Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jotabê Medeiros

‘O filme A Paixão de Cristo fez aumentar as ofensivas antipirataria no Brasil. Além das blitze regulares contra produtos falsificados, tramita na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados um projeto de Lei, proposto pelo deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ), que aumenta a pena para o crime de pirataria de obra intelectual, fonograma, videofonograma, programa de computador e aplicativos.

Pela atual legislação, a pena para o crime de violação de direito autoral por reprodução (com o objetivo de lucro) é de dois a quatro anos, além de multa. O projeto eleva a pena de detenção de dois anos e dois meses para quatro anos, além de multa no valor de R$ 10 mil a R$ 50 mil; e acrescenta a modalidade de videofonograma na lista das violações.

‘Com o trabalho da CPI, surgiu a necessidade de se adequar a legislação em vigor, tanto no aspecto material quanto no processual’, diz o deputado Picciani, que foi relator da CPI da Pirataria na Câmara durante três meses.

Ele acha que outras medidas também são necessárias, devido à introdução de novas tecnologias – como a troca de música pela internet. ‘É preciso encontrar formas de enterrar essa prática da pirataria, mas também reduzir os preços dos produtos, de forma a ficarem mais acessíveis à população’, considerou.

Os DVDs passaram a ser um dos novos focos da repressão à pirataria. Essa semana, segundo informou a Assessoria de Imprensa da Associação de Defesa da Propriedade (Adepi), uma batida no centro de São Paulo resultou na apreensão de 2 mil cópias de DVDs. São cópias – a maioria de má qualidade, sem os recursos de um DVD, segundo o órgão – de blockbusters da atualidade, como Os Piratas do Caribe, Hulk e A Paixão de Cristo, que acaba de estrear.

Ontem, a mesma Adepi informou que uma comitiva de parlamentares brasileiros, ligados à CPI da Pirataria, realizará viagem aos EUA, na segunda-feira, para trocar informações com órgãos do Congresso e do Governo americanos. O convite foi feito pelo Congressional International Anti-Piracy Caucus (comitê do Congresso americano que cuida da proteção à propriedade intelectual).

Segundo dados da Motion Picture Association (MPA), a indústria do audiovisual tem sofrido perdas de R$ 370 milhões ao ano e a pirataria atinge 35% do mercado. Isso, segundo a entidade, causaria uma perda de 17 mil postos de trabalho e sonegação fiscal de R$ 80 milhões.

Integram a comissão que vai aos Estados Unidos os deputados Luiz Antônio de Medeiros Neto (PL/SP), Julio Lopes (PP/RJ), Josias Quintal (PSB/RJ), Julio Semeghini (PSDB/SP) e Wagner Rubinelli(PT/SP). Eles irão acompanhados do vice-presidente da Motion Picture Association para a América Latina, Steve Solot, e pelo Diretor Executivo da Adepi, Carlos Alberto de Camargo.’



Osias Wurman

‘O veneno do mel de Gibson’, copyright O Globo, 19/03/04

‘É uma iniciativa especialmente inconveniente lançar-se no circuito mundial, com especial competência no marketing e na mídia, uma película contraditória que poderá reabrir trincas na estrutura do relacionamento cristão-judaico, neutralizando as conquistas advindas do empenho de devolver a verdade ao rebanho cristão, empreendido pelos Papas João XXIII e João Paulo II.

Em recente viagem a Israel, pude observar o respeito do governo pela preservação dos locais sagrados do cristianismo, bem como do islamismo, e notar com alegria que os cristãos evangélicos são atualmente o grupo religioso não judaico que mais suporta o Estado de Israel, não somente em retórica, mas com expressiva presença na Terra Santa.

O filme ‘A Paixão de Cristo’ já desperta uma indesejável polêmica entre os críticos religiosos que desejam promover um boicote e outros que compraram ingressos antecipadamente para serem distribuídos a seus fiéis. No primeiro fim de semana foi rompida a marca inusitada para filmes religiosos, alcançando cerca de US$ 120 milhões, com exibição em mais de três mil cinemas apenas nos Estados Unidos, onde 75% da população são cristãos. É a exploração pelo sensacionalismo.

O maior perigo da iniciativa do cineasta Mel Gibson reside no fato de sua versão afastar-se das mais importantes fontes de informação, inclusive do Evangelho de São Marcos, o mais antigo, quando implica todos os judeus da época na morte de Cristo, enquanto os historiadores deixam a nitidez de que apenas uma elite minoritária que freqüentava o Templo, comandada pelo sacerdote-mor Caiafas, teve participação direta na influência sobre o representante de Roma – Pôncio Pilatos. O filme de Gibson transforma todos os judeus em maiores culpados pelo sofrimento e morte de Jesus, superando até os dominadores de Roma. Esta inverdade poderá lançar na mente dos mais desavisados a pecha do deicídio a débito do povo judeu, que já sofreu, inocentemente por dois mil anos, as maiores perseguições e massacres de toda a História.

A maior aberração desta fatídica versão é a transformação de Pilatos num governador débil e influenciável, que teria cedido às pressões dos clérigos para crucificar Jesus. Transformar em doce figura humana um carniceiro, representante de um império pagão e dominador, que puniu mais de cem mil judeus com a pena da crucificação, é erro histórico que viola a verdade e a razão. A prova de que os romanos eram ferozes inimigos do monoteísmo judaico é cabal, pois 40 anos após a morte de Jesus, no ano 70 da era cristã, Tito ordenou a destruição do Grande Templo de Jerusalém, num gesto cujo objetivo era a submissão judaica ao culto pagão. Aí começava a diáspora de dois mil anos do povo hebreu, finalizada com a criação do Estado de Israel, em l948.

O público espectador deverá relembrar que Jesus nasceu, viveu e morreu como judeu, tendo sido circuncidado conforme os povos semitas. A sinagoga que freqüentava tem suas ruínas preservadas em Capernaum, situada no Norte do Estado de Israel, às margens do Lago Tiberíades. Adorava a cidade de Jerusalém, capital do reino de David, sendo seus primeiros adeptos originalmente judeus. Jesus adicionou ao tripé – verdade, justiça e paz – consagrado pelos estudiosos da Torah, o Pentateuco de Moisés, uma palavra básica de sua pregação: o amor. No alto da cruz onde foi crucificado, os romanos colocaram uma placa com as letras INRI , que em latim abreviava Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum (Jesus de Nazaré o Rei dos Judeus). A pena de morte prescrita no Antigo Testamento era o apedrejamento, enquanto os romanos usavam a crucificação.

A polêmica figura de Mel Gibson deve ser analisada para entendermos a motivação desta obra estereotipada. Embora tenha repetidamente negado sua condição de anti-semita, Gibson recusou-se a atender às ponderações da liderança judaico-americana que, após assistir à exibição privada do filme, solicitou reparos e correções indispensáveis à veracidade da obra e à preservação dos ditos do Concílio do Vaticano de l965. Também se recusou a criticar seu pai, Hutton, que numa recente entrevista afirmou que o Holocausto nunca existiu e que os campos de concentração eram apenas campos de trabalho. Hutton é um repugnante veterano revisionista que nega a morte dos seis milhões de judeus.

Por todos os motivos que se apresentam, em especial pela prevalência da verdade histórica e pela manutenção do fraterno diálogo cristão-judaico, as lideranças religiosas devem publicamente repudiar esta obra de ficção que tenta reacender a chama do preconceito da indigna era da Inquisição. Não permitamos que o sofrimento de Jesus seja desrespeitado pela deturpação desta obra de Gibson que adoça a personalidade do sanguinário romano Pôncio Pilatos, enquanto destila veneno contra todos os judeus. OSIAS WURMAN é presidente da Federação Israelita do Rio de Janeiro.’



Luiz Paulo Horta

‘Uma ‘via-sacra’ moderna’, copyright O Globo, 19/03/04

‘Antigamente, nos cinemas, a Sexta-Feira Santa sempre tinha uma Paixão de Cristo. Eram filmes antigos, quase toscos. Depois apareceram versões modernas, como a de Pasolini, belíssima. Mas nenhuma delas quis encenar a Paixão ‘como ela foi’: havia sempre uma dose de estilização, que fazia contraponto com a sobriedade dos quatro Evangelhos.

Mel Gibson vai ao outro extremo. Quer mostrar cada prego entrando na carne, cada vergastada do chicote. O resultado é de uma violência inaudita. Não é filme para pessoas muito sensíveis, nem para crianças, claro – e mesmo adolescentes deveriam ter uma certa preparação para ele. É, como disseram alguns, ‘a Paixão de Mel Gibson’? Sim, no sentido em que cada artista escolhe as suas ênfases. Qual dos dois Cristos é o verdadeiro – o Cristo luminoso de Fra Angelico ou o Cristo esbofeteado de Yeronimus Bosch? Os dois.

De todos os filmes sobre a Paixão, este é o que mais se aproxima do que deve ter sido o fato original. No tempo do Cristo, não se falava em direitos humanos; condenação à morte era para valer; e à pena de morte, a crucifixão acrescentava um opróbrio total – era o maior dos castigos. Soldados romanos estavam acostumados a fazer isso – e coisas muito piores, como atestam os primeiros martirológios do cristianismo. Mas, ao seguir a pista do Cristo doloroso, Gibson não usou só os seus dotes de imaginação: apoiou-se, entre outras coisas, em textos como ‘Vida, Paixão e Glorificação do Cordeiro de Deus’, da visionária alemã Ana Catarina Emmerich, que teve a visão mais minuciosa da Paixão (a Igreja, caracteristicamente, nunca bateu o martelo sobre a confiabilidade dessas visões).

Lá estão, tintim por tintim, certas cenas do filme, como as imagens iniciais no Horto das Oliveiras: ‘Quando Jesus se afastou dos discípulos, vi em redor dele um largo círculo de imagens horríveis, o qual se apertava mais e mais. Cresceu-lhe a tristeza e a tribulação, e retirou-se tremendo para dentro da gruta, semelhante ao homem que, fugindo de uma tempestade, procura abrigo para rezar; vi, porém, que as imagens assustadoras o perseguiram lá dentro da gruta. A estreita caverna parecia encerrar o horrível espetáculo de todos os pecados cometidos desde a queda do homem até o fim dos séculos.’

Grandes teólogos como Newman bordaram em torno desta cena, que é de uma angústia quase infinita. O que deve sentir um homem para que chegue a suar sangue (como está contado nos Evangelhos)?

A partir daí, segue-se um massacre contínuo (segundo as visões da Emmerich, o Cristo vem apanhando já do alto do Monte das Oliveiras). Como baterão estas cenas no espectador de hoje? Acho impossível prever. A dose de avaliação subjetiva é virtualmente ilimitada. Alguém já disse que se trata de uma ‘via-sacra’ – mas uma ‘via-sacra’ ao vivo e a cores, como nunca ninguém imaginara.

É um filme anti-semita? Pode ser uma leitura – embora, numa leitura superficial, o próprio Evangelho seja anti-semita. Mas também pode ser a oportunidade para um reexame desse nervo essencial da nossa história cultural que é a relação judaísmo/cristianismo.

A tragédia do anti-semitismo é que perdeu-se por completo a natureza dessa relação – que é uma relação estritamente familiar. O Cristo era um judeu praticante, e não veio propor uma nova religião – e sim, uma nova luz, uma nova Revelação sobre a história que começara a ser contada no alto do Monte Sinai. Por esta ou por outras razões, entrou em choque com a elite do Templo (de modo parecido, ele poderia ter lançado anátemas contra alguns Papas da Renascença, ‘que fechais aos homens o reino dos céus: vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar’). Nada seria mais útil, para a relação entre judeus e cristãos, do que perceber até que ponto estão em diálogo permanente o que os cristãos chamam de Antigo e Novo Testamento.

O filme de Mel Gibson é violento. Mas aquele momento do judaísmo estava carregado de violência. Ao lado de correntes mais conhecidas como a dos fariseus e a dos saduceus, a dos zelotes – nacionalistas fanáticos – pregava a revolta contra os romanos. A revolta estava no ar. Pouco depois da morte do Cristo, ela resultaria na destruição de Jerusalém, e na revolta ainda maior de Bar Kocheba. Tal era o clima que, no ano 132 da nossa era, o rabino Akiba, grande mestre do Talmude, endossou as posições de Bar Kocheba, e chegou a dizer que ele era o Messias. O que aconteceu depois supera em muito a violência desta ‘Paixão de Cristo’. Para esses sentimentos violentos, o Cristo não era a saída; e foi logo descartado. Mas nesse Israel que se preparava para o combate, a pregação do Cristo encontrou eco – e seguidores. Judeus eram todos os que estavam à volta do Cristo – e que aparecem no filme. Como isso pode ser anti-semita?

E, como todo cristão fica sabendo, o Cristo morreu porque quis morrer, como forma suprema de sacrifício – que, no velho judaísmo, era um ato de vida, e não de morte. Se ele tivesse nascido entre escoceses, escoceses o matariam. Este é o grande mistério sobre o qual temos de refletir. Não me parece que o filme de Gibson seja um obstáculo real para isso.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.’



Márcio Seligmann-Silva

‘Gibson promove ‘fundamentalismo capitalista’’, copyright Folha de S. Paulo, 19/03/04

‘‘No princípio era o verbo’, lemos no Evangelho de S. João. Já no Evangelho de Mel Gibson, do princípio ao fim o que impera é a violência e a escarnação. Não se trata, no entanto, da idéia fáustica de Goethe, que reverteu a frase bíblica em ‘No Início foi o Ato’, o que levou Freud a pensar as origens traumáticas do Eu e da humanidade. Em Gibson não existe reflexão, apenas o mais tosco esteticismo da violência (aliás, onipresente no cinema atual).

Ele e seus seguidores denominam essa fixação na brutalidade de ‘realismo’ e ‘fidelidade’ à história. Nada poderia ser menos verdadeiro. Apesar da aura que se tentou criar em torno de ‘A Paixão de Cristo’ (sua origem em uma ‘crise pessoal’ de Gibson, seu ‘low budget’ de ‘apenas’ US$ 25 milhões), o filme mantém as características das megaproduções de Hollywood -e muito da estrutura do pensamento maniqueísta que costuma marcá-las.

Na verdade assistimos ao desfile de chavões como aquele típico do cinema-ilusão que, seguindo as doutrinas fisiognômicas do século 19, estabelece que os bons devem ter cara de anjinhos (no filme de Gibson eles devem ter dentes perfeitos) e os maus (no caso, os judeus e os torturadores romanos) são feios (têm cara de malvados avaros, ou simplesmente têm dentes podres). Do ponto de vista hollywoodiano, James Caviezel não poderia ser mais ‘realista’ e ‘fiel’. É um atleta, ex-jogador de basquete, que representa um superJesus ariano com olhos de mel. Mônica Bellucci, a Maria Madalena, aparentemente não se desvencilhou do papel de Persephone de ‘Matrix Reloaded’, o que torna tudo quase ‘surrealista’.

Assistimos à história de Jesus, de sua prisão no Getsêmani até sua crucificação e ressurreição. O roteiro pegou de cada evangelho o que quis. Introduziu elementos narrativos e simbólicos como um Satanás andrógeno (que parece ter escapado do set de filmagens de algum filme de terror pueril). A suposta fidelidade do filme consistiria na apresentação em ‘primeiro plano’ da Paixão (dor) de Cristo. Nesse ponto pode-se falar apenas de uma superexposição da tortura do corpo que beira o mau gosto e faz lembrar a expressão que Godard cunhou nos anos 60 para criticar a exploração das imagens de terror do Holocausto: estilo ‘pornoconcentracionário’. Gibson foi original neste ponto: criou o estilo ‘pornocristão’.

O filme é anti-semita? Difícil ser mais anti-semita do que os evangelhos. Mas não resta dúvida que Gibson faz uma seleção das passagens dos evangelistas e foca no ódio dos judeus com relação a Jesus. Seu pensamento maniqueísta (inspirado em religiosas anti-semitas do século 18 que ele admira) tende para um fundamentalismo cristão que é canhestro, mas também, hoje, pode vir a ser perigoso.

Sua intenção evangelizante e ‘cruzada’, de conversão pelas imagens que deveriam chocar (chocam apenas pela má qualidade do resultado), traz água para o moinho das lutas fundamentalistas. Fazer hoje um filme com esse enfoque não pode ser considerado algo inocente. O pai de Gibson não precisava ajudar a recordar essa mensagem anti-semita, ao insistir publicamente em relativizar e banalizar o Holocausto. O filme fala por si. Aliás, ele não fala (sua linguagem é muda, pois incompreensível e artificial: aramaico e latim), mas, sim, pretende de modo anti-racional pregar pelas imagens, como na Idade Média e na contra-Reforma. Em vez da mensagem de ‘tolerância, amor e perdão’, que o diretor diz ter visado, vemos uma mensagem de violência e ódio.

Mas é claro que seu fundamentalismo cristão (e a polêmica daí decorrente) também converge para o ‘fundamentalismo capitalista’. As salas de cinema estão cheias. Gibson já esteve muito melhor ao atuar como ator no papel de Rocky, o galo voador de ‘A Fuga das Galinhas’. Pelo visto ele nunca mais conseguirá atingir as mesmas alturas. Márcio Seligmann-Silva é doutor em teoria literária pela Universidade de Berlim, professor na Unicamp e autor de ‘Adorno’ (Publifolha), entre outros.’