Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guerra suja da eleição

Em tempo de guerra, dizia o senador americano Hiram Johnson, a primeira vítima é a verdade. Em tempo de eleições, a primeira vítima é a ética; depois vêm as outras vítimas, a verdade e a civilidade.

Este é um ano eleitoral e, para a Presidência da República, a conquista da prefeitura de São Paulo é essencial. A Revista de História da Biblioteca Nacional, do governo, publicação institucional cheia de anúncios de estatais, abre fogo contra José Serra, um dos possíveis candidatos tucanos, dá destaque a um livro de acusações contra ele e o classifica como um político “aparentemente morto” – tudo, claro, com dinheiro do governo, na maior parte fornecido por estatais. Em latim, língua jurídica por excelência, isso seria classificado como “abuso do poder econômico”. E muita gente perdeu o mandato, no Brasil, por fatos como este.

E as vítimas deste ataque? As vítimas deste ataque são os vilões de outro: uma ofensiva organizada pela internet cita uma série de informações falsas para atribuir ao PT a responsabilidade pelo assassínio do prefeito de Santo André, Celso Daniel (também pertencente ao PT) e encobrimento das provas. Há na nota, fartamente distribuída, uma ou outra informação verdadeira, conhecida, mas divulgada como se fosse uma revelação fantástica, um segredo só agora desvendado. Por exemplo: o ministro Paulo Bernardo é casado com a ministra Gleisi Hoffman. Num só verbete do Google, este fato é mencionado 117 mil vezes. O resto é besteira: sugere, entre outras coisas, que a delegada Elizabeth Sato, que comandou uma das investigações sobre o assassínio de Daniel, é tia de Marcelo Sato, marido de Lurian, filha de Lula. Só que Elizabeth Sato não é tia de Marcelo Sato, como não é tia de Sabrina Sato, como não tem nada a ver com a Granja Sato, como só se relacionou pela imprensa com o ex-primeiro-ministro japonês Eisaku Sato. E a nota garante que os ministros Gilberto Carvalho e Miriam Belchior são irmãos – o que só seria verdade se antes se admitisse que os seres humanos são todos irmãos.

As falsas informações são também incompletas: omitem que as investigações da Polícia Federal, que apontaram a morte de Celso Daniel como crime comum, foram feitas no governo Fernando Henrique, do PSDB; e as duas investigações da Polícia Civil paulista, que chegaram ao mesmo resultado, foram feitas sob o governo tucano que está no poder em São Paulo desde 1995.

Quem matou Celso Daniel, ou mandou matá-lo, é algo que será submetido em breve à Justiça. Da mesma maneira que uma publicação ligada ao PT tenta enfraquecer José Serra entre o eleitorado, as falsas informações sobre o caso Celso Daniel tentam influenciar a opinião do júri a que será submetido o caso.

Nos dois casos, jogo sujo. No primeiro, uma agravante: nós é que pagamos a conta.

 

A igualdade perante a lei

1. O promotor Thales Schoedl, que matou uma pessoa e feriu outra no réveillon de 2004, ganhou ação de danos morais contra o jornal O Estado de S.Paulo, que o chamou de “assassino”. Segundo o juiz, o jornal não poderia chamá-lo de “assassino”, criminoso, “e dessa forma expô-lo ao leitor”. E fixou a indenização em R$ 62 mil.

2. Daniele Toledo do Prado, mãe solteira, formalizou queixa de estupro contra o médico-residente do pronto-socorro onde sua filha Vitória, de um ano e pouco, estava internada. Na semana seguinte, a menina morreu. A polícia acusou a mãe de provocar a morte da filha, com cocaína misturada na mamadeira. A imprensa massacrou a moça, dando-lhe até um apelido: o Monstro da Mamadeira. Presa numa cela com 19 mulheres convencidas de sua culpa, Daniele foi espancada durante quatro dias sem que os guardas interviessem. Resolveram matá-la: enfiaram-lhe uma caneta esferográfica no ouvido direito, para perfurar-lhe o cérebro. Uma das detentas impediu o assassínio; mas a caneta já havia perfurado o tímpano. Daniele ficou surda do ouvido direito, com lesão neurocerebral, teve fratura do maxilar e apresentou hematomas no corpo inteiro. A advogada e os pais foram impedidos de visitá-la. Daniele ficou 37 dias presa – e, surpresa, a tal cocaína na mamadeira não existia! As razões da morte da menina eram outras, não a ingestão de drogas. As acusações eram falsas, a imprensa se comportou indignamente, covardemente, confiando apenas em declarações de “otoridades”, contribuindo para o linchamento de Daniele. Ela foi absolvida.

Qual a indenização de Daniele, que não é diferenciada a ponto de merecer tratamento diferenciado, que não pertence a corporações que cuidam de seus privilégios? Sente-se, caro leitor: R$ 15 mil – menos de um quarto do conferido ao promotor chamado de assassino. Mais R$ 414 mensais pela invalidez. Um ótimo blog, Comer de Matula, conta a história toda, a história como ela foi.

Constituição da República, artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei”.

Adaptado de Revolução dos Bichos, de George Orwell: “Todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.

 

A imprensa e os números

Por falar em mais iguais, o Conselho Nacional de Justiça determinou a volta do pagamento do auxílio-alimentação aos magistrados. Tudo bem – embora este colunista, reconhecidamente bom de mesa, fique com água na boca ao acompanhar as compras para o lanche do tribunal. Apetitosíssimo! Mas, voltando ao tema, diz um grande jornal que o custo do auxílio-alimentação, de 2004 para cá, seria de R$ 82 milhões. A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), calcula o gasto, pelo mesmo jornal, em “um pouco menos”.

Um leitor desta coluna, assustado com a barafunda de números (e sabendo que ele é um dos que vão pagar), resolveu fazer uma conta simples. Calcula 4.300 juízes, por um prazo de cinco anos (afinal, nem todos ficaram sete anos sem receber, há eventuais prescrições etc.), sem correção – que, a propósito, talvez seja cobrada mais tarde. Enfim, 4.300 juízes recebendo R$ 710 mensais por 60 meses vão gerar uma conta de R$ 183 milhões. Há eventualidades demais para saber se a conta está mesmo correta, mas por menos de cem milhões não fica, não. Mas, como para os meios de comunicação milhão, bilhão e trilhão são praticamente a mesma coisa, ainda veremos muitos números circulando por aí.

 

Suponhamos

1. De um grande jornal, noticiando sentença judicial: “(…) Por esse suposto crime, foram condenados (…)”

Se foram condenados, como é que o crime é “suposto”?

2. De um grande portal noticioso: “Blindado (…) pega fogo (…) após traficantes terem jogado suposto coquetel Molotov (…)”

Um dia alguém contará a este colunista como uma garrafa cheia de gasolina, capaz de botar fogo num blindado, é um “suposto coquetel Molotov”.

 

Imprensa boazinha

Matéria de portal noticioso importante e altamente elogiosa, louvando a disposição do ídolo de não contribuir de jeito nenhum para a poluição:

** “Ronaldo Fenômeno deixa carro em casa e vai trabalhar de bike”

Beleza! Só que o Fenômeno anda sempre com vários seguranças, e faz muito bem. Esses seguranças andam em vários carros. Cadê o combate à poluição?

 

O livro do Haddad

De um grande jornal, cujo texto chegou a ser usado como referência:

** “Os fatos (…) não têm nada haver com julgamento do mensalão”.

Não, não pense que houve um engano. No mesmo texto o “nada haver” é repetido mais duas vezes. Só está faltando o “nós pega os peixe”.

 

De anúncios

De um portal de leilões:

** “(…) eu comprei um rotiador com você e o mesmo não quer mais conectar no meu notboock e eu já chamei o técnico e o mesmo disse que o problema está no roltiador como eso anúncio dá 12 meses de garantia queria saber como que podemos resolver esse impase (…)

** “Repelente eletrônico para repelir mosquitos e pernelongos. Se houver pernilongos especiais, poderá ser necessário colocar mais de um repelente no ambiente (…)

E os meios de comunicação exigem diplomas, pós-graduações e ainda abrem concursos! Por que não buscar os especialistas em texto lá, direto na fonte?

 

As delícias da internet

Acredite: há um blog ligado ao PSDB com o curioso nome de “cutucano” – assim, tudo junto. Há quem imagine, claro, gente mais fina do que este colunista, que se trate de uma corruptela de “cutucando”, e salientando no final da palavra o símbolo do PSDB, o tucano. Este colunista também acha que o final da palavra lembra o tucano. Já o começo é outra coisa. Entre no cutucano via http://psdbmilitancia.blogspot.com/

 

Como…

Segundo um grande jornal impresso, de circulação nacional, o jogo de tênis mais demorado até hoje foi entre os franceses John Isner e Nicolas Mahut.

É verdade: o jogo entre os dois foi o mais longo de que se tem notícia. Só que Isner não é francês: é americano.

 

…é…

No título de um importante portal noticioso:

** “Melhor mulher do mundo quer virar uma grande política”

No texto: “Jyoti Amge é muito pequena, mas tem uma ambição gigante: quer entrar para a política indiana. A menor mulher do mundo (…)”

 

…mesmo?

De um grande portal noticioso:

** “Quase 30% dos bancos americanos ganha com crise europeia”

É os banco! Os banco é que ganha com as crise!

 

Mundo, mundo

Ah, as coisas que a gente vê!

A Gol comprou o controle da Webjet há algum tempo. E fez um acordo de code share com a controlada. Traduzindo para o português, o passageiro da Gol compra passagem na Gol, paga para a Gol, mas pode voar pela Webjet; e vice-versa. E que é que acontece quando a vítima compra passagem da Gol, pagando o preço da Gol e é colocado, sem nenhuma informação muito clara, no voo da Webjet? Paga o triplo dos passageiros da Webjet, não recebe nem aquele lanche horroroso da Gol, fica em poltronas ainda mais apertadas que as dos aviões da Gol. E foi a imprensa que denunciou este fato?

Não, claro que não: foi a ANAC. Aí, com o papel oficial nas mãos, os meios de comunicação entraram no caso. E os repórteres que vão de um estado para outro e que certamente já foram vítimas do tal code share? Pelo jeito, nem perceberam o que estava acontecendo. E não é porque estavam lendo o jornal: no espaço que resta entre um banco e outro, não há como ler coisa alguma.

 

E eu com isso?

Está difícil, gente: abre-se um jornal, só há notícias ruins. Muitas são mal escritas, ou de uma ingenuidade tocante, ou denotam partidarismo (e isso não vale apenas para política: vale para futebol, para administração pública, para programas de TV). Se um time vende um jogador, é porque não consegue manter sua estrutura; se não vende, é incompetente, porque daqui a “x” meses ou anos terminará seu contrato e ele sairá de graça, dando prejuízo ao clube.

O que nos salva é o noticiário frufru – este é sempre uma delícia.

** “Sasha janta com o pai em restaurante carioca”

** “Fernando Alonso não esconde mais seu namoro com modelo russa”

** “Christiane Torloni leva flores para Iemanjá”

** “Nick Diaz inovou com chave de gogó”

** “Tania Khalil visita loja infantil em São Paulo e confere os últimos lançamentos de carrinhos para bebê e outros mimos”

** “Rihanna aparece vestida de roqueira em estreia de show que homenageia Michael Jackson”

** “Daniela Albuquerque: vontade de tapioca na gravidez”

** “Justin Bieber aparece com meias coloridas em Los Angeles”

** “ Giselle Bundchen pede orações para seu marido”

Nada de mau lhe acontece que demande ajuda divina: é para ajudá-lo na disputa da final do campeonato de futebol americano.

** “David Beckham: ‘Meus dias de andar pelado acabaram’”

Ele não quer que a filha Harper o veja. Só não esclareceu um detalhe: e vestido com as calcinhas da esposa Victoria, que foi quem deu entrevista contando isso, tudo bem?

 

O grande título

Safra muito interessante. Alguns títulos são bem curiosos:

** “Conheça pessoas que morreram no prédio

Este colunista preferiria tê-las conhecido antes.

** “Justiça decreta prisão de ex acusado de matar procuradora”

Não, ele não é ex-acusado: é o ex-marido. Talvez uma vírgula depois do ex deixasse o título mais fácil de entender. Mas por que simplificar a leitura se é possível complicá-la?

** “Mulheres são intoxicadas por anômina em Nova Aliança, SP”

São duas e trabalham numa indústria de processamento de frangos. Foram intoxicadas, na verdade, por amônia. E aí surge a pergunta: por que diabos usam amônia numa indústria de processamento de frango? A gente anda comendo essas coisas?

De um press-release da Secretaria da Segurança de São Paulo (que normalmente, aliás, envia bons textos):

** “PM salva recém nascido confundido com um aborto”

E um título imbatível:

** “São Paulo perde 100% de invencibilidade”

Só que não é verdade: ao empatar com o Guarani, o São Paulo, que vinha ganhando 100% dos pontos disputados, reduziu sua porcentagem. Mas não perdeu o jogo: continua invicto. Apesar da torcida em contrário deste colunista.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]