Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O destemeroso

Existe um discreto “momento Dines” em parte da imprensa brasileira. Oitenta anos de idade e sessenta de profissão motivam esse olhar de curiosidade dos mais novos, de saudade dos mais velhos e de reconhecimento por parte de todos os que viveram ou puderam avaliar o papel do Jornal do Brasil sob o comando de Alberto Dines, entre 1962 e 1973, e da Folha de S. Paulo entre 1975 e 1977.

O Roda Viva da TV Cultura de segunda-feira (19/3) levou a um público mais amplo, embora ainda acanhado, traços de uma personalidade profissional, da política e da cultura que haviam sido assinalados de forma sintética em jornal de grande circulação, O Globo (entrevista a Arnaldo Bloch), e de forma extensiva em órgão de circulação restrita, o Jornal da ABI (entrevista a Francisco Ucha).

O ciclo de conhecimento da contribuição de Dines ao jornalismo brasileiro continua na quinta-feira, dia 22, em seminário sobre sua importância para o conhecimento científico promovido pela Fapesp em São Paulo.

Ruptura com a rotina

O Roda Viva, que pode ser visto na íntegra aqui, trouxe à percepção do público a singularidade da trajetória de Dines, um dos raríssimos jornalistas que, após uma demissão – traumática, no caso −, retornou a uma redação com uma consciência mais aguçada da necessidade de haver crítica e autocrítica, não apenas a derrisão folclórica, entre seus pares.

Se Dines tivesse rompido com a categoria, seria apenas um proscrito. Ele rompeu com a rotina, a inércia das práticas absorvidas acriticamente. A sabedoria da visão retrospectiva permite entender melhor, hoje, que um dos méritos do JB nos seus dias de glória era a aliança da vibração e da disciplina dos jornalistas com a falta de reverência diante das fórmulas feitas. Esse caminho, que havia sido inaugurado por Samuel Wainer na Última Hora, foi, depois do Jornal do Brasil, trilhado pelo Jornal da Tarde e pela revista Realidade, e após o golpe de 64 por diferentes órgãos da imprensa dita alternativa, ou nanica. E se tornou quase moeda corrente no bom jornalismo brasileiro, como se vê em sua floração mais recente, a revista piauí.

Prepotência exposta

O que o Jornal dos Jornais (Folha, 1975) começou a tornar claro, e passos subsequentes reforçariam, é que os véus seriam puxados e ficaria à mostra a prepotência dos donos de jornais e de toda a pirâmide hierárquica da profissão, que termina na maneira desaforada como até hoje se atende o telefone em  determinadas redações, ou como age o repórter que apenas deixou de ser foca.

No Roda Viva, a ombudsman da Folha, Suzana Singer, notou que pouquíssimos jornais levaram adiante a plataforma do Jornal dos Jornais, ou seja, manter em suas próprias páginas a crítica da mídia. (Registre-se que a própria TV Cultura despachou seu último ombudsman, Ernesto Rodrigues, quando ele criticou a direção da emissora pela demissão do jornalista Gabriel Priolli.) E perguntou a Dines por que isso acontece.

“Porque o velho Frias tinha razão. ‘Você só vai arranjar inimigos’, disse ele para mim quando eu ofereci a criação de uma coluna de comentários sobre a imprensa. O jornalista não gosta de ser comentado, de ser observado. E a palavra observar foi uma invenção nossa porque a observação não é nada perigoso, é uma forma de você intervir num fenômeno sem mostrar que está intervindo. É uma coisa positiva, de sociedades avançadas. Mas os jornais e jornalistas não querem ser vasculhados, arguidos. Há uma onipotência embutida no processo jornalístico brasileiro (…) no sentido de não admitir ser criticado.”

Destemor e talento

Octavio Frias de Oliveira era um empresário experiente que estava se tornando publisher exímio. Conselho dele não era para se jogar fora. Mas prevaleceu no pensamento e no comportamento de Dines o senso do dever, a preocupação com o país, com a sociedade brasileira, com a profissão/missão de jornalista. E uma salutar inquietação.

Demitido da Folha por Boris Casoy, num momento em que o jornal não sabia em que direção caminharia a política brasileira e, como dizem os franceses, mantinha dois ferros no fogo (a Folha da Tarde, abertamente pró-ditadura, e a Folha de S. Paulo, que passaria a apoiar a abertura), Dines acabaria por criar este Observatório da Imprensa, onde confirma, desde 1996, uma informação que deu sobre si mesmo no Roda Viva: é um homem sem medo.

Quando se juntam destemor − no sentido de apego a convicções, não de bravata − e talento, o resultado pode ser uma trajetória como a de Dines, homem honesto, de pensamento aberto, trabalhador incansável, primus inter pares.