dispoi de cunsinhá trêis minuto. Preparemo os peiche que os menino pezcô.

Eis a chave, caro colega: essa redação deve garantir 750 pontos entre os mil possíveis no teste de redação do Enem. Mil, porque o rapaz que escreveu “trousse” e “enchergar” teve mil; 500 porque o rapaz que incluiu o hino do Palmeiras teve 500. A média é 750 – embora, no Enem, talvez seja 300, ou 800, ou sabe-se lá o que. E, como “os menino pesca os peixe”, ou algo parecido, foi sacramentado num livro do Ministério da Educação, quem sabe o estudante ainda não acaba contratado?

Por menos do que isso, Vinícius de Moraes tinha alergia ao monumental Adoniran Barbosa, que se limitava a colocar, em suas letras, a linguagem ítalo-caipira-portuguesa de boa parte da população de São Paulo. Aos poucos, Vinícius descobriu a beleza das músicas de Adoniran, e acabou compondo com ele um clássico irretocável, “Bom Dia, Tristeza” – e num português absolutamente preciso, de acordo com a norma padrão. O fato é que Adoniran conhecia a norma culta e sabia também modificá-la sem prejudicar a compreensão. E este pessoal do Enem não sabe nem uma coisa nem outra.

 

Erremo

Este colunista gosta de atualizar-se até quando dá o título para uma nota de correção. Diferentemente do que esta coluna publicou na semana passada, a escritora Rachel de Queiroz não morreu no mesmo desastre de avião que matou o ex-presidente Castello Branco, em 1967. Castello tinha almoçado com Rachel na fazenda dela, mas ela não o acompanhou no voo. A escritora morreu em 2003.

 

É bom para os dois

Petista radical odeia Veja, certo?

Nem sempre: quando Veja elogiou o desempenho do deputado federal Zeca Dirceu, filho do “capitão do time”, o cacique grão-petista José Dirceu, Sua Excelência Junior não perdeu tempo. Um grupo intitulado “Amigos do Zeca” espalhou cartazes por sua base eleitoral, Umuarama: “Zeca Dirceu, 1º lugar no ranking da revista Veja”. Zeca, do PT paranaense, mostrou o caminho das pedras aos órgãos de imprensa que se incomodam com as críticas do partido: um elogio e o que era mau passa a ser bom, bom demais, ótimo.

 

Volta por cima

O excelente jornalista Aziz Ahmed, por muitos anos o principal colunista do Jornal do Commercio, do Rio, está de volta à ativa: é agora o principal colunista de O Povo, também do Rio, que está passando por uma ampla reestruturação editorial e gráfica. Aziz Ahmed, sempre bem informado, fazia falta na imprensa.

 

Loyola, o bom

Ignácio de Loyola Brandão, o grande cronista de São Paulo, destaque da Última Hora em sua melhor fase, escritor de primeira linha, está de volta: na terça-feira (26/3) lança Solidão no fundo da agulha, em noite de autógrafos no Vianna Bar, Rua Cristiano Viana, 315, São Paulo. Começa às 19 h e termina quando o bar fechar (e, se os livros acabarem antes, o pessoal continua batendo papo e tomando algumas). Vale a pena – pelo livro, pelo autor, pelos amigos, pela conversa.

 

Como…

De um grande portal noticioso da internet:

** “Policiais acompanham protestantes durante o ato Fora, Feliciano (…)”

Estranho: o deputado federal Marco Feliciano, do PSC paulista, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, é protestante, da linha pentecostal. Seus adversários também? Não, nada disso: a notícia chama de “protestantes” quem protesta contra ele. Até que, alguns séculos atrás, a notícia estaria certinha: os grupos cristãos que protestavam contra a igreja católica, sob a liderança de Martinho Lutero, eram por isso chamados de “protestantes”.

 

…é…

De um grande jornal impresso, de circulação nacional:

** “Thiago Silva não é mau agradecido”.

Será que o consideram um ser humano mau que não agradece a ninguém? Não, é difícil: o mais provável é que, pela milionésima vez, tenham confundido “mau”, oposto de “bom”, com “mal”, oposto de “bem”.

Ou houve confusão ou o redator da notícia está querendo alguma vaga na correção de provas do Enem.

 

…mesmo?

De um jornal impresso de circulação nacional:

** “Tenho umas duas horas para voar para Brasília. Duas horas para matar! Sessenta minutos sem narrativa ou ficção”.

O tempo passa, o tempo voa, como diria um publicitário. O tempo é relativo, disse Einstein. Mas estamos no Brasil: uma conta dessas é uma tremenda recomendação para fazer parte da equipe de previsão de crescimento do PIB do ministro Guido Mantega

 

Caprichando

A matéria é sobre as árvores dos Jardins, bairro nobre de São Paulo. Um estudo mostrou que em 36% das árvores havia “organismos que se alimentam de madeira”. Tucanaram o cupim. Árvore bichada mudou de nome.

 

Por falar em tucanos

Aqui está, amplamente divulgada nas redes sociais, uma crítica tucana:

** “Dani vai bem no CQC, mas ainda decepciona”

É uma análise abrangente: o crítico vê o panorama inteiro do alto do muro.

 

E eu com isso?

Todos concordam que o país só se desenvolverá para valer quando a Educação for levada a sério. Aí aparecem as provas do Enem. Viva o descompromisso!

** “Isis aproveita intervalo do show do namorado e se esbalda no chamego”

** “Tenistas de vestidinho roubam a cena de festa nos EUA”

** “De top e shortinho, Thammy Miranda toma banho de mar no Rio”

** “Justin Bieber mostra foto ao lado do irmão Jaxon”

** “Grávida de gêmeas de cantor do KLB, ex-Miss mata desejo de melancia”

** “Brad Pitt usa cinta modeladora”

** “Danielle Winits beija o namorado ao sair da academia”

** “Nadal desfruta de estadia na Califórnia”

** “Narcisa Tamborindeguy publica foto esquiando”

** “Nathália Rodrigues confessa o desejo de ser mãe”

Confessa? Querer ser mãe é por acaso alguma transgressão?

 

O grande título

Um título é interessante, com várias conotações possíveis:

** “Sheila Mello vai esperar até o fim da gravidez para ter parto normal”

E um é absolutamente invencível:

** “País tem que dobrar varas para atender violência contra a mulher”

Não seja malicioso, caro colega. Não se trata de uma nova modalidade sexual, desconhecida até mesmo do Kama Sutra. Trata-se de discutir a quantidade de órgãos no Judiciário.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados