Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A vida como ela não é

Varia conforme o site, varia conforme a edição. Mas a quantia que o presidente George Bush pretende injetar no mercado para evitar a recessão nos Estados Unidos varia, de um noticiário para outro, de 130 a 150 bilhões de dólares. Coisa pouca: os 20 bilhões de dólares a mais, ou a menos, são aproximadamente a fortuna de Roman Abramovich, o dono do time do Chelsea, um dos homens mais ricos do mundo. São suficientes para englobar a fortuna de uns vinte Antônios Ermírios. E cobrem com facilidade a CPMF de um ano inteiro.

Só os números são confusos? Não! O correspondente do Washington Post em Buenos Aires fez longa reportagem sobre a luta de dois sertanistas da Funai para provar a existência do último índio de uma tribo em Roraima. Este índio, diz a reportagem, se hospeda em grutas, vive sozinho e fala uma língua desconhecida.

Fala com quem, cara-pálida? Se vive sozinho, quem é que o ouviu falar? Se nem sua existência está comprovada, como se sabe onde dorme?

A matéria lembra um pouco aquele standard que costuma ser divulgado em 19 de abril, Dia do Índio: quando Cabral chegou ao Brasil, havia aqui cinco milhões de índios. E quem os contou? Se hoje, saindo das cidades amazonenses, há lugares em que só se chega após quatro ou cinco dias de barco, como recensear naquela época, e sem sair da praia, os índios que viviam no Alto Rio Negro?

Razão cabe ao sábio Renato Pompeu, grande caráter, grande texto: para avaliar a precisão do noticiário, leia alguma coisa que você testemunhou. É terrível!



Os números, sempre

Agora foi a lavagem das escadas da igreja do Senhor do Bonfim, com 2 milhões de pessoas – ou dois terços da população de Salvador. Os números continuam sendo uma casca de banana no caminho dos jornalistas: como os meios de comunicação se negam a medir o local das manifestações, acaba valendo o número mais interessante para o promotor do evento. E haja milhões!

Bom, dá para fazer um cálculo aproximado sem medir o local do evento. Não é tão preciso, mas já é alguma coisa. Observe as fotos e vídeos da largada da maratona de Nova York, ou de Paris. É um monte de gente, muita, muita gente. Mais tarde, a organização divulga o nome das pessoas que concluíram a maratona (em número obviamente menor do que os que a iniciaram). Ali deve haver algo como quarenta, cinqüenta mil pessoas. Um milhão é vinte vezes aquela multidão. É gente demais – mais, com certeza, do que cabe na Avenida Paulista [ver ‘Sempre cabe mais um milhão‘].



A vida e a morte

Primeiro surgiu a turma do ‘risco de morte’, em vez do tradicional risco de vida. Agora a coisa está evoluindo: há quem defenda a tese de que ‘risco de vida’ é uma expressão errada. Não, não é: nem literária, nem juridicamente. E, se o jornalista Rogério Mendelski a utiliza, com certeza não está errada.

Tomemos na literatura a doença do momento: em O Cortiço, Aluísio Azevedo escreve: ‘Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida’. Em Quincas Borba, de Machado de Assis, há um ‘salvar uma criança com risco da própria vida’.

Nos dicionários, veja Houaiss: ‘risco de vida’. No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, ‘risco de vida’ e ‘perigo iminente de morte’ são tratadas como expressões equivalentes.

Juridicamente, diz o Código de Ética Médica: ‘em iminente risco de vida’. E há as Gratificações por Risco de Vida.

Quem quiser falar em risco de morte, sinta-se à vontade. Está correto. Mas risco de vida é tão correto quanto – e muito mais tradicional.



Reportagem…

Lembra daquele motociclista que foi morto com dez tiros por um promotor, num caso noticiado como tentativa de assalto? Pois é: este colunista só viu na TV Record entrevista com a família do motociclista; ou com seus vizinhos de rua. E o resto da imprensa? Como é que ele vivia? Trabalhava, ou já tinha trabalhado, em algum lugar? Que é que diziam dele seus patrões e colegas de trabalho?

Os vizinhos, especialmente, fazem muita falta. Vizinho tem noção de quem é gente boa e de quem não é.



…e reportagem

A revista Veja, com eco e suíte em vários outros veículos de comunicação, disse que o delegado Romeu Tuma Jr., num departamento da Secretaria Nacional da Justiça, que ocupa, teria pedido que todos os processos que envolvessem políticos lhe deveriam ser enviados, para que pudesse mandar a fatura.

Tuma talvez não tenha dito essa frase; ou, tendo-a dito, viu-a fora do contexto, ganhando outro significado. Talvez ‘mandar a fatura’ queira dizer outra coisa que não aquela que pessoas mais maldosas poderiam imaginar.

Uma parte da reportagem foi confirmada: houve gente que deixou o departamento por não concordar com a postura do delegado Tuma Jr. Mas faltou uma conversa franca, em que ele pudesse explicar exatamente o que quis dizer. Dar pouca repercussão ao caso pode parecer favorecimento à autoridade, mas não é: deixar as coisas claras é sempre bom para um homem público.



Como…

A imprensa noticiou a morte de um antigo dirigente trotsquista francês, Pierre Boussel, com quase 90 anos. Boussel (ou Pierre Lambert, seu codinome) foi um dos monstros sagrados dos trotsquistas brasileiros. Curioso é que, segundo a notícia, ele pertencia à Sexta Internacional.

O tempo passa, como dizia o velho anúncio: este colunista, certamente desinformado, conhecia só até a Quarta. Mas seus amigos trotsquistas também ignoravam a existência até mesmo da Quinta.



…é…

Frase de Jarbas Passarinho, que entre seus inúmeros cargos foi ministro da Educação, no artigo ‘Sociedade feliz’, publicado em Belém do Pará: ‘Com o poder de compra tão favorável, chegará uma multidão de turistas em navios soberbos, muito diversos do Santa Maria, Pinta e Nina do almirante Cabral (…)’.

O detalhe é que o almirante Cabral jamais comandou naves com esses nomes. Talvez o ex-ministro da Educação o tenha confundido – os dois, afinal de contas, não são descobridores? – com o almirante Cristóvão Colombo.



…mesmo?

As duas notícias se referiam ao mesmo desfile, da mesma grife, com as mesmas modelos, vestindo as mesmas roupas.

1. ‘Vermelho brilha no inverno preto e branco da Fórum’

2. ‘Izabel Goulart abre coleção branco, preto e rosa de Tufi Duek, em desfile para Vips’



E eu com isso?

A República está preocupada com a possibilidade do apagão. Claro: com o apagão, param as indústrias, param os serviços, pára até a divulgação de notícias. Sem eletricidade confiável, estável, contínua, não poderemos saber que…

** ‘Noiva, Juliana Paes exibe anel em ensaio técnico’

E pensar que ela faz essas coisas e nem ainda está casada!

Nem poderíamos dormir, na dúvida que só a notícia precisa nos esclarece:

** ‘Mel Lisboa vai a restaurante’

Ou ainda:

** ‘Juan Alba toma banho de mar em Florianópolis’

E Suzana Vieira, então? Participou do ensaio da Beija-Flor!



Os grandes títulos

A semana foi rica: temos títulos ‘obra aberta’, em que cabe ao leitor completar a frase para descobrir o que querem dizer; há títulos que merecem vários tipos de interpretação; e há até títulos rimados, como este:

** ‘Luva colada em carrinho divulga salgadinho’

Na categoria ‘obra aberta’, veja que beleza:

** ‘Airbus mantém liderança em entregas, mas perde para a Boeing em aviões ven’

O melhor, entretanto, é o que se abre a interpretações:

** ‘Lídio Toledo tem boa evolução do quadro infeccioso’

Isto é bom ou é ruim?

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados