Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O limite da liberdade

Nardoni? Não, este será o tema de outra nota. Mas tem a ver com o noticiário sobre o julgamento do casal, condenado pela morte de sua filha Isabella. No setor de comentários de um grande portal noticioso, entre ataques ao casal (ampla maioria), defesa (bem menos), considerações sobre o júri, chamava a atenção um post com insinuações pornográficas a respeito da ministra Dilma Rousseff, candidata do PT à Presidência da República. Inadmissível: protegida pelo uso covarde de pseudônimo, surge a despropositada agressão.


O problema, no entanto, não é apenas o pseudônimo: é a oferta de espaço para que mal-educados, malucos, grosseiros possam externar livremente seus preconceitos. O referido portal, um dos maiores do país, não pode abrir seu espaço privilegiado, sem mediação, a pessoas que baixam o nível do debate. O salário dos mediadores certamente não afetará o balanço de lucros da empresa.


E a liberdade de expressão? A liberdade de expressão tem alguns limites óbvios: por exemplo, ninguém tem liberdade de gritar ‘fogo’ num teatro lotado, apenas para ver a confusão que vai dar. Ninguém tem a liberdade de apitar num estádio para bloquear as jogadas dos adversários (o torcedor pode até tentar, e alguns já o fizeram, mas se forem surpreendidos pelos seguranças terão outras surpresas). Ninguém pode subir num caixote, na calçada, e incitar um assassínio. A liberdade de expressão, como qualquer liberdade, encontra seu limite natural na liberdade dos outros – na liberdade de fazer campanha, por exemplo, sem que sua reputação seja manchada apenas por motivos eleitorais.


A internet é território livre e deve continuar a sê-lo. Quem quiser tem a possibilidade de montar gratuitamente seus blogs e exprimir sua opinião, seja qual for (respondendo por isso, civil e criminalmente, como qualquer pessoa que divulgue suas posições). Mas um espaço com leitura consolidada não tem o direito de se abrir para que malucos e idiotas procurem assassinar a reputação alheia.


Um blog esportivo, normalmente divertido, publicou um post que ultrapassa o limite da canalhice: na crítica a um dirigente de clube, insultou sua esposa, falecida há poucos meses.


Como agir para que a liberdade da internet, uma conquista da sociedade, não se transforme numa arma de difamar pessoas? É um bom tema de debate para nós, jornalistas. Pois ou nos autorregulamentamos ou encontraremos rapidamente alguém que, usando nossos erros como pretexto, irá regulamentar-nos para evitar nossos acertos.


 


A lei de Kotscho


O colega Ricardo Kotscho, editor de um blog de amplo sucesso, resistiu ao máximo à idéia de fazer moderação nos comentários que recebe. Teve de se render quando percebeu que a baixeza estava tomando o lugar das pessoas que simplesmente queriam dar sua opinião, com urbanidade e sem agressões.


Seu comentário, publicado, no Balaio do Kotscho e reproduzido neste Observatório, foi originalmente parte de uma entrevista à jornalista Andréa Zillo, da Rádio Aldeia FM, de Rio Branco, no Acre (ver ‘A guerra suja das campanhas na web‘).


Este colunista conhece o Ricardo Kotscho desde os tempos em que ambos tinham cabelo e é seu amigo discordando dele em quase tudo, até no time errado para que torce (não teve a graça de ser corinthiano, tadinho). Mas, com todas as discordâncias, gostaria de assinar um texto como este.


 


A festa do julgamento


O filme The Big Carnival (‘A Montanha dos Sete Abutres’, 1951), com Kirk Douglas, direção de Billy Wilder, é uma obra clássica sobre jornalismo. Numa pequena cidade do Novo México, um repórter encontra a grande notícia: uma pessoa foi soterrada na Montanha dos Sete Abutres. O fato deu manchetes em todo o país. O repórter trabalhou então para retardar ao máximo o salvamento, degustando seus minutos de glória. O povo se junta em volta da montanha, e em pouco tempo lá havia pipoqueiro, cachorro-quente, camelôs, roda-gigante, um imenso parque de diversões. Todos lucraram, até mesmo a esposa da vítima, que pensava em abandoná-la e acabou ficando na cidade para ganhar algum.


Alguma semelhança com o Grande Carnaval do Fórum de Santana, em São Paulo? O homicídio de uma menina é, por definição, comovente; o julgamento de pais acusados assassinar a filha é, por definição, emocionante. Mas temos, livre, embora já condenado, o assassino confesso da namorada – um jornalista que a matou sem que ela pudesse se defender. Depois de vários anos foragido, foi preso sem manifestações o promotor que matou a esposa grávida e forjou um assalto para escapar à punição; e todos os dias, em nosso país do futuro, há crianças sexualmente violadas e mortas por parentes, alugadas para pedir esmolas nas ruas, transformadas em aviões de traficantes, viciadas em crack, candidatas a uma vida curta, brutal e infeliz.


Num único portal de notícias, num único dia, este colunista contou mais de mil comentários sobre o caso Nardoni. Alguns eram preocupantes, pedindo a volta da ditadura, exigindo que em casos como este seja aplicada sumariamente a pena de morte, condenando o direito de defesa; outros expressavam opiniões civilizadas, das mais diversas tendências. Mas é um bom tema para debate entre os jornalistas: primeiro, até que ponto os meios de comunicação apenas responderam a uma demanda da sociedade, ampliando sua cobertura a ponto de, em certos casos, suspender sua programação normal; segundo, por que este crime provocou comoção enquanto outros, igualmente graves, passam em branco; terceiro, o que leva pessoas comuns a tomar um ou mais ônibus, sair de casa à noite e ficar em frente a um fórum, sem direito de assistir ao julgamento, apenas para manifestar sua posição.


 


A festa dos abutres


O ponto mais importante sobre o qual refletir, entretanto, é o papel dos meios de comunicação na transformação de um julgamento em espetáculo. Sem entrar no mérito do caso – este colunista não se aprofundou no assunto – a repercussão sem dúvida influencia o comportamento do júri. Tanto influencia que, muitas vezes, o próprio juiz determina a mudança de cidade, para que os jurados de lá, menos alcançados pela repercussão, sejam capazes de decisão mais serena.


Uma frase da advogada Flavia Rahal, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, no portal Consultor Jurídico:




‘Depois do espetáculo que se armou, a sede de vingança só ficará aplacada com a condenação do casal. Ver a Justiça como vingança não é Justiça. Para a sociedade, a reparação para o caso só vai ocorrer se eles forem condenados à pena máxima, mas o que é preciso observar é se existem provas para se chegar a esse resultado’.


E o papel dos meios de comunicação? Um grande portal de notícias pode ser citado como exemplo, ao publicar o seguinte título, dias antes da sentença: ‘Caso Isabella – Nardoni pode ter pena maior do que madrasta; veja acusações’.


Em uma frase, julgou, condenou, avaliou as penas. E publicou a chamada para as acusações – quanto à defesa, quem se interessaria por ela, após a contundente condenação do meritíssimo jornalista?


Este colunista, exatamente por não entender nada do caso, não tem nenhuma idéia formada sobre a condenação, a duração da pena, a decisão do júri. Mas tem uma pergunta: qual teria sido a reação do público em volta do Fórum de Santana e dos meios de comunicação caso o júri tivesse decidido pela absolvição?


 


Quem cuida das crianças?


A TV deu a cena chocante: em Jundiaí, uma criança pequena foi arrancada brutalmente dos braços da mãe, por uma guarda municipal, e entregue a um guarda municipal, que a levou para uma instituição. A violência apareceu na TV e sumiu: no dia seguinte, o assunto havia deixado de existir. E, no entanto, há aí uma série de violações:


1. A Guarda Municipal, pela Constituição, não tem poder de polícia.


2. Cadê os oficiais de Justiça? Cadê o Conselho Tutelar?


3. Cadê o Juizado de Infância e Juventude?


4. Quem tem poder de polícia é a polícia. Cadê a Polícia Civil? Cadê a Polícia Militar?


5. No noticiário sobre a retirada da criança dos braços maternos, foi insistentemente informado que a mãe era cigana. A Justiça faz referência a dez ciganos que cercaram o funcionário do Poder Judiciário encarregado da busca e apreensão. Não haverá aí nenhum preconceito contra ciganos? Quem nunca ouviu recomendações para tomar cuidado porque havia ciganos por perto?


Os meios de comunicação ignoraram solenemente o caso. Houve uma única exceção: o radialista João Alckmin, que dirige o programa Showtime, pela Rádio Piratininga, 750 AM, em São José dos Campos, SP (e que, talvez por essa insistência em querer descobrir as coisas, já foi vítima de dois atentados a bala). Ele perguntou o que estava acontecendo, mandou um repórter a Jundiaí. Foi quando o juiz disse que o funcionário do Poder Judiciário estava sendo ameaçado pelos ciganos e pediu auxílio à Guarda Municipal. História esquisita: parece que ser cigano ainda é crime. Já que a imprensa não cobre, acompanhe o caso da criança arrancada da mãe aqui ou aqui.


 


Uma idéia brilhante


O escritor e pesquisador Luís Mir teve uma grande idéia: tirar a morte de Tancredo Neves do reino da lenda e transportá-lo para a História. Tancredo foi o primeiro presidente eleito após a ditadura. Na véspera da posse, foi operado de um tumor no intestino e jamais se recuperou, não chegando a assumir o cargo. Sua morte, há 25 anos, foi cercada de mitos – inclusive o de que levou um tiro no estômago (e os devaneios vão até o local onde o fato teria ocorrido: a Catedral de Brasília).


Mir foi à fonte primária dos fatos: os prontuários médicos de Tancredo Neves. Sua primeira revelação é uma bomba: Tancredo tinha mesmo um tumor, mas seria possível escolher a data da cirurgia, já que não havia emergência. Outra bomba: o transporte de Tancredo a São Paulo, num avião sem equipamento médico, foi um erro desnecessário. Mas o livro de Mir não faz julgamentos de valor: traz apenas fatos médicos, aqueles descritos nos prontuários do dia a dia, desde a primeira internação de Tancredo até o dia de sua morte, digamos, oficial.


Pois há a terceira bomba: a rigor, a rigor, Tancredo estava morto desde o dia 19 de abril, enquanto a morte só foi anunciada no dia 21. Mas vale a pena acompanhar os acontecimentos pelo livro, que será lançado nos próximos dias.


Mir não quer fazer um lançamento oficial, apenas colocar o livro na praça. Sai logo, pela Mírian Paglia Editora de Cultura: já está sendo impresso.


 


As coisas que o jornal conta


Um dos motivos que levam muita gente ao Jornalismo é que não há Matemática. Ainda bem, até certo ponto: às vezes, é preciso fazer contas. E os veículos de comunicação, por mais bem equipados que estejam em termos de máquinas de calcular e computadores, sempre acabam escorregando nos números.


Um grande jornal esportivo, recentemente, resolveu demonstrar que o Corinthians perdia dinheiro ao jogar no estádio de Barueri, onde o aluguel é menor, em vez de optar pelo Pacaembu, onde o aluguel é maior mas cabe mais gente. As contas são magníficas: numa partida, em Barueri, a renda bruta foi de R$ 325 mil, aproximadamente; o aluguel, de R$ 6.500; e o lucro, de R$ 209.866. No Pacaembu, em outra partida a renda foi de pouco mais de R$ 1 milhão, com aluguel de R$ 170 mil e lucro de R$ 695 mil.


Faça as contas: não bate. Tudo bem, o jornal fala em ‘renda bruta’, o que significa que há outras despesas a descontar. Quais despesas? Bom, isso o jornal não conta. Há as taxas para a Federação, a taxa de arbitragem. E o transporte, está incluído? E o ‘bicho’, o prêmio em caso de vitória ou empate? Serão todos cretinos, no comando do clube, renunciando a parte da receita em troco de nada?


 


Abre as asas sobre nós


E essa história de prender gente na Venezuela porque critica o governo? Estará o presidente Lula disposto a insistir na tese de que na Venezuela há democracia até demais?


Talvez: o presidente Lula explicou há dias qual é sua maior restrição à imprensa. Ele acaba de inaugurar duas mil casas, não sai uma nota. Cai um barraco, dá manchete. Diz o presidente que isso revela a predileção pela desgraça.


Vamos imaginar uma imprensa que siga a orientação jornalística de Sua Excelência.


** ‘Pousaram ontem normalmente, em todo o mundo, 170 mil aviões, transportando 17 milhões de pessoas’


** ‘A população brasileira continua aumentando, comprovando a tese de que há mais nascimentos do que mortes’


** ‘Os aeroportos brasileiros estão funcionando normalmente e ninguém foi preso com dólares na cueca’


Fica difícil: o jornal noticia as exceções, não os fatos normais. Os meios de comunicação cobrem o governo quando é extremamente eficiente ou quando falha. Quando apenas cumpre a obrigação, não há o que dizer. E, cá entre nós, duas mil casas num país com 200 milhões de habitantes valem manchete?


 


Dá que ouçamos tua voz


Mas, verdade seja dita, todo mundo adora os meios de comunicação quando fazem elogios e os detestam quando fazem críticas. O governador paulista José Serra, candidato tucano à sucessão de Lula, partilha com ele algumas idéias sobre a imprensa (embora não, esperemos, a de que Chávez é que sabe lidar com os críticos). Ficou bravo porque a imprensa o pegou exagerando nas realizações, transformando uma estação de trens reformada em estação nova do Metrô, ou dizendo que determinada obra está em andamento quando nem licitada foi.


Nem Serra nem Lula deveriam criticar a imprensa: são muito bem tratados por ela. Vejam as agruras por que passa Barack Obama: lá é bem mais difícil.


 


Como…


Do portal de notícias de um grande jornal:


** ‘Aluno rico inflam nota de particulares no Enem’


Com isso, as pesquisa das escola ficam tudo prejudicada.


 


…é…


De um grande jornal:


** ‘Rapaz que levou Nunes até a causa de Glauco é indiciado’


Era ‘casa’. Aí faz sentido, né?


 


…mesmo?


De um grande jornal:


** ‘O cientista social e artista Pedro Costa, atual único membro do grupo Solange Tô Aberta, ficou nu (…)’


A história toda é meio escatológica, e não vem ao caso. O interessante é esse grupo, o primeiro do mundo formado por apenas uma pessoa. E ainda por cima pelada.


 


E eu com isso?


Quanto mais se vive mais se aprende (segundo o apresentador Milton Neves, o criador desta frase é Mauro Beting). No Brasil, se os vizinhos fazem sexo ruidoso, a gente chama até os parentes para se divertir com o barulho deles. Na Inglaterra, não: lá dá problemas legais.


** ‘Sexo em `alto e bom som´ leva mulher para a cadeia’


Caroline Cartwright já tinha sido advertida pela polícia sobre ruídos excessivos (numa conversa que deve ter sido hilariante). Mas reincidiu. Em cana!


Já na França, a vida sexual é menos reprimida.


** ‘Brinquedo sexual de quase R$ 100 mil é apresentado na França’


Trata-se do velho consolo – só que é feito de ouro 18 quilates e tem 117 diamantes incrustados. Não, não machuca, diz o ourives que o criou. Mas fere o bolso: custa aproximadamente R$ 100 mil.


O noticiário frufru traz também muito beijo:


** ‘Mulher invade palco e tenta beijar dançarina famosa na boca’


** ‘Letícia Spiller beija bochecha da ex-BBB Angélica’


E muita calcinha:


** ‘Calcinha de Letícia Spiller escapa em evento’


** ‘Ladrão de calcinhas é preso após polícia seguir pegadas deixadas na neve’


O rapaz diz que não é ladrão: é apenas fetichista. É uma boa explicação: já pensou esse pessoal de dinheiro na meia e nas cuecas falando de fetiches?


E há o frufru propriamente dito, sempre uma fonte de inspiração:


** ‘Eva Longoria mostra as costas em Londres’


** ‘Gabriela Duarte ainda não se acostumou com novos cabelos’


** ‘Gwyneth Paltrow está obcecada por frituras’


** ‘Flávia Alessandra não sabe se engravidará ainda em 2010’


** ‘Tiger Woods é flagrado jogando golfe, pela primeira vez após escândalo’


Este sim, tem confiança no seu taco!


 


O grande título


A antropomorfia sempre foi um ponto alto nas lendas dos povos: é o demônio que assume a forma de gente, é o Pato Donald, que é pato e é gente, é o Pateta, que é cachorro mas é gente e convive com o Pluto que é só cachorro mesmo, é Herbie, o Fusca que age sozinho e tem emoções, é Francis, o Mulo Falante. Há até alguns parlamentares que escondem o rabo pontudo, ocultam com muito perfume o cheiro de enxofre, colocam os pés de cabra em sapatos de bom cromo e se fingem de seres humanos. Este título, acredita o colunista, vai mais na linha de Herbie:


** ‘Carros de luxo tentam atrair as mulheres’


Será que já há moças namorando com algum deles?


Há uma confissão notável:


** ‘Namorado de Britney Spears diz que odeia música da cantora’


Quanto preconceito! Mas é preciso confessar que passei a respeitar muito mais esse rapaz.


E há um título imbatível, narrando um acontecimento que se considerava impossível:


** ‘Kevin Costner está esperando seu sétimo filho’


Esta coluna se solidariza com o astro e espera que sua gravidez corra sem problemas.

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados