Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Irã não tem urânio suficiente próprio para a bomba

Jornais do mundo todo repetiram: ‘Irã já tem urânio suficiente para fazer a
bomba, diz AIEA’ (esta é, por exemplo, a manchete do Estado de S. Paulo
do dia 20/02/09 – vide link no fim deste texto). A AIEA (Agência Internacional
de Energia Atômica, um órgão da ONU) não disse bem isso. A não ser se
considerarmos a afirmação sob um rigor cínico. Aliás, a fonte nem mesmo é a
própria agência: é um funcionário da ONU próximo da AIEA que pediu para não ser
identificado.


O que a agência disse, como se lê em vários jornais em diversas formas (vide
citação do jornal The Guardian mais abaixo), é que o Irã tem mais urânio
com baixo enriquecimento (bom para usinas nucleares, mas que não serve para
fazer bombas) do que se esperava. E que essa quantidade seria suficiente para
fazer urânio altamente enriquecido suficiente para bombas, caso fosse processado
para ficar altamente enriquecido. Mas os iranianos ainda não deram esse passo. E
é preciso bastante tempo até lá. Além disso, qualquer país com bastante urânio
poderia ser acusado de tê-lo o suficiente para fazer muitas bombas, caso se
considerasse todo o material não adequadamente processado (imagine-se quanto
urânio existe só no subsolo do Brasil).


O que é enriquecer urânio


A AIEA é mais conhecida pelos trabalhos de fiscalização de programas
nucleares do mundo todo (inclusive do Brasil), que estiveram no centro da crise
que precedeu a invasão do Iraque, em 2003. Agora, os EUA pressionam o Irã para
que pare seu programa nuclear, sob a alegação de que tem fins militares e visa a
construir uma bomba atômica. O governo iraniano, claro, nega.


E por que isso é diferente de dizer que ‘o Irã já tem urânio suficiente’?
Para se poder avaliar melhor o tamanho da distância entre o que a AIEA disse e o
que os jornais proclamaram, lembremos a diferença entre urânio de baixo e de
alto enriquecimento. Enriquecer urânio é aumentar a proporção entre urânio-235 e
urânio-238, dois tipos diferentes desse material. O urânio para bomba atômica
deve conter de 80 a 90% de U-235. Para usinas nucleares, o enriquecimento deve
ser em torno de 5%.


Acontece que, na natureza, a proporção é de apenas 0,71%. Então, para se usar
urânio em usinas ou em bombas, deve-se mudar artificialmente essa proporção – ou
seja, ‘enriquecê-lo’. Coloca-se a mistura encontrada na natureza em
ultra-centrífugas, que são máquinas que giram a amostra em alta velocidade. A
força centrífuga acumula o urânio mais pesado, o 238, num só lado dos
recipientes. Basta então pegar o material do outro lado, no qual o U-235 estará
mais concentrado. Mas note-se a diferença entre urânio de baixo enriquecimento
(5%) e de alto (80 a 90%).


Espalhando contradições


Não se trata apenas de comparar números. Vários jornais praticamente se
auto-contradisseram. Um trecho de uma matéria do jornal britânico The
Guardian
de 20/02 é particularmente ilustrativo sobre o que aconteceu na
imprensa. Ela quase contradiz seu próprio título, ‘Irã enriqueceu urânio
suficiente para fazer a bomba, diz AIEA’. O trecho é o seguinte (tradução livre
minha):




‘(…) A agência agora estima que o Irã produziu 839 km de UBE [urânio de
baixo enriquecimento] até novembro e que o Irã relatou a produção de mais 171 kg
nos dois meses seguintes – um total de 1.010 kg. O UBE iraniano tem uma
concentração de menos de 4% do isótopo físsil urânio-235 [isótopos são
diferentes tipos de urânio que diferem pelo número de nêutrons no núcleo de seus
átomos]. Para fazer UAE [urânio de alto enriquecimento] no nível próprio para
armas, com concentração de 80-90%, ele tem que sofrer mais enriquecimento, por
meio da passagem por `cascatas´ massivas de centrífugas.


`Eles têm UBE suficiente para produzir uma `quantidade significativa´ de UAE
[suficiente para uma bomba]? Sim; se você contar os átomos de U-235, eles têm
uma quantidade significativa de UAE´, disse um funcionário próximo à AIEA. Mas
apenas teoricamente; eles teriam que usar sua capacidade total para conseguir
isso. Eles ainda não chegaram lá. Se estivessem construindo outra instalação
clandestina, então seria diferente.’


Ou seja: o que o Irã tem é mais urânio de baixo enriquecimento do que se
pensava. E o que a AIEA disse foi que essa quantidade de urânio com baixo
enriquecimento seria suficiente para produzir urânio altamente enriquecido
suficiente para fazer uma bomba, caso o processo de enriquecimento continuasse
dos menos de 4% até mais de 80%. Mas isso é um passo que os iranianos ainda não
deram e que demora muito tempo. O próprio diretor da AIEA, Mohamed El Baradei,
disse numa entrevista de 25 de setembro de 2008 para o jornal alemão
Süddeutsche Zeitung, que os iranianos ‘ainda não têm ingredientes para
fazer uma bomba da noite para o dia’.


O próprio Estadão também quase se contradisse quando mencionou, na
matéria citada, que ‘o mesmo funcionário [que teria dito que o Irã tem urânio
enriquecido suficiente para a bomba] reconheceu que o material precisaria passar
por um enriquecimento mais sofisticado antes de poder ser utilizado como
combustível para uma bomba e os inspetores não encontraram evidências de que o
Irã estivesse envolvido em tais preparativos’. Ora, então, o material ainda não
pode ser usado para a bomba…!


Links:


Matéria do jornal The Guardian (em inglês):


http://www.guardian.co.uk/world/2009/feb/19/iran-iaea-united-nations-nuclear-weapon


Matéria do Estado de S. Paulo (cópia no site do Ministério das
Relações Exteriores):


http://www.mre.gov.br/portugues/noticiario/nacional/selecao_detalhe3.asp?ID_RESENHA=549668


Entrevista de Mohamed El Baradei para o Süddeutsche Zeitung (cópia no
site da AIEA; em inglês):


http://www.iaea.org/NewsCenter/Transcripts/2008/sz250908.html 


Esta matéria do blog da revista estadunidense Physics Today (que
comenta outro blog, do químico Cheryl Rofer) foi que me chamou a atenção para
esse episódio:


http://blogs.physicstoday.org/newspicks/2009/02/iaea-report-leads-to-press-con.html

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Físico com especialização em jornalismo científico pelo Labjor, Campinas, SP