Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A imprensa no embate entre humanismo e religião

Um debate de idéias como há muito não se via no país. A polêmica sobre a pesquisa científica com embriões humanos poderá estabelecer novos paradigmas de discussão numa sociedade que, ultimamente, entregou-se ao ressentimento e à intolerância.


O diferencial está sendo oferecido involuntariamente pela imprensa que, sem esconder sua preferência pelo racionalismo e pelo secularismo, mostra uma inequívoca deferência (ou complacência) pela outra parte: a Igreja Católica. As objeções que em outras circunstâncias e em outros países seriam transformadas num ataque frontal contra o obscurantismo, aqui estão sendo atenuadas pela reverência à religião que durante 508 anos, apesar dos disfarces jurídicos, é a religião oficial.


A ação de inconstitucionalidade impetrada pela Procuradoria Geral da República em 2005 contra a Lei de Biossegurança, apesar do malabarismo do seu autor – Cláudio Fonteles – em sustentá-la com argumentação jurídica, é uma peça teológica. Respeitável, mas teológica.


História do conhecimento


Dividida entre o seu incontornável compromisso com a razão e sua histórica submissão à Igreja, a mídia – sobretudo a mídia impressa – não tem outro caminho senão jogar o debate para as alturas. O que é muito bom em matéria de urbanidade e péssimo no tocante à isenção e ao esclarecimento.


A matéria publicada com grande destaque pela Folha de S.Paulo no domingo (9/3, ‘Embrião congelado por oito anos produz bebê’) é tendenciosa. Foi contestada de forma irrefutável no dia seguinte por Ênio Candotti, ex-presidente da SBPC, mas a carta do respeitado cientista (Painel do Leitor, pág. A-3) foi visivelmente encurtada e colocada logo em seguida à desbragada louvação de um leitor seduzido pelo ‘pluralismo’ do jornal. A entrevista do cientista Oliver Smithies (segunda-feira, 10/3, pág. A-19) que contesta a matéria do dia anterior não mereceu chamada na primeira página (‘Embrião usado para terapias não vai morrer, diz Nobel’).


Esta derrapagem clerical da Folha talvez se explique pelas suas relações com Ives Gandra Martins (advogado da CNBB na ação que transita no STF) e não como opção religiosa. Qualquer que seja a motivação foi um artifício tendencioso.


O Globo e o Estado de S. Paulo, embora ligados a setores católicos fundamentalistas, até agora não fizeram grandes concessões. A surpresa é oferecida por Veja, que não esconde sua preferência conservadora em matéria política, mas na questão das células-embrionárias assumiu uma visível posição progressista através das duas últimas entrevistas das ‘Páginas Amarelas’ – com a bióloga Mayana Zatz (edição 2050) e com a presidente do STF, Ellen Gracie (edição 2051).


Impossível desconhecer que a oposição às pesquisas com células embrionárias é comandada por motivações religiosas. Isso precisa ser explicitado. O debate não tem nada de científico, resume-se ao confronto entre o sectarismo (embelezado por pinceladas espiritualistas) e a liberdade do espírito humano. Impossível desconhecer também que na história do conhecimento e na busca da razão os dogmas religiosos sempre favoreceram os retrocessos.


Confronto milenar


O Brasil demorou tanto para ser beneficiado pela tipografia desenvolvida por Gutenberg simplesmente porque foi impedido pela Igreja por meio do seu grupo mais radical, os dominicanos que controlavam o Santo Ofício da Inquisição.


Estamos nos preparando para festejar os 200 anos da nossa imprensa sem levar em conta que os primeiros jornais do continente foram publicados um século antes dos nossos. Este atraso deixou marcas profundas em nossa cultura e em nosso comportamento.


Passamos ao largo do racionalismo e do iluminismo porque a Santa Madre Igreja, desde 1536, estabeleceu nos dois lados do Atlântico um rigoroso sistema de censura de livros e idéias.


Como escreveu Ênio Candotti na minimizada carta publicada pela Folha, a ciência ajuda a vida a ser vivida. O confronto conhecimento versus vida é falso, enganoso. Ou, como afirma Oliver Smithies, ‘é errado discutir a perspectiva do uso terapêutico [de uma célula-tronco] como algo que requer a morte de embriões. A célula-tronco humana em tratamentos é o modo de preservar a vida embrionária’.


Com punhos de renda e civilidade, é verdade, sem a brutalidade das fogueiras que atormentaram Galileu no século 17, repete-se agora no Brasil o milenar confronto entre humanismo e religião, entre a busca da verdade e os antolhos da ignorância.


 


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