Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Na contramão das paixões

Está todo mundo feliz porque a Justiça Eleitoral quer vetar candidatos acusados de participação em crimes, mesmo que não estejam condenados – recusando aqueles cujo perfil moral julga discutível. É fácil entender os motivos da euforia: se os suspeitos não forem candidatos, não poderão ser eleitos. E sabemos, todos nós, que muita gente com culpa no cartório será reeleita com facilidade.


No entanto, por mais impopular que seja dizer certas coisas em certos momentos, atitudes como essa, apesar do verniz moral, são claramente antidemocráticas. O Estado de Direito, a democracia, se apóia na suposição da inocência: todo cidadão é inocente até prova em contrário. Vetar candidatos porque ‘todo mundo acha’ que são culpados é puxar o tapete da democracia.


Este colunista era garoto quando ‘todo mundo’ sabia que o jornalista Samuel Wainer tinha ficado riquíssimo tomando dinheiro do governo federal para montar a Última Hora. E cresceu sabendo, como ‘todo mundo’, que Juscelino Kubitschek tinha a sétima fortuna do mundo. JK não era pobre, mas seus bens não chegavam sequer a configurar ‘uma fortuna’. O governo federal financiou Última Hora, mas Samuel Wainer não desviou nada para seu uso pessoal (quando morreu, era empregado e vivia do salário). Alceni Guerra foi acusado e levou anos provando que não era ladrão – ao contrário do que ‘todo mundo’ achava. Todos estes foram punidos, de uma forma ou de outra, por delitos que não cometeram, mas que ‘todo mundo’ achava que tinham cometido.


No Brasil há muita corrupção, sem dúvida; e, com certeza, a opinião pública quer ver os corruptos nas masmorras. Só que isso já aconteceu uma vez, em 1964: criou-se uma Comissão Geral de Investigação (CGI), presidida pelo marechal Estevão Taurino de Rezende, com poderes para instaurar inquéritos policiais-militares (IPMs). Foi um horror: até Oscar Niemeyer, o grande arquiteto, foi chamado para depor sobre enriquecimento ilícito e outras bobagens.


Combater a corrupção, sim; mas dentro da lei, por mais que a opinião pública se irrite com eventuais fracassos. Não existe alternativa decente à democracia.




Histórias da inquisição


Um dos IPMs criados pela CGI em 1964, com o objetivo de punir os corruptos e restaurar a moralidade no país, convocou um eminente profissional para que explicasse de onde vinha seu dinheiro. O profissional, com serviços requisitadíssimos no país e fora dele, explicou: ‘Ganho dinheiro dando…’.


O oficial exigiu respeito, e o profissional disse que apenas falava a verdade: era procurado para oferecer serviços sexuais e cobrava caro por isso.


Em 1964 a ditadura ainda era incipiente. Na palavra do jornalista Elio Gaspari, era envergonhada. O profissional acabou sendo dispensado e ficou em liberdade, embora os ditadores nunca tenham deixado de incomodá-lo (a propósito, o referido cavalheiro não era gay, não. Só queria chocar o milico pudico).


Agora, a pergunta: com a institucionalização das punições por suspeitas, é isso que queremos de volta?


 


Contra a maré


A propósito, já que esta coluna começou por contrapor-se à opinião predominante, continuemos: essa história de voto aberto no Congresso é um perigo. O voto secreto é a garantia de que o parlamentar não será perseguido nem sofrerá retaliações por sua posição em determinado assunto.


E retaliação ou perseguição não precisa ser necessariamente promovida pelas autoridades públicas. Imagine uma empresa poderosa que tenha vital interesse na aprovação, ou rejeição, de um projeto. Ficará quietinha e boazinha, sem sequer colocar os parlamentares adversários em sua lista negra?


 


O perigo da concentração


A RBS, Rede Brasil-Sul de Comunicações, uma empresa profissional e eficiente, de ótima reputação, acaba de comprar o jornal A Notícia, de Joinville. Na mesma Santa Catarina, a RBS já tem o Diário Catarinense.


A concentração de títulos em poucas empresas não é boa para ninguém: nem para o jornalismo, por reduzir a concorrência; nem para a democracia, por enfeixar em poucas mãos a opinião publicada; nem para os profissionais do ramo, por reduzir o número de empregos. Nem para as empresas, talvez, pois sem concorrência não há como desenvolver plenamente seu potencial. E, quando se junta a concentração de títulos à propriedade cruzada dos meios de comunicação, a coisa piora: os concorrentes são esmagados.


Parte da decadência do Jornal do Brasil se deve, sem dúvida, a problemas de administração. Mas uma parte maior é conseqüência de enfrentar um concorrente que, entre suas armas, é dono da mais poderosa rede de TV do país.


 


A vida sem Orkut


A internet é livre e deve continuar livre. Mas até liberdade tem limites. Ninguém é livre, por exemplo, para estuprar. Ninguém é livre para praticar sexo com bebês. É por isso que não se entende a relutância da Google, empresa inovadora e de excelente imagem, em cooperar com as autoridades na luta contra a pedofilia.


No Brasil a coisa é degradante: a Google daqui diz que não pode responder pela Google de lá, como se não fosse tudo a mesma empresa, como se a empresa daqui não se comunicasse com a de lá.


O Orkut, comunidade de relacionamentos da Google, tem 1.200 grupos de pornografia infantil e aliciamento de crianças para a prática de sexo, informa o excelente portal gaúcho Espaço Vital. Há também racismo, intolerância religiosa, indução de ódio a estrangeiros, homofobia.


A Google não pode se omitir. Centenas de milhares de adolescentes adoram o Orkut e odiariam viver sem ele. Mas, se a Google insistir na proteção a bandidos e o Ministério Público pedir o fechamento do Orkut, como se opor a isto?


 


Boa e velha reportagem


Kia Joorabchian, executivo-chefe da MSI, que controla o futebol do Corinthians, está há meses longe do país. Onde, por quê? Ninguém informa. Que é que Kia acha do abandono de emprego por parte de Carlitos Tevez, um dos melhores jogadores do mundo? Ninguém informa. Há conjecturas – mas cadê a velha e boa reportagem, que localizaria Kia na Europa e o entrevistaria sobre o tema?


O mesmo ocorre com Tevez, com a agravante de que os repórteres sabem onde ele está, tanto que foi gravada sua visita, em Buenos Aires, a uma casa noturna, onde dançou a noite inteira. E as entrevistas, nas quais ele diria por que preferiu deixar o Corinthians e quais são seus planos para o futuro? Nada: só especulações, informações de amigos a quem ele teria feito confidências, coisas desse tipo. Será que tentaram ouvi-lo e ele se recusou a falar? Também isso não aparece nos meios de comunicação.


E, no entanto, não custa fazer o registro. Se o jornalista entrevistou Tevez e não entendeu uma palavra do que ele disse, é só reportar. O que não pode é trocar a informação precisa pelas opiniões de amigos que ouviram dizer.


 


E eu com isso?


Alegria, alegria! Temos esta semana uma safra de notícias, divulgadas especialmente (mas não exclusivamente) pela internet, que nos permitirão, enfim, viver mais plenamente, mais sintonizados com os dias de hoje.


1. Ivete Sangalo está de namorado novo, diz jornal


2. Maria Paula posa passando roupa de calcinha com a filha no colo


3. Ex-mulher de Paul McCartney pode se mudar para os EUA


4. Fábio Assunção veste camisola da vovó em ensaio


5. Carolina Dieckmann curte aniversário em dia frio


Por menos que pareçam, essas notícias têm seu lado informativo: a de Carolina Dieckman, por exemplo, ensina que no inverno faz frio. Mas a campeã é Paris Hilton – uma moça notável: chama-se Paris, tem sobrenome Hilton, é herdeira de uma imensa fortuna e, para ficar famosa, precisou de um vídeo pornô na internet. Vejamos que precioso:


Paris Hilton diz chorar cada vez que ouve próprio disco


Temos algo em comum: este colunista também chora quando tem de ouvir a própria voz.


 


Como é mesmo?


O Tupolev 154 caiu na Ucrânia e, segundo o título de um importante portal de internet, nele morreram as 170 pessoas que o ocupavam. O lead também informou que o número de mortos era de 170. E o corpo do texto, reafirmando a morte de 170 pessoas, sem nenhum sobrevivente, detalhava: 160 passageiros e onze tripulantes.


Este colunista é ruim de conta, mas algo não está batendo.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados