Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As perguntas sem resposta

Há muito tempo não se via uma cobertura noticiosa tão extensa quanto a do massacre da escola do Realengo. Já se falou de tudo (e, como se comentou nesta mesma coluna, todos os preconceitos encontraram lugar nas matérias). Mas foi preciso ler uma novelista, Glória Perez, para lembrar quais as perguntas que não foram feitas nem respondidas. Sem as indagações de Glória, qualquer reportagem ficará incompleta. Algumas dúvidas:


1. Qual a fonte de renda do atirador? Segundo as reportagens, estava desempregado há seis meses. Mas sua conta de telefone ultrapassava os R$ 900 mensais, segundo o jornal Extra; doava R$ 50 mensais a uma entidade beneficente; pedia refeições diariamente no Bar do Bigode, pagando R$ 7 cada uma. Pagou R$ 1.200 por uma arma, R$ 260 por outra, em dinheiro; comprou muita munição, não apenas para o massacre, mas também para treinar tiro. Comprou o carregador rápido para não perder tempo colocando balas nos revólveres.


2. Por falar em treinamento: quem o ensinou a atirar? Onde treinava, em que local que ninguém o via?


3. Fala-se em insanidade mental. Existe algum prontuário que ateste esta insanidade? Se não existe, de onde tiraram a informação, considerando-se que o rapaz morreu logo depois do massacre? Se existe, quem foi o médico que o examinou? Que remédios lhe receitou?


O crime foi tão terrível que, aceitemos, repórteres e editores ficaram desnorteados. Mas isso ocorre num primeiro momento. Já se passaram quase duas semanas desde que o crime foi cometido, já houve tempo para que editores e repórteres façam as perguntas corretas para obter respostas sejam satisfatórias.


Até lá, o que os meios de comunicação têm feito é mostrar a pessoas que querem se tornar famosas que, se cometerem um crime suficientemente hediondo, terão por um determinado período toda a fama que desejam. Definitivamente, não é esta a função da imprensa.


Vale um debate jornalístico sobre este tema: até que ponto é possível evitar a glorificação de um assassino em massa, sua transformação em lenda?


Mais uma pergunta


A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo montou uma assessoria de imprensa eficientíssima, correta, rápida, que distribui informações abundantes e precisas, sem floreios. Vale o elogio – e vale também perguntar de novo por que, dispondo de uma estrutura informativa de alta qualidade, a Secretaria de Segurança Pública não responde a algumas perguntas que esta coluna vem formulando desde outubro do ano passado. A Rota, Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, unidade de combate da PM paulista, comemorou 40 anos entregando o título ‘Amigo da Rota’ a um grupo de pessoas e empresas, ‘pelas contribuições dadas ao grupo’. Entre os homenageados, quatro cervejarias: Ambev (Brahma, Skol, Antarctica), Schincariol (Nova Schin, Devassa), Femsa (Kaiser) e Heineken.


A imprensa não perguntou por que as cervejarias receberam a homenagem ‘pelas contribuições dadas ao grupo’. Esta coluna perguntou e não teve resposta.


Terão doado dinheiro, talvez? Equipamentos? Tudo bem: essa contribuição estaria registrada? Onde? Na saída e na entrada?


E onde fica um eventual conflito de interesses? Uma dessas empresas já foi invadida pela Polícia. A casa de seu proprietário foi sitiada, de madrugada, e os policiais ameaçaram derrubar as portas com bombas. Mas, se uma empresa é ‘Amiga da Rota’, haverá clima para investir contra ela?


Pergunta nunca é inconveniente. O que pode ser inconveniente são as respostas. Mas qual seria a inconveniência de esclarecer de vez o assunto?


O samba do araponga doido


Groucho Marx, o mais engraçado da família, adorava definir aquilo que os estrategistas chamam de Inteligência Militar:


1. Inteligência militar é uma contradição em termos.


2. Inteligência militar está para a inteligência assim como a música militar está para a música.


Pois o Brasil tem uma Agência Brasileira de Inteligência, Abin. Vale a pena ir ao seu endereço eletrônico, até para ter certeza de que o inacreditável é verdadeiro.


Ali se encontra, por exemplo, um incrível vídeo com Batman, Robin e a Mulher-Gato que tem o objetivo de ensinar português. Ensina, por exemplo, que o plural de ‘esforço’ é ‘esfórços’, com o ‘o’ aberto, e não ‘esfôrços’, com o ‘o’ fechado. E que a palavra correta é ‘exigências’, não ‘egigências’. Custo? Sabe-se lá; mas não fica bem ter agentes de inteligência que não sabem sequer falar a nossa língua, não é mesmo?


Aprende-se que a Abin tem um Núcleo de Educação à Distância. Que seu símbolo é o carcará, ave ‘altiva e forte, assim como a Abin’. Que existe algo chamado PNPC, ‘Programa Nacional de Proteção do Conhecimento Sensível’, seja isso o que for. E há um departamento que, este sim, deve cumprir de modo completo suas funções: a Contra-Inteligência. Vá ao site. É diversão garantida.


Grosseria


Os meios de comunicação, referindo-se à nomeação da atriz Ítala Nandi para um cargo no Governo do Paraná, pelo então governador Roberto Requião, se referiram a ela como ‘atriz de pornochanchadas’. Há aí preconceito e desinformação: esqueceram-se de uma carreira notável em teatro, cinema e TV, de Pequenos Burgueses, de Gorki, sob a direção de José Celso Martinez Correa, até o Rei da Vela, Galileu Galilei, Na Selva das Cidades. Não sabiam que, no cinema, como atriz de Pindorama, ganhou a Palma de Ouro em Cannes; ganhou o Prêmio Moliere por Guerra Conjugal; e a Coruja de Ouro por Os Deuses e os Mortos.


Ítala Nandi foi uma das criadoras do Festival de Gramado, desempenhou três papéis numa só novela, Direito de Amar, na Globo, está hoje nas novelas da Rede Record; escreveu um livro sobre o Teatro Oficina; foi professora de Teatro, Cinema e TV na UniverCidade e na Universidade Estácio de Sá. E participou de algumas pornochanchadas. Mas defini-la como ‘atriz de pornochanchadas’ é o mesmo que definir Pelé como ator do filme Fuga para a Vitória. É escolher um episódio menor para descrever um personagem muito maior do que isso.


Bola fora


Caio Blinder é um jornalista de primeira linha, com um defeito fundamental: sempre vive preocupado em ser politicamente correto. Pois não é que justo ele, Caio, escorregou no politicamente incorreto?


No programa Manhattan Connection, comandado por Lucas Mendes na Globonews às 11 da noite de domingo (10/4), Caio acabou insultando a princesa Rania, da Jordânia, e outras esposas de monarcas e ditadores. ‘Politicamente, ela (Rania) e as outras piranhas são intragáveis. Todas elas têm uma fachada de modernização desses regimes, ou seja, não querem parecer que são realeza parasita nem mulher muçulmana submissa. Isso é para vender para o Ocidente, enquanto os maridos estão lá batendo e roubando’.


Foi uma pisada feia na bola – como o próprio Caio já admitiu, e da qual o coordenador do programa, Lucas Mendes, também se desculpou. As desculpas de Caio e Lucas Mendes não adiantaram muito: o embaixador da Jordânia em Brasília protestou oficialmente, com apoio de 17 outros embaixadores, e ameaça processar as Organizações Globo.


O curioso é que o programa é gravado e, supõe-se, tem um editor. Quem fala de improviso está sujeito a falhas. É também para isso que se paga o editor, para que identifique eventuais falhas e deixe o programa limpinho.


A imprensa de fora


Ler revistas pornográficas é crime? Pois este é um dos crimes de que é acusado pela imprensa chinesa o artista plástico Wei Wei, preso quando se preparava para uma viagem ao exterior. A tática lembra a brasileira, da época da ditadura: dizem os jornais amestrados que ele está confessando seus crimes (que incluem a leitura de revistas de sacanagem). A presidente Dilma Rousseff estava lá, mas nada falou – talvez não fosse diplomaticamente correto fazê-lo. Mas a imprensa brasileira estava lá e não fez perguntas sobre o tema.


A imprensa internacional faz reportagens sobre ele, que é apontado como um intelectual de peso. O Museu Guggenheim iniciou coleta de assinaturas pedindo que ele seja libertado. Os artistas brasileiros poderiam solidarizar-se com ele. A Fundação Bienal de São Paulo poderia coordenar esses esforços. Cá entre nós, se o regime chinês vai bem, será que um artista plástico poderá desestabilizá-lo?


Wei Wei é um bom tema para reportagens. Tudo bem, continuem falando sobre o modelo de vestido que a presidente está usando, sobre Brics, Basic, sobre essas coisas que devem ser importantíssimas. Mas,quando um ser humano recebe o peso da intolerância governamental, todos os seres humanos devem solidarizar-se com ele.


O dono da bola fora


A Folha de S.Paulo modificou um pouco a redação da seção ‘Erramos’. Em vez de apenas registrar o erro e corrigi-lo, passou a divulgar, em casos mais graves, o nome do repórter que assina a matéria.


Há uma justificativa interessante para a medida: se o repórter assina a matéria, assume a responsabilidade por ela. A assinatura não deve ser apenas um prêmio, mas também uma garantia de qualidade.


Só que as coisas não são tão perfeitas assim. Muitas vezes, o repórter que assina é o coordenador de uma equipe que envolve gente de outros estados e cujos erros ele não tem como detectar. E há uma série de outros problemas que quem trabalha numa redação conhece a fundo.


Esta coluna, em princípio, identifica problemas, mas não pessoas. Fala do pecado, não do pecador. Muita gente reclama desta opção (curiosamente, muita gente que, agora, se coloca contra a iniciativa do jornal). Mas é outro tema que vale debate jornalístico: o ‘Erramos’ – uma conquista da transparência da informação, embora ainda menos abrangente do que deveria – está ou não correto em identificar os autores das matérias com erros graves?


Esplendor e sepultura


Há alguns anos, o Emir Nogueira, notável jornalista, escreveu um excelente Manual de Redação na Folha de S.Paulo. Muitos anos depois, a Folha fez outros manuais, todos de boa qualidade, e Eduardo Martins lançou um ótimo no Estado de S.Paulo. Todos os grandes jornais aderiram, gastaram dinheiro, puseram gente boa no projeto. Para que? Para nada!


** Num grande jornal, veja o texto: ‘(…) até que uma conhecida o sugeriu ir à Paulista’


** Num importante portal noticioso, ‘Polícia divulga vídeo que atirador dá mais detalhes do massacre em escola’


** De um release de jornalistas para jornalistas: ‘Fugindo do censo comum’


** De um portal noticioso dos mais lidos: ‘Imprensa volta a circular boato de gravidez de futura princesa’


Como…


Lembra do malucão que escalou o mastro da bandeira, em Brasília? Veja a notícia de um grande jornal:


** ‘O homem não identificado que subiu no Panteão Nacional (…).’ Mais à frente, diz a mesma notícia: ‘Paulo Sérgio Ferreira, 38 anos, será transferido para a penitenciária da Papuda, também na capital, onde ficará preso a espera de decisão judicial (…)’


Que faltou para identificá-lo, se o jornal tinha seu nome, idade e outros dados pessoais? Que entregasse sua carteira de identidade em três vias autenticadas, com firma reconhecida?


…é…


Na mesma notícia, relata-se o trabalho dos policiais para convencê-lo a descer do mastro. Segue o texto:


** ‘Ao chegar ao chão, o adulto foi revistado e levado por policiais federais até a Superintendência da PF, em Brasília’.


O adulto. O caro colega já tinha lido esse tipo de identificação numa matéria?


…mesmo?


Título de um grande portal de Internet:


** ‘Ladrão é detido por abusar de semelhança com Ronaldinho’


Não é bem isso, como informa o texto: o ladrão não abusou de nada. Mas, como é parecido com Ronaldinho, as vítimas o reconheceram rapidamente.


Mundo, mundo


Duas notícias do mesmo portal noticioso, divulgadas no mesmo dia:


** ‘Lindsay Lohan se tranca em apartamento para fugir do pai


** ‘Lindsay Lohan nega ter se trancado em casa para fugir do pai


E que é que aconteceu de verdade?


Este colunista não tem a menor idéia. Já não dá para confiar nem na imprensa internacional, nem na área de fofocas!


E eu com isso?


Repare: o Jornal Nacional está cada vez mais com cara de Aqui, Agora. A culpa não é do Jornal Nacional, mas do país que retrata – o país das chacinas, do massacre na escola, dos assaltos, do crack, de autoridades pilhadas quando punham a mão no pudim. Ficou difícil até ver TV.


Defendamo-nos! Vamos ao noticiário frufru!


** ‘‘As pessoas são iguais, só têm grana diferente’, diz Huck’


** ‘Grávida, Kate Hudson anda de caiaque em Angra’


** ‘Scarlett Johansson é flagrada com barriguinha’


Dizem que está grávida de Sean Penn.


** ‘Totia Meirelles pilota moto amarela pelo Leblon’


** ‘Cindy Crawford diz que só faz sexo com o marido na casa de hóspedes’


Tudo bem, se os hóspedes não se incomodarem.


** ‘Hebe Camargo leva Ratinho para o sofá da RedeTV!’


** ‘Catherine Zeta-Jones está se tratando de Transtorno Bipolar’


** ‘Thaila Ayala ganha bolo e cachaça de aniversário’


** ‘Reese Witherspoon posa com elefante para revista americana’


** ‘Caio Castro vai à praia com novo visual e braço engessado’


O grande título


A variedade é boa. Há um título inusitado:


** ‘Mãe perde guarda de bebê por não perceber que ele caiu de carro’


Aliás, pelo incidente citado, já nem o guardava direito.


Há um bem engraçado, especialmente para quem conhece os antecedentes:


** ‘Berlusconi teria sugerido greve de sexo de Pato com namorada’


Justo Berlusconi sugerindo greve de sexo! Mas é explicável: primeiro, e menos importante, porque a namorada de Pato é a filha dele, Berlusconi; segundo, e mais importante, porque Pato é o grande astro do time que lhe pertence, o Milan. Berlusconi conhece a família: sem a greve de sexo que sugeriu, Pato teria energia para jogar bola?


Há dois títulos que motivam a pergunta ‘que é que tem a cueca com a calça?’:


** ‘Paraquedas falha, mulher sobrevive e descobre gravidez’


** ‘EUA investigam sumiço de mãe de 5 que saiu de casa para alugar DVD’


Se ela tivesse mais filhos, ou menos, escaparia de sumir?


E o grande título, dos mais singelos, saiu de um anúncio de colchões:


** ‘Ficar doente é prejudicial à saúde’


Lembra um pouco aquele slogan engraçado, ‘país rico é país sem pobreza’.

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Jornalistas, diretor da Brickmann&Associados