Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

200 milhões em ação

Existem no Brasil duzentos milhões de técnicos de futebol, duzentos milhões de especialistas em Fórmula 1, duzentos milhões de juristas altamente preparados para analisar complexos casos de utilização de dinheiro público. Os dez ministros do Supremo Tribunal Federal – que, de uma ou outra forma, estão na lista dos principais operadores do Direito no país – são avaliados o tempo inteiro por pessoas (inclusive, e especialmente, jornalistas) cuja principal ferramenta é o partidarismo. Trata-se a nata dos juízes de Direito, escolhidos pelo presidente da República e referendados pelo Senado para ocupar cadeiras na principal Corte do país, como se juízes de futebol fossem, submetidos aos gritos da torcida nos estádios. “Ei, juiz, vá…” – e seguem-se os insultos de praxe.

Quem, fora os ministros do Supremo e os advogados dos réus, leu as 50 mil páginas dos processos? E, mais do que lê-las, estudou-as, colocou-as à luz das leis e da jurisprudência, buscou novas interpretações legais possíveis? Na opinião deste colunista, ninguém, ou quase ninguém, exceto os diretamente interessados no julgamento do mensalão. Como no futebol, poucos estão mesmo interessados na exata aplicação das 17 regras do jogo. A coisa é bem mais simples. Se marcou a nosso favor, o juiz está certo; se favoreceu o adversário, está errado.

Casos como o mensalão, no entanto, são de grande complexidade, e não cabem dentro da histeria partidária. Vamos a uma história ocorrida no exterior, há mais de 50 anos, e a duas interpretações possíveis (haverá certamente outras), apenas para exemplificar como é possível ver o mesmo fato por ângulos opostos.

No livro 20 cartas a uma amiga, Svetlana Stalina, filha do todo-poderoso Stalin, cujo poder pessoal moldou a União Soviética, conta uma história singular. Após a morte do pai, recebeu, entre seus objetos pessoais, dezenas de envelopes de pagamento, fechados, intactos. Stalin recebia seu salário do governo soviético em dinheiro, como era normal na época. Jogava os envelopes na gaveta e se esquecia deles. Agora, as duas possibilidades:

1 – Os envelopes fechados comprovavam que Stalin, fossem quais fossem seus defeitos, não dava importância a dinheiro nem buscava enriquecimento pessoal. Sua honestidade em questões econômicas era absoluta e inatacável.

2 – Os envelopes fechados comprovavam que Stalin parasitava o Estado. Tudo o que quisesse lhe era fornecido diretamente, sem jornalistas chatos querendo saber se aquilo seria ou não útil à população, sem discussões – da roupa às refeições, da boa vodca ao melhor caviar do mundo, do carro oficial a um jato civil ou militar de última geração, se o desejasse. O salário era desnecessário: que é que iria fazer com aquele parco dinheiro?

Dá para discutir muito tempo – e não é este colunista, que não entende nada de leis e utiliza seu partidarismo, de maneira confessa, em futebol (o que é bom para o Corinthians é certo, o que não é bom é errado), que irá debater o tema. Como também não é possível para qualquer pessoa leiga e desconhecedora dos autos discutir as decisões sobre o mensalão, processo que foi analisado durante sete anos por ministros do Supremo Tribunal Federal – e, por uma questão de destino, um grupo de ministros em que a grande maioria foi escolhida pelos governos mais atingidos pelo julgamento.

No caso, ou se conhece Direito e se estudou o processo, ou resta apenas aceitar sem choro nem vela a decisão de quem os conhece. Pode-se lamentar, pode-se ficar triste, pode-se ficar contente, pode-se comemorar (se bem que comemorar a perda de liberdade de alguém seja extremamente difícil). Mas, para discutir, é preciso mais do que disposição de falar bobagem e carteirinha de partido político.

 

O limite do ódio

O debate público sobre o julgamento do mensalão há muito extrapolou os limites do bom-senso. Houve insultos racistas em blogs e nas “mídias sociais” ao ministro Joaquim Barbosa, houve arremedos ridículos de análise psicológica; os ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, mais propensos à brandura no tratamento do caso, foram insultados nos mesmos meios de comunicação, atribuindo-se sua posição à escolha por governos petistas. Só se esqueceu uma peculiaridade: o ministro Joaquim Barbosa também foi nomeado por um governo petista, e dos dez ministros que hoje atuam sete foram escolhidos por Lula e Dilma.

 

Falando bobagem

A exacerbação dos sentimentos chegou a tal ponto que o normalmente cordato José Genoíno acusou a imprensa de torturá-lo, da mesma maneira que os torturadores da ditadura, só trocando o pau de arara pela caneta. Besteira, e ele sabe disso – ou, se não sabe, estará confirmando histórias que andaram circulando a seu respeito e em que as pessoas que o conhecem sempre se recusaram a acreditar. Tensão é uma coisa; insulto a profissionais que sempre o respeitaram é outra.

O advogado do PT em Goiás, Sebastião Juruna, foi mais longe: disse que “jornalista bom é jornalista morto”. A frase é infeliz em si; é infeliz num momento em que, no Brasil, cresce a matança de jornalistas (em 30 profissionais assassinados em todo o continente, sete são brasileiros); é humor de péssima qualidade, tão ruim que Juruna fez questão de repetir, várias vezes, que aquilo era uma piada. “Tem de ter espírito humorístico”, repisou. “Era sacanagem. Sou da Comissão de Direitos Humanos da OAB”.

Engraçado, né? A Líbia já fez parte da Comissão de Direitos Humanos da ONU.

 

Sem silêncio

O petista Juruna faz piada a respeito da morte de jornalistas; o PSDB, silenciosamente, vai tentando amordaçar a imprensa. Quem forçou a retirada do Blog do Pannunzio foi o governo tucano de São Paulo. O instrumento é o secretário da Segurança, Antônio Ferreira Pinto; mas Ferreira Pinto é apenas secretário. Quem comanda o estado é o governador Geraldo Alckmin. Da mesma forma, quando este colunista foi repetidamente processado pelo então secretário da Segurança, o governador era o tucano Mário Covas (outro secretário de Covas também tenta calar este colunista). A tática é tentar sufocar economicamente quem fizer críticas aos governantes tucanos – a prova é que, embora se digam atingidos em sua honra, não movem processos-crime, mas pedem indenizações. Quem pode admitir que sua honra tenha preço?

O caso atual é ainda mais grave: o coronel Telhada, ex-comandante da Rota, a letal tropa de choque da Polícia Militar paulista, voltou-se contra o repórter André Caramante, da Folha de S.Paulo, que teve de esconder-se, em risco de vida, ameaçado que foi por pessoas que se diziam partidárias do policial. Telhada acaba de se eleger vereador pelo PSDB, com boa votação. Motivo da ira de Sua Excelência: uma reportagem com o título “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”.

Como é, Sindicato dos Jornalistas? Dá para parar um pouco de pensar em campanha eleitoral e mobilizar gente em defesa do colega ameaçado? Como é, OAB? Sua eleição ainda demora, cadê a mobilização contra a violência que ameaça quem critica as otoridades? Como é, Sindicato dos Bancários? Não dá para se mobilizar em defesa da liberdade de expressão, em vez de violar a lei eleitoral e reclamar de multas impostas pelos tribunais, atribuindo-as a candidatos que não são os preferidos de sua direção? Como é, governador Geraldo Alckmin? Será impossível separar alguns minutos destinados às atividades de campanha e cobrar do secretário da Segurança as medidas de proteção ao jornalista e de contenção da violência que o caso requer? Vai ficar por isso mesmo, até que alguém morra? A providência será cobrir o caixão com uma bandeira paulista?

 

Tem coisa que é difícil

Gente, o que tem de menino bestinha querendo se exibir é impressionante. E a coisa está piorando: agora, os mimadinhos estão contratando assessorias de imprensa para mostrar à plebe rude que têm dinheiro. Trecho de release:

“O roteiro de jovens endinheirados de São Paulo para o feriado na maioria das vezes é o Litoral Norte de São Paulo, onde ostentam riquezas e aproveitam os dias de folga na companhia de amigos em seus barcos luxuosos”.

É duro ter de ler essas bobajadas. Naturalmente, o point é um desses bares caríssimos, com comida e bebida ruins, mas nome em inglês. Nem é preciso andar nos tais “barcos luxuosos” para ter enjoo.

 

Livro de primeira

Não, não é um lançamento: é uma nova edição de um livro delicioso, Ou isto ou aquilo, da grande Cecília Meirelles. Há cantigas de ninar, cantigas de roda, brincadeiras de trava-língua, uma delícia. Pode-se dizer que é um livro infantil, porque as crianças vão gostar; mas é um livro para todos. À medida que o tempo passa, as pessoas vão descobrindo novos aspectos, novas sonoridades, ganhando uma nova visão do mundo e da beleza do que está escrito. Um achado, que a Global Editora relança com excelentes ilustrações de Odilon Moraes.

 

Bons momentos

Empresário, pessoa capaz de fazer contas e raciocinar sobre números, leitor atento; e também bom escritor, capaz de encontrar temas agradáveis no cotidiano e na imaginação. Alexandru Solomon lança A luta continua no dia 17, a partir das 18h30, com coquetel na Livraria da Vila do Shopping Higienópolis, SP.

 

Como…

De um grande jornal, no título:

** “Em debate entre vices, Joe Biden recupera terreno perdido por Obama”

No texto:

** “Segundo a rede CNN, Ryan saiu-se melhor para 48% dos telespectadores, contra 44% que favoreceram Biden, um empate técnico”

 

…é…

De um grande jornal, de circulação nacional:

** “Ela afirmou que estava sob o julgo de um traficante (…)”

Temeria a pobre moça o julgamento do criminoso? Ou, além de estar sob o jugo do traficante, teria de suportar também o peso da letra “l” extra?

 

…mesmo?

A internet nunca nos falta. De um grande portal noticioso:

** “Filha de Dunga diz que críticas às camisas do pai a fez questionar a carreira”

E, cá entre nós, “as camisas era” o melhor achado do técnico.

 

O Tico e o Teco

A frase está num jornal de grande circulação, que em outras épocas foi campeão absoluto de noticiário internacional:

** “Ainda segundo o general, é preciso lembrar que o mundo vivia em plena guerra fria, dividido entre ‘dois grandes impérios’ – o comunismo e o socialismo (…)”

Dúvida a esclarecer: seriam os Estados Unidos comunistas ou socialistas?

 

Flor do Lácio

Como um grande portal informativo noticia a crítica de um cartola do automobilismo a um piloto de outra equipe: “(…) ‘sete acidentes este ano é mais do que suficiente, Mark foi vítima de uma ação hoje e isso o custou, pelo menos, um pódio’, disparou o dirigente”.

O entrevistado certamente usou outro idioma que não o português. O entrevistador também.

 

E eu com isso?

Duzentos milhões de técnicos de futebol? Como diz a abertura desta coluna, sim – e 200 milhões de juristas, discutindo um processo de 50 mil páginas que ninguém leu e cascando o cacete em profissionais do ramo, dependendo de quem condenem ou absolvam. Na verdade, são 200 milhões de Rainhas de Copas, aquela de Alice no País das Maravilhas: “Cortem-lhe a cabeça!” A sentença é sempre a mesma, só variam os alvos: ora são os réus, ora são os juízes.

Já na vida boa do frufru não existe nada disso. Os temas são outros:

** “Cleo vai embora de festa por causa de decote”

** “Katie Holmes é flagrada dentro de metrô em Nova York”

** “Vanessa Giacomo volta a ter cabelos longos”

** “Adele espera seu bebê longe de holofotes”

** “Panicat Renata Molinaro desembarca em aeroporto do Rio”

** “Kate Hudson chega ao set com toalha na cabeça”

** “Estrelas vão ao show de Gilberto Gil”

** “Brad Pitt surpreende com look rastafári”

** “Ator mirim MC Nicolas realiza o sonho de conhecer o Pão de Açúcar”

** “Pai apoia namoro de Rihanna e Chris”

** “Carla Dias e Pérola Faria assistem aos últimos capítulos de ‘Rebelde’”

** “Matthew aparece bem magro nos EUA”

Algum problema? Estará doente? Não: apenas fez regime (e todos sabiam disso) para desempenhar seu papel num filme.

 

O grande título

Há dois títulos inacreditáveis. E um que, explicadinho, até que dá para entender.

** “Com a decisão da FIFA de proibir jogos em Bagdá a nação é obrigada a se deslocar”

Para onde se deslocará a nação iraquiana?

E como é que se define um lutador de vale-tudo que bate num jornalista encarregado de cobrir os treinos? Assim:

** “Overeem mostra lado ‘sem noção’ e dá surra em repórter”

A reportagem não deixa isso muito claro, mas este colunista pensa que, após o acontecimento, quem ficou meio sem noção foi o repórter agredido pelo lutador.

E o grande título, aquele que dá para entender se for bem explicadinho:

** “Arma antilotação do Metrô estreia daqui a 90 dias”

Uma metralhadora, talvez, reduzindo o público que procura os trens? Ou gás venenoso? Talvez algumas saraivadas de tiros para o ar, fazendo com que parte dos futuros passageiros opte por fugir e buscar outra condução? Não, nada disso: é um equipamento que permite reduzir o intervalo de tempo entre os trens.

Agora só falta mandar um pendrive para os leitores com a explicação.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]