Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O berço do herói

Um parlamentar se reúne com seus companheiros de bancada e decidem uma posição conjunta: só aprovarão certa medida se ela já estiver decidida, mesmo sem seus votos. Atitude imoral: seus votos vão no embalo, só para agradar a opinião pública. Este parlamentar, depois de feito o acordo, vai para a tribuna e, aos prantos, vota sozinho em favor da medida, abandonando os companheiros.

Duplamente imoral? Não: o referido parlamentar é tratado pela imprensa como herói – como se não tivesse participado de um acordo imoral, como se não tivesse abandonado seus companheiros para beneficiar-se sozinho de uma tomada de posição. Quem tem padrinho não morre pagão: os meios de comunicação o chamam de ‘parlamentar do bem’, ‘parlamentar boa gente’, coisas desse tipo.

A imprensa tem, sim, seus heróis e seus vilões – independente do que façam. Severino Cavalcanti é sempre vilão, mesmo que tenha, como presidente da Câmara, colocado em votação medidas que o governo, por não poder rejeitar, pretendia congelar. José Sarney hoje é herói – mesmo quando, tendo sido o chefe da luta contra as eleições diretas, participa da homenagem a Fafá de Belém, a Musa das Diretas, como se fosse um Teotônio Vilella ou Ulysses Guimarães.

Promotores em geral são heróis – procure na imprensa a continuação do caso daquele de Brasília, que copiava textos dos advogados de adversários de seus alvos. Ou daqueles promotores que estavam em grande evidência e, de repente, sem motivo aparente, sumiram.

Reportagem investigativa? Jamais para investigar os heróis.



Factóide

O assunto ‘filial do Guggenheim’ já rendeu o suficiente e talvez já tenha cansado. Agora, os meios de comunicação, estimulados pelo prefeito do Rio, César Maia, insaciável criador de factóides, falam em filial do Museu Hermitage, de São Petersburgo.

O Hermitage não tem nem pode ter filiais: seu acervo se compõe de tesouros acumulados pela monarquia russa – muito ouro, muitos diamantes, pedras preciosas finamente trabalhadas. Arte boa e com material caro. Como reproduzir do outro lado do mundo aquilo que só tem peças únicas?



Mea culpa

Esta coluna se preocupava, na semana passada, com a terrível possibilidade de que, enquanto se fechava a sede antiga e abria-se a sede nova, os jornalistas ficarem sem notícias da Daslu. Ledo engano, perfunctória preocupação: com Daslu aberta ou sem ela, os jornalistas continuaram falando da Daslu. Noticiou-se até a entrada, na loja de departamentos, de uma empresa fabricante de camisetas básicas. E os leitores foram informados de que o tapete de entrada é de cristal. Imagine só este colunista, que se fosse boxeador lutaria na categoria de peso ultra-pesadíssimo, pisando num tapete de cristal!



As contas

Deu no jornal: um advogado ganhou uma causa de R$ 39 milhões e queria, de honorários, receber 20% – ou seja, R$ 7,8 milhões. O juiz, entretanto, achou que era muito dinheiro e lhe concedeu 0,01% – ou seja, segundo o jornal, R$ 39 mil.

Já sabemos que jornalista não gosta de fazer contas; agora, tentemos descobrir cadê o erro. Vamos lá? 39 mil é 0,1% de 39 milhões (nesse caso, o erro estaria na porcentagem: em vez de 0,01%, seria 0,1%); ou o pagamento estaria certo, a porcentagem também, e nesse caso o valor da causa estaria errado. Ou o valor da causa estaria certo, a porcentagem também, e o pagamento do advogado estaria errado. Pergunta-se: enfim, cadê a notícia? Que é que de fato aconteceu?



Cadê os fatos?

1. Acabou a epidemia de lombriga no salmão?

2. Cadê o engenheiro brasileiro seqüestrado no Iraque?

3. O jornalista Cláudio Humberto informou que um diplomata árabe foi enviado ao Brasil para informar ao governo que o jornalista tinha sido assassinado. Cadê os repórteres para procurar o diplomata e aprofundar as informações?

4. As rebeliões se sucedem na Febem paulista, e são noticiadas pelo número: 26ª, 29ª, e assim por diante. Cadê a reportagem investigativa para mostrar o motivo, ou motivos, de tantas rebeliões? Será que os internos se rebelam apenas para passar o tempo, ou acontece algo que os incita? Será que nenhum ex-dirigente da Febem estará disposto a conversar com um repórter e contar-lhe o que, de verdade, acontece lá dentro?

5. O secretário da Segurança de São Paulo, Saulo Abreu, foi a um restaurante e encontrou a rua bloqueada por cavaletes. Reclamou com o delegado-geral, que acionou o GOE, Grupo de Operações Especiais, e a coisa toda terminou com prisões e a presença de policiais fortemente armados no restaurante. Pergunta-se: cadê o oficial da PM que obrigatoriamente o acompanha? Estaria o secretário guiando seu próprio carro, sem escolta, sem seguranças? Se o oficial da PM ou os seguranças o acompanhavam, por que acionar o delegado-geral?



Recomendando – 1

Excelente o artigo de Eduardo Graeff contra o desarmamento civil. Este colunista é favorável ao desarmamento, discorda das teses de Graeff, mas o artigo merece ser lido. Está na Folha de S.Paulo (1/6/2005), disponível aqui para assinantes do conteúdo do UOL.

Outra leitura que não se pode dispensar é dos artigos de Ali Kamel, no Globo. Um, em especial, a respeito de raças e racismo, é impecável. Role a página e leia aqui um artigo sobre Tim Lopes.



Recomendando – 2

Esta é só para alguns privilegiados: o excelente programa de entrevistas Coisas de Agora, do talentoso jornalista Ricardo Hernandes, que chega à centésima edição. Todas as noites, às 22h, pelo canal 45 UHF (e pela TVA); no Grande ABC, pelo Canal 14 da Vivax.