Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mulheres no poder

Há pouco mais de um ano, o que líamos na imprensa sempre tinha um pouco de ceticismo quanto a um possível governo Dilma Rousseff. Comentaristas calejados na arte de errar prognósticos sobre a política nacional não se faziam de rogados e logo avançavam em rotular a presidenta como mero marionete cujos cordéis ficavam nas mãos de seu antecessor, inquilino por dois mandatos do Palácio da Alvorada.

Seria uma transformação e tanto nos destinos do país. A começar pelo fato de haver uma mudança de gênero na Presidência do Brasil, seguido por outra não menos significativa do perfil humano: receberia o poder de um governante bastante extrovertido, com bagagem intelectual aquém do mínimo desejado pelas elites intelectuais e com uma história de vida em profundo descompasso com os demais personagens que ocuparam o gabinete presidencial desde 1889, quando da proclamação da República. Poderíamos enfocar uma série de contrastes entre o presidente Lula da Silva e a presidenta Dilma Rousseff. Mas, ficamos por aqui.

Decorridos um ano e dois meses desde que tomou posse, a presidenta Dilma vem oferecendo outro tipo de pauta para meios de comunicação. Avessa a entrevistas coletivas, desconectada do brilho fugaz de refletores e da enxurrada de microfones a lhe emoldurar o rosto sempre que adentra um recinto ou é a grande estrela de um evento, Dilma tem se mostrado diferente de tudo o que a imprensa esperou. Aposentou de vez as metáforas futebolísticas e as escorregadelas verbais. Fez as pazes com as preposições adverbiais e as concordâncias adnominais. E responde com um estridente muxoxo às diversas tentativas com que alguns jornais buscam ridicularizá-la ou simplesmente engendrar uma intriga com seu antecessor.

Expressão tosca

É a primeira mulher presidenta. Desta última palavra, tão virilmente feminilizada, não abre mão. E mesmo que os jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão teimem desde o primeiro dia de janeiro de 2011 em chamá-la como “presidente”, justificando o tratamento pessoal em inflamados editoriais, como a marcar posição de aberta contrariedade com a preferência explícita da ocupante do cargo, a verdade é que Dilma decidiu, em conluio com sua história, sua consciência e sua vontade, designar-se “presidenta”. Não precisou terçar armas com os colunistas de oposição para que chegasse – como se ordem unida fosse – a todos os veículos de comunicação oficiais que ela é a presidenta, e não a presidente. Toda santa noite em que, no rádio, ouvimos o programa principiando com “em Brasília, 19 horas”, é sinal que logo ouviremos – uma ou muitas vezes – a expressão “presidenta Dilma Rousseff”.

Parece um detalhe, mas não é. E mostra em toda a sua extensão como é difícil fazer nossa mente entender as mudanças. Como desde 1889 o presidente do país sempre foi chamado presidente, por que alterar agora o tratamento? Só por que uma mulher foi consagrada nas urnas para legitimamente ocupar o mais elevado cargo da nação? Sim, só por isso, deveria Dilma pensar com seus botões, sempre que passou a ouvir nos telejornais a insistência em não lhe conceder o reconhecimento à mudança de gênero, ocorrida de fato e repudiada nos meios de comunicação. Mas, ela não arredou da posição. E ponto.

Quebrar paradigmas é tão ou mais difícil que imaginar a existência de geleira glacial no inferno. Resistimos o quanto podemos a deixar nossa zona de conforto. E é confortável sermos governados por homens? Será mesmo? Algum beócio poderia refletir que é mais condizente com o trabalho da imprensa espancar um governante homem que uma mulher. São os que entendem que a verdadeira imprensa é aquela que desanca o governo a cada momento e a cada dia, e que os não perfilados a essa “filosofia” servem apenas para os chamados secos e molhados.

E não precisava ser assim. Sabemos que nos anos 1979-1990 o Reino Unido foi governado por Margareth Thatcher – rotulada na grande imprensa como “Dama de Ferro”, expressão masculina, rude, tosca, convidativa a nos lembrar de forma oblíqua “que ela podia até ser uma mulher, uma dama, mas não era feita de qualquer outro material que não o ferro”. Nas últimas quadras o mundo tem sido governado por crescente número de mulheres. A Alemanha é conduzida por Angela Merkel. A vizinha Argentina, por Cristina Kirchner. A Costa Rica por Laura Chinchilla. O Chile avançou bastante ao tempo da presidenta Michelle Bachelet.

Isso sem mencionar as “pioneiras” no cargo. Por exemplo, a China, que foi governada por Song Qingling (Sung Ch’ing-ling), casada com o fundador da República chinesa, o doutor Sun Yat-sen. Após a morte de seu marido, em 1925, ela foi designada como presidente honorária da China e, depois, como uma das vice-presidentes entre 1968 e 1974. Depois tivemos Indira Gandhi (Índia), Golda Meir (Israel), Benazir Butho (Paquistão). Interessante observar as Filipinas: o país teve ao menos duas mulheres na liderança do governo: Gloria Macapagal-Arroyo, eleita em 2001, apontada pela revista Forbes como a quarta mulher mais poderosa do mundo em 2005 e, também, entre 1986 e 1992, o país foi governado por Corazón Aquino.

Avatar político

Será que já não é tempo de este tema inspirar pesquisas acadêmicas? Seria no mínimo interessante saber como as mulheres marcam seus períodos de governo, e como pode ser mais bem retratada a questão “gênero e poder”. E, daí, outras questões não menos importantes: qual o tratamento da imprensa para com essas mulheres… poderosas? Seus mandatos foram marcados por tempos de paz ou de guerra? Por estabilidade econômica ou por galopantes índices de desemprego? A sua chegada ao poder teria influenciado uma mudança de gênero na ocupação de elevados cargos nos parlamentos, tribunais superiores ou no governo de seu estados e províncias?

No caso do Brasil, o assunto parece mais complexo. É que parte da imprensa ainda insiste em enxergar o peso da tutela de Lula sobre Dilma. E não importa se ela demite ministros aos primeiros sinais de clamor da opinião publicada em jornais e revistas semanais. Também pouco importa se a presidenta procura um perfil mais técnico para as principais funções da República e é cercada no Palácio do Planalto por duas fieis escudeiras, Gleisi Hofmann e Ideli Salvati, além de ter conduzido a jurista Rosa Weber para integrar o colegiado do Supremo Tribunal Federal.

E parece ridículo imaginar que tal modelo de governo, tomando decisões como as aqui mencionadas, não partiu dela, presidenta, e sim de seu avatar político, que é homem, governou como homem e disse tudo o que quis como homem. Resta saber se a grande imprensa algum dia desistirá de ver Dilma Rousseff como Dilma Kirchner ou… Dilma Merkel.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundoseu twitter]