Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Entre indignação e farsa

O luto e a indignação provocados pelo incêndio em Santa Maria (RS) estão imersos em ambiguidade. É desagradável e lamentável ter de constatá-lo, mas o fato de que vivemos numa sociedade do espetáculo é algo que se comprova todo dia.

Há três questões: primeira, a exploração midiática, generalizada, com graus diferentes de descaramento (e qualidade jornalística). É comparar, por exemplo, o Jornal da Band, um circo de horrores explícito, com o Jornal Nacional, que pratica um sensacionalismo mais contido, nem sempre mais elegante, mas geralmente com muito melhor qualidade de informação.

A confusão de ocupação de tempo com fornecimento de informação foi explicada neste Observatório da Imprensa por Carlos Tourinho (“A diferença entre o remédio e o veneno”). Lembrar que as emissoras de TV, ao repetirem imagens de ônibus incendiados pelo PCC dando a ideia de que se tratava de novos atentados, contribuíram para o pânico que paralisou São Paulo no dia 15 de maio de 2006.

Diante das câmeras

Segunda questão, exploração da oportunidade midiática por autoridades. De norte a sul, de leste a oeste, de A a Z. Mandar fazer fiscalizações em massa é, mais do que dar satisfação à indignação do povo, uma jogada. Quem desconhece no Brasil a maneira como autoridades civis, militares e judiciárias complementam os salários?

Para começar, metade da população vive na informalidade, está careca de conhecer os caminhos do “tem como a gente resolver isso?” Uma outra parcela, legalmente estabelecida, lá no topo, faz a mesma coisa. Só que as somas são maiores.

O quase já esquecido Hussain Aref, da prefeitura de José Serra e Gilberto Kassab, está aí para comprová-lo, assim como Rosemary Noronha, dos governos Lula e Dilma, o lobista da Mendes Júnior que supostamente pagava mesada para Renan Calheiros não deixar Mônica Veloso ficar triste etc.

A própria iniciativa da fiscalização em massa é o reconhecimento de que não se cumprem a rotinas necessárias: isso deve ser cobrado de modo insistente e contundente.

Criar novos problemas

Mandar fazer qualquer coisa em massa, de uma hora para outra, é plantar problemas incognoscíveis. As leis que estabelecem condições impraticáveis para os estabelecimentos andarem na linha não são inocentes: criam dificuldades para vender facilidades. Imagine-se como os agora arrochados vão reagir a fiscalizações em estilo de carga de cavalaria. Com civismo ou com novas mutretas? E quem sabe o que resultará das reações a essa espécie de devassa?

O que adianta, por exemplo, a Polícia Militar bater no peito e dizer que expulsou centenas de homens por desvio de conduta? O dinheiro gasto com o preparo desses homens foi restituído aos cofres públicos? O que os expulsos foram fazer na vida? Entraram para instituições de caridade?

Despolitização

A terceira questão é a reação popular. Parte dela é indisfarçavelmente midiática. Não adianta querer tapar o sol com uma peneira. Está escrito, por exemplo, nos sorrisos de satisfação com que voluntários descrevem suas iniciativas. Claro, a mídia faz parte da realidade, tantas vezes mais do que os próprios fatos, mas não se pode colocar todas as reações no mesmo patamar.

Outra parte é cidadã, mas numa chave despolitizada, embora não desprovida de significado social e político (tanto que as autoridades detentoras de mandatos eletivos correm a dar satisfação). O Brasil hoje não tem partidos políticos com as características que tiveram no passado e ainda não criou novos partidos ou novas formas de realizar o grande debate público, embora haja muita coisa brotando. Os sindicatos estão preocupados com coisas, não com causas.

O que faz o país melhorar

Há, felizmente, uma parcela das manifestações que ganha densidade e ajudará o país a melhorar. É ao discurso dessa parcela que a mídia jornalística responsável precisa servir.

A questão central em qualquer tragédia, para os que sobrevivem ativamente – os que podem fazer alguma coisa além de chorar os mortos, mutilados, feridos, traumatizados de toda sorte –, é tirar lições que ajudem a reduzir a possibilidade de repetição dos mesmos erros. É pretender que as novas tragédias não sejam repetições devidas a insciência, inércia, irresponsabilidade ou cumplicidade.

Com realismo – sem ilusão quanto à possibilidade de “evitar a repetição” de catástrofes, porque a vida não segue nossos planos –, com serenidade – a exaltação não é amiga do conhecimento e da reflexão – e com a firmeza que a solidariedade, no sentido etimológico da palavra, confere às ações humanas.