Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Com a imprensa no escuro

O apagão no sistema elétrico nacional provocou algo além do país retornar literalmente à idade das trevas. O medo primordial do escuro parece ter despertado a agressividade instintiva em setores da imprensa, do governo federal e na classe política. O que comprovou que temos ainda, como nação, um longo caminho a percorrer para sairmos do atraso da cultura colonial.

Mas quem procurou rosnar como um animal acuado foi o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão. E o alvo dos dentes arreganhados não poderia ser pior: os cientistas. Em particular o Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat), pertencente ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e responsável por colocar o Brasil entre os três países com maior produção de estudos sobre raios em todo mundo.

Em meio ao breu que atingiu 18 estados e 70 milhões de cidadãos perplexos, o rádio fez uma brutal diferença para quem buscava algum tipo de informação. A salvação informativa veio do velho companheiro de milhões em todo mundo, o rádio de pilhas. E vale todo destaque à perfeita cobertura feita pela Rádio Jovem Pan, que mais uma vez confirmou sua excelência como veículo de comunicação.

Foi pelo microfone das rádios que o ministro Lobão, em pleno blecaute, profetizou a razão de metade do território nacional estar sob o pânico das trevas. O problema foi causado por ‘um fenômeno atmosférico’ – e culpou os raios. Como a verdade e a honestidade nunca foi o forte da classe política brasileira, em sua lógica rasa culpar alguém ou alguma situação é mais prático, rápido e pacifica os inconformados.

Encontrar e distribuir culpados

Mas enquanto parte da imprensa se preparava para avançar feita uma matilha esfomeada sobre a pré-candidata ao governo federal, a ministra Dilma Rousseff, que já ocupou a pasta de Minas e Energia, outros jornalistas ousaram colocar a verdade dogmática de Lobão a prova. E para isto nada melhor que a exatidão dos que se utilizam dos métodos científicos para suas afirmações.

Para os que buscaram esse viés em sua cobertura jornalística, quase todos os caminhos levavam à porta do primeiro doutor em eletricidade atmosférica do Brasil e criador do Elat, Osmar Pinto Júnior. Esse gaúcho radicado em São José dos Campos (SP), gremista fanático, é tido como uma das maiores autoridades mundiais em raios. Seu vínculo com o tema transcende o aspecto profissional, chegando ao círculo familiar, pois é casado com a segunda cientista brasileira doutorada também nesta área.

Ali, raio e tempestade é assunto familiar, em todos os sentidos. E para piorar a situação do ministro, no universo da ciência inexiste a lógica populista adotada pela classe política. Se houver um dogma, mesmo que esse parta de um dos cardeais do papado senatorial de José Sarney, deve ser analisado sob a luz do conhecimento científico, por mais irônico que pareça.

Por ter a segunda maior rede mundial de detectores de raios e mais de duas décadas de estudos incessantes, Osmar Pinto Jr. consultou suas informações e lançou por terra a afirmação ministerial. O apagão não ocorreu devido aos raios, como queria Lobão, que nesta altura procurava encontrar e distribuir culpados, mesmo que isto remontasse ao período do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Competência questionada

O senador licenciado e imposto ao governo Lula pelo fisiologismo que rege a dinâmica dos poderes enfureceu-se ao saber que um cientista do Inpe o havia contestado na imprensa. Então partiu dos uivos para os rosnados, ávido por devorar a primeira vovozinha ou chapeuzinho que visse pela frente, como se o conhecimento científico se encaixasse neste nefasto cardápio.

‘Não é atribuição do Inpe opinar sobre energia elétrica. Ele opina sobre fatos climáticos e nada mais’, bradou, dentro do mais fiel espírito coronelista sertanejo, e partiu para ofensiva contra a direção do instituto. Neste arroubo de arrogância, só conseguiu mostrar o tamanho de seu despreparo para tal função. Particularmente em um governo que tem apresentado ao mundo um Brasil moderno, sem complexos de inferioridade e em busca de seu espaço no cenário internacional.

Para Lobão, descargas elétricas atmosféricas fogem do contexto meteorológico. E ao resumir a atividade do Inpe a apenas uma de suas atribuições, desenvolvida pelo Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), apresentou ainda mais à opinião pública o seu despreparo. Inclusive por desconhecer as atribuições de um dos mais importantes institutos científicos do Brasil. Logo o ministro, que gravita na política deste os primórdios dos anos 1960, e até trabalhou como jornalista em Brasília.

Desde que Edison Lobão assumiu o ministério, sua competência para tal foi questionada. Foi alvo de preocupação de grande parte dos integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT) mais próximos do presidente Lula. Pois a facilidade em conseguir um especialista para a pasta era imensa e única. Com grande penetração na USP, Unicamp e nas universidades federais e diversos institutos de pesquisas, o PT teria à disposição profissionais com farta titulação e reconhecimento internacional para ocupar o cargo.

Fundamental para ações preventivas

Como um lobo sem faro, o ministro conseguiu indignar a comunidade científica, aumentar as fundadas suspeitas sobre sua inépcia para o cargo e perdeu a oportunidade de curvar-se ao conhecimento forjado dentro dos institutos científicos nacionais. Mesmo esses tendo que driblar toda espécie de dificuldade, grande parte dela criada pelos analfabetos científicos que se apoderaram da classe política.

O Elat, por meio da direção do Inpe, enviará ao governo um relatório detalhado sobre as quedas de raios e tempestades nas localidades apontadas como iniciadoras do blecaute. Neste documento, o grupo chefiado por Osmar Pinto Jr. mostrará que as linhas de transmissão foram severamente atingidas por raios no período da tarde no dia do apagão e, mesmo com condições adversas, se mantiveram ligadas e em funcionamento. E, para completar o esclarecimento, o Elat mostrará que tem parcerias com a Cemig, Furnas e empresas com complexo Eletrobrás, como Eletrosul e Eletronorte.

Se o ministro ao menos soubesse disto, entenderia que o trabalho científico desenvolvido por esse grupo do Inpe tem sido fundamental para ações preventivas que evitaram uma sucessão de apagões no país ao longo de quase uma década. E, com certeza, reavaliaria seu conceito quanto à função dos órgãos de pesquisa do país e a eficácia da ciência.

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Jornalista e pós-graduado em jornalismo científico