Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A partilha das mordomias

Excelente a reportagem de Rainer Bragon, na Folha de S.Paulo, sobre a utilização irregular dos serviços médicos da Câmara pelos jornalistas credenciados e suas famílias, às custas do contribuinte.

Só que o problema é ainda maior: é a promiscuidade entre os jornalistas e os poderosos cuja conduta deveriam fiscalizar. Nem sempre há busca de vantagens pessoais: há o mau costume arraigado (‘sempre foi assim’), há a competição por notícias, há a vontade de manter boas relações com as fontes – mas o fato, enfim, é que acaba sobrando um troco para pessoas que não teriam direito a ele. Como disse o historiador John Dalberg, o lorde Acton, em carta ao bispo Creighton, no final do século 19, ‘todo poder corrompe’. Corrompe mesmo quem não o desfruta totalmente, mas está perto o suficiente dos que o desfrutam.

O tema da reportagem foi a assistência médica. Há algum tempo, poderia ser a Gráfica do Senado, onde muitos jornalistas publicaram seus livros. Ou poderia, há mais tempo ainda, ser o financiamento para a casa própria, de pai para filho, sem correção monetária, numa época de inflação crescente.

E, pior do que tudo, existe ainda em alguns lugares uma tradicional relação cruzada de emprego. Determinados veículos de comunicação pagam muito mal, atrasam salários, ou simplesmente não pagam. E o Poder Público, que os jornalistas destes veículos cobrem, os contrata, alegando que sem isso eles não teriam como manter sua família. Muitas vezes isso acontece; mas há muita gente que não consegue manter sua família e, não sendo jornalista, não tem acesso a este tipo de socorro especial com o dinheiro dos outros.

O jornalista deve estar perto da fonte o suficiente para tomar conhecimento das informações, e longe o suficiente para não sofrer sua influência. É difícil encontrar o ponto de equilíbrio. Mas é um tema de debate ao qual nós, jornalistas, não nos podemos esquivar.



O ganha-perde

Quem mudou certas regras do jogo foi o governo Castello Branco, em 1964. Até então, jornalista pagava metade das passagens de avião (uma vantagem ilusória, pois não ganhava o suficiente para viajar, nem pelo preço reduzido). Jornalista não pagava imposto de renda (outra vantagem ilusória, porque raramente tinha renda que atingisse o piso da declaração). Com base nessas supostas vantagens, as empresas aproveitavam para pagar mal. Atribuía-se a um magnata a seguinte frase (que um grande jornalista, que o conheceu profundamente, garante ser falsa): ‘Se você tem carteira de jornalista, não precisa de dinheiro’.

Mas, mesmo com a extinção das ilusórias vantagens, ficar perto do poder é coisa fina. Ter assistência médica de boa qualidade, de graça, em nosso país, é muito bom. Receber matérias prontas de entidades oficiais, em troca de jamais questionar suas conclusões, é ótimo: dá ao repórter a fama de furão sem precisar gastar sola de sapato. Vender terrenos de praia, com o único problema de estarem submersos, dá um belo dinheiro (e, com bom relacionamento entre os poderosos, não dá problema). É preciso ter força de vontade para resistir à tentação.



O amanhã é hoje

E, por falar em proximidade da fonte, a história da publicação rigorosamente correta de uma sentença judicial no dia 16 de abril ainda não está bem explicada. O processo foi encaminhado ao juiz, para sentença, no dia seguinte, 17. O juiz redigiu e assinou a sentença no mesmo dia, 17. E, talvez pela primeira vez na História da imprensa, um jornal publicou a sentença antes que o juiz a desse.



Pode ou não pode?

O portal jurídico Migalhas, do dia 19, discute a quebra do sigilo do inquérito da Operação Hurricane, ou Furacão (varia conforme a fonte, mas quer dizer a mesma coisa). E levanta uma discussão interessante, que cabe a nós, jornalistas, aprofundar: até que ponto é lícito violar a lei? Diz Migalhas:

‘Centrando foco nos matutinos das maiores capitais, notamos um turbilhão de notícias. Todos estavam repletos daquelas informações exclusivas. Alguns, com riqueza de detalhes do inquérito que, logo adiante, em ato falho, afirmam ser sigiloso. Este informativo, todavia, sabedor de que as informações estão cobertas pelo segredo de Justiça, não irá veiculá-las.

‘Aliás, Migalhas acha que quem veicula informação que sabe ser sigilosa comete, em tese, o mesmo crime do servidor que quebrou o segredo. A alegação comum da imprensa, de que era notícia de interesse público e por isso divulgou, não guarda sentido lógico algum, vez que o interesse público é analisado pelo juiz ao decidir que, excepcionalmente, este ou aquele ato está sob o manto do segredo.

‘Ontem [18/4], o JN da Rede Globo ganhou o prêmio. Depois de divulgar o áudio de conversas telefônicas de um advogado supostamente negociando uma sentença, William Bonner informa que o ministro Peluso abriu inquérito para apurar a responsabilidade pelo vazamento dos dados das investigações da Operação Furacão. Os mesmos dados que um minuto antes acabara de mostrar. É demais. A opinião dos jornalistas sobre o que é de interesse público não pode estar acima da lei’.



Sigilo público

O problema se relaciona com a promiscuidade entre fonte e repórter. Para agradar ao repórter (que, em troca, capricha na notícia), a fonte viola inquéritos sigilosos e muitas vezes prejudica a defesa dos acusados – que, normalmente, ficam sabendo das acusações pelos jornais e pela TV, não pelos autos. Tudo bem, o público quer saber; mas o direito de defesa é uma garantia básica que não pode ser atropelada pela ânsia do furo.

O fato é que não há notícia de condenação de qualquer autoridade que tenha violado o sigilo de um inquérito para beneficiar suas fontes. Se não há punição, é porque não há crime, não é? Ou isso também fará parte da tal de impunidade?



Achamos, não achamos

Esta também é da TV, num dos telejornais de maior audiência do país. Na reportagem sobre a Operação Hurricane, informa-se que o senador Francisco Dornelles, do PP fluminense, não foi encontrado. Na reportagem seguinte, o senador Francisco Dornelles aparece abundantemente e dá entrevista.



Amigos, amigos…

A imprensa lembrou bem que, não há muito tempo, o novo secretário de Ações Especiais de Longo Prazo do governo Lula, professor Roberto Mangabeira Unger, dizia que a administração de que agora participa era a mais corrupta da História e que era urgente pôr para fora aquele que agora o nomeou. Traduzindo, nada como um bom afago, de preferência com status e mordomias, para transformar um horrendo inimigo de toda vida num amável amigo de infância.



…negócios à parte

Falou-se menos, entretanto, de uma novidade importante: a entrada de Roberto Mangabeira Unger no governo pode abrir caminhos para seu amigo e protetor Daniel Dantas, do banco Opportunity. Dantas considera Mangabeira Unger um dos grandes intelectuais brasileiros e há muito tempo o recruta para suas empresas. Esteve na Brasil Telecom quando era dirigida pelo Opportunity; está hoje na Santos-Brasil, o terminal portuário de Daniel Dantas.



Mau é bom

Para a imprensa mais ligada a Lula e ao PT, é um tema complicado: Daniel Dantas há muito tinha sido escolhido por ela como grande vilão. Como redimi-lo de uma hora para outra? Para alguns políticos muito próximos de Lula, Daniel Dantas era o inimigo a combater (o símbolo vivo da ‘zelite’). O ministro Luís Gushiken, por exemplo, colocou sua influência nos fundos de pensão federais a serviço da luta contra Dantas. Em todas as empresas em que os fundos e Dantas eram acionistas, os fundos se uniram contra o banqueiro.

Vale a pena acompanhar a trajetória de Mangabeira Unger no governo, a possível aproximação de Daniel Dantas, o tratamento que receberá da imprensa. Será tudo sempre muito instrutivo.



A História reescrita

O anúncio do PSB no horário gratuito teve lances divertidíssimos. Ciro Gomes falou de ‘nosso partido’ – e, realmente, hoje tem razão. Mas Ciro já andou pela Arena, pelo PMDB, pelo PSDB, pelo PPS. ‘Nosso’ de quem, cara-pálida?



Tudo nós!

No anúncio, citam-se como obras do PSB o 13º salário (lei do senador Aarão Steinbruch, do PTB), as férias, a Previdência Social (obras do Governo Getúlio Vargas, que tinha sua base de apoio no PTB e PSD). Mas não fariam os socialistas do PSB parte da base de apoio de Vargas?

Não: o criador do PSB, João Mangabeira, símbolo do partido, apoiou a Revolução paulista contra Getúlio em 1932. Foi preso por Getúlio em 1936 e passou um ano na cadeia. No final da ditadura de Getúlio, entrou na UDN, partido que se opunha ao ex-ditador. Em 1950, foi candidato à Presidência, contra Getúlio.

De onde é que tiraram a participação dos socialistas nessas ‘conquistas históricas’?



Bodas de ouro

Este é um fato raro: no dia 20, Elpídio Reali Jr. completou 50 anos de atividade na Rádio Jovem Pan de São Paulo. Realinho, há quase 40 anos correspondente da emissora em Paris, exerceu todas as funções: repórter de campo, repórter de política, repórter de rua, repórter internacional. Mas nunca deixou de ser repórter, dos bons. E, num bom período de sua carreira, não dispôs desses luxos de internet, microfone digital, retorno de som, gravadores, links: dependia exclusivamente do gogó. E, como sabem até hoje seus ouvintes, que gogó!



Aérea em terra

Recebemos o release da inauguração do Cine TAM, patrocinado pela empresa aérea, no Shopping Morumbi, em São Paulo. Mas este colunista não vai, não: se o cinema segue os mesmos padrões de atendimento e conforto da linha aérea que lhe dá o nome, a sessão não começa no horário, a pipoca estará gelada e a poltrona, de tão grudada na fila da frente, não vai dar espaço para assistir ao filme.



Tiradentes, herói na forca

Uma beleza de livro para conhecer melhor a História do Brasil: completados 215 anos do enforcamento de Tiradentes, por ordem da rainha Maria 1ª, a Louca, sai o livro O Processo de Tiradentes, dos advogados Ricardo Tosto e Paulo Guilherme Mendonça Lopes. O livro explica o processo judicial que levou Joaquim José da Silva Xavier à pena de morte, com ilustrações da época; e analisa temas curiosos, como a possibilidade de Joaquim Silvério dos Reis, que traiu a luta pela Independência, ter sido o primeiro brasileiro beneficiado pela delação premiada. Preço do livro, só encontrado na Livraria La Selva: R$ 90,00.



E eu com isso?

Alguns belos livros (inclusive o citado acima) aguardam a visita deste colunista. Mas não há tempo: é preciso acompanhar o noticiário e tomar conhecimento de notícias como estas:

1. ‘Justin Timberlake telefonou para Britney Spears’

2. ‘Alemão cobra R$ 15 mil por evento’

E há quem pague!

3. ‘Paris Hilton mostra seios em festa para provar que não tem silicone’

Só que Hebe Camargo certa vez mostrou os seios numa festa de aniversário, para provar que não tinha feito plástica. E, mesmo com o dobro da idade da herdeira americana, tem seios muito mais firmes e bonitos.



O grande título

A concorrência está fraquinha: só um título engraçado, graças a um erro, provavelmente de digitação.

** ‘Íris e Diego encontram Flávia em Fernando em bar’

Mas o melhor título da semana, sem dúvida, é aquele que em grande estilo ressuscita o cacófato:

** ‘Brasil busca gás fora da Bolívia’

Realmente, é uma síntese da política brasileira diante do vizinho Evo Morales.

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Jornalista, sócio-diretor da Brickmann&Associados