Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A defesa da defesa

Não houve jamais qualquer processo contra um jornalista sem que um promotor o acusasse. Quase nunca houve um processo contra um jornalista sem que um advogado o defendesse (quase, porque Vladimir Herzog, por exemplo, não teve tempo de contratar um advogado).

De onde sai, então, o fascínio da imprensa pelos promotores, enquanto os advogados de defesa são esquecidos nas reportagens? É um fenômeno recente, este: nos tempos da ditadura, advogados como Idibal Piveta e José Carlos Dias eram as estrelas da reportagem, enquanto poucos promotores, como Hélio Bicudo e Djalma Barreto, que desafiavam o Esquadrão da Morte, eram valorizados.

O Ministério Público tem importância vital na democracia; mas não pode ocupar sozinho o pódio dos escolhidos. Não se pode aceitar que a imprensa publique notas do tipo ‘os investigadores estão a um passo de provar as ligações entre o caso da rua Jamaica e o escândalo dos precatórios’. Se há provas, que sejam publicadas e que se iniciem os processos; se ainda não há provas, por que os meios de comunicação devem gastar seu espaço e tempo tentando prever o futuro? Ou alguém acusa ou não acusa. Pingar acusações a conta-gotas é cercear o direito de defesa. Pior: quando não dá certo, uma nota desse tipo não é desmentida. É só esquecida, depois de ter tido seu papel na desmoralização do acusado.

Tratar acusados e seus defensores com má vontade é dar um tiro no pé: é esquecer que todos os jornalistas da linha de frente estão sujeitos a processos e precisarão defender-se. É esquecer que, num caso desses, enfrentar a máquina da Justiça já é dolorido o suficiente. Não é preciso ampliar o sofrimento tendo de enfrentar também a máquina da comunicação.



Não perder

Elio Gaspari, brilhante como de hábito, publicou no domingo (20/11), um belíssimo texto sobre direito de defesa. Eis a transcrição:

Os tucanos exterminadores

Elio Gaspari (copyright Folha de S.Paulo / O Globo, 20/11/ 2005)

Se não forem respeitados os direitos constitucionais do ministro Antonio Palocci, condestável do governo e quindim da banca, vai-se substituir o Comissariado Petista pelo Comando Tucano. A política de Palocci e de sua ekipe é ruinosa. A idéia de blindá-los é um contubérnio da ganância com a amoralidade. Sua administração em Ribeirão Preto foi um triunfo do aparelho companheiro. A prefeitura licitou a compra de 40 mil cestas básicas exigindo que contivessem latas de molho de tomate com ervilha que só eram fabricadas numa empresa que, por sua vez só as vendia a outra (a Cathita, de São Caetano). Denunciado o golpe, cancelou-se a licitação e fez-se uma compra de emergência. Onde? Numa casa chamada Gesa, de Santo André, de propriedade das ilustres esposas dos donos da Cathita. Casos como esse podem instruir opiniões ou desconfianças, mas quem julga malfeitores e define culpas é a Justiça.

Há duas semanas, o delegado Benedito Antônio Valencise, encarregado de um dos inquéritos de Ribeirão Preto, revelou que os depoimentos de quatro testemunhas, cujos nomes eram mantidos em sigilo, reforçaram a convicção de que Palocci e outras sete pessoas estavam envolvidas em transações de superfaturamento de serviços municipais. Quatro delas trabalharam com Palocci na prefeitura e uma — Juscelino Dourado — chefiou seu gabinete no Ministério da Fazenda.

Seis estão vivos, mas nenhum foi ouvido pela polícia. Depoimentos sigilosos decidindo a incriminação de cidadãos sem que eles sejam confrontados com as acusações danificam o direito das gentes. Dias depois o delegado Valencise esclareceu: ‘Não há que se falar em indiciamento ainda’. Devagar, não se trata de dizer que ‘não há’. O certo seria dizer que ‘não havia’ porque se falar em indiciamento. Por ter falado, agiu mal a polícia paulista. Toda uma geração de brasileiros viveu o trauma das humilhações impostas a Juscelino Kubitschek quando o chamavam para depor em inquéritos policiais-militares, antecipando-se que seria indiciado. Na quarta-feira, Valencise referiu-se a Palocci como ‘esse senhor’. Tudo bem, mas não faz bem à alma dos contribuintes ouvir um delegado tratar o ministro da Fazenda de forma pouco cerimoniosa. Daqui a pouco poderão chamá-lo de ‘o elemento’.

Sob custódia da polícia paulista, na condição de testemunha colaboradora, Rogério Buratti foi obrigado a depor algemado. Mais: filmaram-no enquanto depunha e divulgaram o vídeo. Segundo Palocci, ‘uma pessoa algemada diz qualquer coisa’. Falso. As algemas e a câmera têm a ver com a qualidade da polícia paulista, não com o depoimento de Buratti, confirmado em declarações posteriores, livres de constrangimento.

O aparelho policial do tucanato paulista tem peculiaridades históricas e metodológicas. Para a História, o governador Geraldo Alckmin foi um defensor do delegado Laertes Calandra, reconhecido como sendo o Capitão Ubirajara do DOI-Codi paulista nos anos 70, signatário do pedido de perícia da cela onde estava o corpo de Vladimir Herzog.

Denunciada a presença de Calandra numa relevante função da Secretaria de Segurança, Alckmin disse o seguinte: ‘Vamos ficar voltando ao passado a cada momento?’ Há poucas semanas, quando associar-se a Herzog pareceu-lhe melhor do que defender o delegado, Alckmin voltou ao passado e foi à cerimônia que lembrou o 30 aniversário do assassinato do jornalista, na Catedral da Sé.

Na metodologia, o secretário de Segurança, Saulo de Castro Abreu Filho, viu-se numa rua bloqueada a caminho do restaurante onde ia jantar. Mobilizou sua gente e uma patrulha do Grupo de Operações Especiais da polícia deteve tanto um manobrista como o dono do restaurante. Eles nada tinham feito de errado. O episódio foi denunciado, o Ministério Público decidiu investigá-lo e a assessoria do doutor Saulo disse, em nota oficial, que ‘houve uso indevido da Justiça para resolver questões pessoais’. Dias depois, num bonito exemplo, reconheceu: ‘Eu não li a nota, lamento e peço desculpas pelo conteúdo’.

Alguém deve desculpas a Buratti, aos seis indiciados-não-indiciados e ao ministro Antonio Palocci. É o jogo jogado. Pedem-se desculpas e tocam-se os inquéritos. Quando se sabe que o ex-presidente de PSDB Eduardo Azeredo participou do esforço fracassado para matar a prorrogação da CPI dos Correios, pode-se suspeitar que o tucanato faz acordos no andar de cima enquanto açula a opinião pública no de baixo.

É a demagogia moralista, mais interessada em enganar a platéia e proteger os mensalistas de Furnas do que em encarcerar os ladrões.

O PT-Federal gosta de se dizer vítima de um processo macartista. Refere-se à paranóia anticomunista desencadeada nos Estados Unidos nos anos 50 pelo senador Joseph McCarthy, um charlatão mentiroso e bêbado.

É exagero, mas havia no macartismo um ingrediente que contamina a investigação das malfeitorias do comissariado. O jornalista Richard Rovere, num magnífico ensaio sobre o fenômeno, atribuiu a McCarhy a manipulação do que denominava ‘a falsidade múltipla’. Nas suas palavras:

‘A falsidade múltipla não precisa ser uma grande falsidade, mas pode ser uma longa série de falsidades tenuemente conectadas, ou uma simples falsidade com muitas facetas. Em qualquer caso, o conjunto tem tantas partes que se torna impossível mantê-las simultaneamente na cabeça. Qualquer tentativa de demonstração da falsidade de algumas afirmações, deixa a impressão de que só aquelas afirmações são falsas e as outras são verdadeiras’. (Um exemplo desse mecanismo: outro dia o signatário escreveu que o ministro Palocci usou o avião do empresário Roberto Colnaghi em que Vladimir Poleto transportou três caixas com encomendas recolhidas em Brasília. Falso. Ele havia desmentido essa informação.)

A ‘falsidade múltipla’, que à primeira vista massacra as vítimas, é uma dádiva para os malfeitores, pois o tumulto do inquérito interessa acima de tudo aos culpados.



As faces da verdade

Vale a pena buscar, nos vários veículos de comunicação, o depoimento dos cavalheiros presos pelo assassínio do prefeito Celso Daniel. Cada veículo narrou os fatos de maneira própria, rigorosamente afinada com seu discurso político. As interpretações dos mesmos depoimentos variaram da comprovação de que houve crime comum até a comprovação de que o crime foi encomendado.



La Cueca-Cuela

Por que Venezuela e México chamaram seus respectivos embaixadores e praticamente suspenderam suas relações diplomáticas? De acordo com boa parte do noticiário brasileiro, o motivo foi um insulto do presidente venezuelano Hugo Chavez ao presidente mexicano Vicente Fox: ele o teria chamado de ‘cachorro de Bush’. Só que Chavez não disse nada disso: em espanhol, ‘cachorro’ significa ‘filhote’ (quando alguém quer se referir ao animal que faz au-au, usa ‘perro’). Houve o insulto, portanto, mas menos pesado: Chavez chamou Fox de ‘filhote de Bush’. Nem ficaria bem chamar Fox, que em inglês é ‘raposa’, de cachorro. Cachorro e raposa são da mesma família, mas não se falam.



O falso cognato

O espanhol é para nós, brasileiros, uma fonte de problemas: as línguas são parecidas, mas cheias de falsos cognatos – coisas que parecem ter um significado mas têm outro. Houve uma época em que o terrorismo imperou na Argentina, e os telegramas internacionais informavam que as oficinas de um determinado jornal tinham sido destruídas a bomba. No dia seguinte, estava lá o jornal na rua. Como, se suas oficinas tinham sido destruídas? É que a tradução estava errada. Oficina, em espanhol, é escritório. Aquilo a que chamamos ‘oficina’ é ‘taller’.

E a língua ainda varia de um país para outro. Há tempos, a esposa de um jornalista inglês, fluente em espanhol, foi minuciosamente investigada na alfândega de uma ditadura. Em determinado momento, o guarda perguntou-lhe o que havia num pacote. A senhora explicou: ‘Es um tapado’. Foi um problemão: em certos países, ‘tapado’ é casaco. Na tal ditadura, ‘tapado’ era tapado, mesmo. Idiota. E o curioso é que, em ambos os casos, ela tinha razão.



Censura

Aquele comitê de censura instalado no Congresso, destinado a patrulhar programas de televisão, volta agora suas baterias contra o Pânico da TV. Parece que, de 4 de junho a 10 de novembro, houve 3.189 reclamações contra o programa.

Este colunista não gosta do Pânico na TV. Não vê a menor graça em pessoas que se dedicam a incomodar outras. E, por isso mesmo, manifesta sua inconformidade não assistindo ao programa. Só em TVs abertas há seis programas além deste (e, na TV fechada, mais de cinqüenta).

Agora, estabelecido que este colunista não gosta do Pânico na TV, analisemos as reclamações apresentadas pelo comitê de censura. A cada dia, no Brasil, cerca de 100 milhões de pessoas assistem à TV. De 4 de junho a 10 de novembro, são 153 dias. Nestes 153 dias, 15.300.000.000 pessoas, somando-se a audiência de cada dia, viram TV. Destes 15 bilhões de pessoas, mais que a população inteira do mundo, três mil reclamaram. E é por isso que se tenta censurar o programa?

Vamos fazer de outro jeito: quem gosta do programa, assiste; quem não gosta, não assiste; quem se sente atingido, como recentemente aconteceu com uma atriz da Globo, recorre à Justiça. Fica combinado assim?



Como é mesmo?

1. De um jornal paulista: a Vila das Mercês virou ‘Vila das Mercedes’. O pessoal deve ter enriquecido muito nos últimos anos.

2. Do noticiário econômico: ‘subfaturamento de até 9.374%’. Interessantíssimo: se um produto for subfaturado em 100%, passa a custar zero. Como é que fica o preço de qualquer produto ou serviço subfaturado em nove mil por cento?

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados