Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Brincadeira tem hora e lugar

O jornalista Júlio Ottoboni, em 19/2/2008, em ‘A imprensa que afaga e apedreja‘, neste Observatório, faz uma crítica à imprensa que teria por sua vez criticado o discurso fora de hora e propósito da ministra Marina Silva no 3º Simpósio sobre Criacionismo e Mídia, promovido pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo. Tenta desculpá-la como se fosse algo sem maior importância. Não concordo com a ministra e acho que só a mesma apenas pensar em voz alta não seja perdoável. Numa sociedade plural, não pode uma idéia ou uma verdade (no caso, absurda) ser imposta para o ensino de crianças de que idade seja como verdade.

Parece pouco para o nosso jornalista o deslize da pessoa pública. Mas não é. Não passa a tentativa de uma religião de se privilegiar na esfera pública introduzindo a sua visão particular arcaica em cima das crianças das demais. E que aqueles que acreditam só o fazem por terem sido ensinados erradamente, como se ciência fosse. A verdade científica em ciências naturais não é democrática. Não se curva à vontade da opinião da maioria, como querem.

Vamos supor que o presidente da República decidisse contratar um astrólogo para assessorá-lo nas próximas decisões econômicas, ou que o ministro da Educação resolvesse contratar Eric von Däniken para elaborar uma cartilha sobre a origem da vida e das civilizações criadas pelos ‘deuses astronautas’. Afinal, para aqueles que crêem nisto, é uma verdade a ser cultivada, tanto como o criacionismo é para o religioso fundamentalista. No entanto, o criacionismo, a astrologia e a hipótese ufológica estão todos no mesmo nível de comprovação e na mesma medida que só sobrevivem na mente das pessoas crédulas, pois as evidências científicas tornam estas coisas completamente absurdas.

O real e o imaginário

Para quem tem formação científica, são coisas dantescamente falsas de serem propostas ou que pessoas que possuem o poder que têm ministros acreditem e cogitem pôr em prática. Não podemos colocar a religião como opção para a ciência, pois evidentemente ela não é. Como a ciência não fornece as ilusões e certezas metafísicas de quem procura na prática religiosa. Motivo da existência de milhares de seitas e religiões, e de ter uma ciência. ‘Todas as religiões são a verdade sagrada para quem tem a fé mas não passam de fantasia para os fiéis das outras religiões’ (Isaac Asimov). Eu diria que não só são fantasias como são vistas como erros grosseiros.

Considerar a terra chata ou redonda, a terra imóvel ou girando em volta do sol, as doenças transmitidas por mau-olhado ou por infecções bacterianas, a chuva cair no solo por gravidade ou atraída por seu igual, sendo tudo uma mera questão de escolha que cabe ao leitor optar por qual ‘opinião’ lhe agrade mais e lhe convenha e a imprensa não denunciar os motivos de tais absurdos por um subjetivo respeito é negar a sua função. Deve ela levar o entendimento do sábio às pessoas, e não o dos tolos. E mostrar claramente a todo o momento por que são absurdos.

Ou os jornalistas estão despreparados para esta função social? Porque, claramente, o criacionismo não se diferencia destas ‘opiniões’ que o crente acredita serem modificáveis pela ‘vontade’ livre dos leitores que a mídia deva respeitar e favorecer. Quão baixo está o nosso ensino fundamental neste país que não se sabe diferenciar o que é real e o que é apenas fruto da imaginação.

Ditadores saem de cena mortos

Como dizia Isaac Asimov (A Relatividade do Errado), é certo que o conhecimento científico evoluiu da terra plana, da terra esférica, da terra levemente achatada para hoje em dia chegar a terra com uma leve forma de pêra. Mas voltar a opinar que a mesma seja plana conforme o juízo e a conveniência do momento como certa é um equívoco enorme. As pessoas precisam aprender o que é sujeito a opinião, valores pessoais, gostos e preferências daquilo que é científico e real. Não adianta acreditar que não vai bater correndo de carro sem cuidado porque vai se arrebentar. Não está na crença achar que ser pode beber o quanto quer porque não é pecado porque o álcool tóxico vai provocar dano. Não é possível descartar a gravidade como um mero preconceito científico porque ela não vai desaparecer pela nossa aspiração. Os fatos científicos não são modificáveis pela nossa opinião. Apenas podemos usar o conhecimento deles para tentar atingir nossos objetivos pessoais ou coletivos, quanto estão corretos (um meio indireto de perceber os acertos). Para isto que a ciência se torna vital. Não pode se conseguir atingir estes desígnios sem o conhecimento o mais próximo do real possível. Não são os nossos desejos pessoais, os mais sedutores possíveis, que proporcionam isto.

Pessoas hoje em dia ainda acreditam, pela facilidade das pessoas públicas, nem sempre de melhores qualificações morais, e muito menos escolares, de criar mistificação ao não serem contraditadas, como foi a posição fora de local da sra. ministra, que a Terra é redonda apenas porque seja uma ‘opinião’ mais popular no momento. Ainda crêem ser possível existirem ogros, gnomos, duendes. Afinal, opiniões que se devam ponderar devem ser aquelas emitidas por pessoas dedicadas ao conhecimento.

A queixa da esquerda que não obtém sucesso devido à imprensa é falsa, pois nos lugares em que tanto o socialismo nacionalista como o internacionalista assumiram o poder, o que menos se teve foi imprensa – apenas propaganda, tentando criar nas pessoas um mundo que não existia na verdade fora da fantasia fabricada em redações. Bilhões viveram sob este regime e não se pode dizer que a mídia tenha sido responsável pelos seus estrondosos insucessos em todos os locais tentados. Não teve a ciência melhor liberdade pela falta da mídia. Fidel não fracassou redondamente por causa da mídia. Provavelmente fracassou por falta de uma mídia livre para criticar e denunciar. Pois fora disto, o governante não precisa fazer nenhuma reavaliação e exame de consciência. Motivo pelo qual ditadores apenas saem de cena mortos.

Lógica errada

O que pode nos tirar do rumo ao retorno à Idade Média é este espírito combativo que estamos deixando para trás constrangidos pelos fanáticos que não medem esforços no sentindo contrário. Quem diria, há cinqüenta anos, que novas Cruzadas ou novas Jihads seriam travadas no século 21? Que por causa de charges, em revistas na Dinamarca, a insânia daria volta ao mundo, ou que a fúria islâmica tentasse humilhar o papa? Que pessoas são mortas friamente não porque não crêem apenas, mas porque apenas divergem de detalhes.

Ou possuímos convicção do porquê as coisas são, ou estaremos no mesmo estágio medieval. Apenas a diferença que naquela época se desconhecia as coisas, mas hoje em dia, a causa é que levamos as informações apenas como opiniões, sem levarmos o entendimento do porquê elas são de determinada maneira, e não podem ser de outra, ao bel prazer.

A surpreendente declaração de Lula que desgostou o jornalista Júlio Ottoboni – ‘Não somos daqueles que defendem a Amazônia como um santuário da humanidade’ (Estado de S. Paulo (13/2/2008) –, ao contrário da posição da ministra, pode ser politicamente errada, mas não é por certo uma verdade científica atacada. Uma lógica política errada.

Lixo e trigo

Ou as pessoas se propõem a defender o que se está extinguindo, o Estado laico, o direito de todos, a liberdade de opinião, a liberdade de expressão, ou voltaremos ao passado. Liberdade de expressão e de opinião, é claro, de tê-las. Não de não ser contraditado e de ser demonstrado os erros. Pois fora disto nada de útil se teria ao espalhar boatos, mistificações, mentiras, explorações da fé e da credulidade das pessoas. Daqueles que vivem do estelionato vendendo o Maracanã ou uma vida após a morte sem poderem cumprir, cobrando o dízimo para viverem e enriquecerem às custas dos incautos. Afinal, não foi pela mídia, que não existia, que Sócrates, Hipatia, Giordano Bruno, Galileu, Lavoisier…. foram calados. Nem foi por serem contraditos pelos estudiosos da época ou desacreditados por eles. Mas foi pelos operadores do direito, pelas autoridades que tinham o poder da justiça nas mãos para queimar livros e ceifar vidas. Exemplo claro sofrido pelos assim chamados revisionistas hoje em dia. A cadeia usada abusivamente para determinar uma posição oficial que não consegue ser feita pelo contraditório apenas. Isto que deteve os inovadores. Não existe ‘blindagem’ em revistas científicas para publicações. Elas são justamente expostas ao crivo da crítica e da refutação para se estabelecer.

Mas, no fim, tudo são questões políticas que decidiremos sem relação com a evolução natural do mundo. Como meros animais imaginativos, cuja racionalidade é muito limitada, até no pouco tempo que fazemos tentativas de improvisar o uso dela, a nave seguirá a sua trajetória inexorável no espaço. Apenas nós padeceremos pelas nossas decisões erradas e nossas crenças emotivas em busca desta tranqüilidade infantil de segurança paterna perdida na vida adulta. Se não soubermos diferenciar lixo de trigo, será uma lástima para nossa alimentação intelectual.

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Médico, Porto Alegre, RS