Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Palavra que fere, palavra que mata

Aconteceu de novo: uma moça, Daniele Toledo do Prado, de Taubaté, detida pela acusação de matar seu bebê por overdose de cocaína, foi estripada pela imprensa, que mais uma vez aceitou como verdade aquilo que não passava de uma suspeita da polícia. Devido ao noticiário, que a tratou como Monstro da Mamadeira, a moça foi espancada por 19 presidiárias na Cadeia de Pindamonhangaba e teve o maxilar quebrado. Por pouco não foi morta. [Ver ‘Do sensacionalismo nasce a barbárie‘]

Só que, concluído o laudo, verificou-se que não havia cocaína no bebê. A história toda era uma invenção. A imprensa está noticiando o caso em detalhes – todos os detalhes, menos um: a cumplicidade da própria imprensa na destruição da vida da jovem mãe. O principal jornal da região publicou, pouco mais de um mês atrás, frases como ‘a mulher foi presa domingo depois que sua filha morreu, às 10h40, após uma parada cárdio-respiratória provocada por overdose de cocaína’. Um portal de internet abriu com ‘Mãe que deu cocaína à filha deixa o hospital e é isolada’. Um dos maiores portais do país quase justificou a atitude das presas que espancaram a moça, ‘revoltadas com a brutalidade do crime’.

E como a imprensa está tratando seu próprio papel neste crime? Boa parte dos veículos de comunicação – excetue-se o ombudsman da Folha de S.Paulo, Marcelo Beraba, jornalista de primeiro time, que entrou fundo no caso – finge que não tem nada com isso: apenas informa que houve equívoco, bota a culpa na polícia e numa médica chamada Eryka, cujo sobrenome não é divulgado, e se cala sobre o noticiário cúmplice que publicou.

Um gigantesco portal de internet foi mais longe: seu título original foi ‘Mãe mata bebê com cocaína na mamadeira e é indiciada’. Na quarta-feira (6/12), comprovada a inocência da mãe, discretamente mudaram o título antigo para ‘Mãe suspeita de matar bebê com cocaína é indiciada’. É a prova da culpa: tentam reescrever a História. Colocaram o título correto só depois que o mal já estava feito.



As impressões digitais

O problema, em nossa época de computação, é que os leitores-internautas têm recursos para documentar a falta de caráter – pois o mínimo que os veículos de comunicação deveriam fazer seria reconhecer o erro e tentar desculpar-se. Nem isso fizeram. O atento leitor Marnei Fernando, de Goiânia, registrou as mudanças passo a passo. Não foi o único: veja, neste Observatório da Imprensa, os comentários à coluna Circo da Notícia da edição anterior.

Para nós, jornalistas, que vergonha!



Repetindo a nojeira

Na última coluna, relembrávamos o caso da Escola Base. Não adiantou a reflexão, não adiantaram as sentenças judiciais, não adiantou nada: alguns jornalistas amestrados continuam a se ajoelhar diante das ‘otoridades’ e a render-lhes homenagens – em vez de, na boa tradição jornalística, duvidar do que dizem, investigá-los e saber se estão ou não falando a verdade. Autoridade também mente!

Na pior das hipóteses, caso os jornalistas não queiram mesmo se envolver com essa coisa desagradável que é trabalhar, brigar com doutores e excelências, lutar para encontrar a verdade, há o recurso de atribuir a versão a quem a declara. ‘O delegado disse que (…)’, ‘na opinião do promotor, o que aconteceu foi o seguinte (…)’, ‘o governador acha que (…)’. Jamais, como se fez, publicar uma opinião como se fosse fato, exclusivamente por ser a opinião de uma autoridade. E, naturalmente, ouvir a vítima dos ataques. No caso, a moça só foi ouvida depois que a própria polícia reconheceu o erro e a libertou.



Desafiando os ilustres

Detalhe importante: na semana anterior à morte do bebê, a mãe registrou queixa de estupro contra um médico-residente do hospital. Terá sua ousadia, de acusar um futuro-doutor, algo a ver com a tragédia que se abateu sobre ela, com a participação intensa das autoridades e da imprensa?



A pergunta que não se fez

Uma dúvida que deveria ter levado os jornalistas a desconfiar do caso: por que matar um bebê com cocaína, que é cara e deixa traços? Se a mãe fosse viciada, por que desperdiçaria cocaína com o bebê, em vez de cheirá-la?

Isso lembra outra história ridícula em que a imprensa esteve envolvida, quando uma grande fábrica de confeitos foi acusada de colocar cocaína nas balas vendidas à porta das escolas. E para que a indústria faria isso? Se os estudantes se viciassem em cocaína, quem ganharia seriam os traficantes, não ela. Não obstante, a empresa foi crucificada. E, para sobreviver, teve até de mudar a marca de suas conceituadas balas.



A imprensa como ela é

O caso da mamadeira teve ampla repercussão, por envolver um bebê.. Mas, não há muito tempo, também no Vale do Paraíba, uma senhora, farmacêutica, levou à filha presa um remédio de manipulação. O remédio vinha em forma de pó branco. Antes de qualquer análise, a senhora foi presa; e a notícia enviada ao principal veículo impresso da região, publicada com destaque, de maneira acrítica, foi algo do tipo ‘mãe leva cocaína para filha presa’. Enquanto se concluía o laudo do pó, a senhora ficou presa. Ficou oito dias na cadeia e foi libertada.

O caro leitor, se quiser fazer um exercício de jornalismo explícito, poderá se dar ao trabalho de procurar a notícia sobre a libertação desta senhora. Se conseguir encontrá-la (há um excelente programa de lupa para computadores), vale comparar os espaços destinados à acusação e prisão com o cubículo de pé de página oferecido à comprovação de inocência e à soltura. Outro exercício interessante seria procurar o mea-culpa do jornal. Este colunista não o achou.

Como é que se reconstruirá a vida desta senhora brutalmente atacada, considerando-se que sua profissão, farmacêutica, se baseia na confiança do cliente?



Lúcio Flávio

Um famoso bandido carioca, Lúcio Flávio Villar Lírio, cunhou uma frase que deveria ser óbvia (mas não é): ‘Polícia é polícia, bandido é bandido’. Temos de parafraseá-lo: ‘Polícia é polícia, jornalista é jornalista’. O jornalista deve desconfiar de todas as fontes, especialmente das poderosas e que andam armadas. Pode até ser amigo do policial, mas não pode confiar cegamente naquilo que ele diz.



Preconceito – 1

Parte da imprensa escrita se refere a Aldo Rebelo, deputado federal pelo PCdoB, como ‘comunista’, entre aspas. Por que as aspas? Se PCdoB significa Partido Comunista do Brasil, como definir seus partidários? Será que tentam amaciar a posição política de Rebelo, dizendo que não é tão comunista assim? Pois erraram: Rebelo é comunista linha chinesa, maoísta, daqueles que acreditavam nos recordes de natação de Mao Tsé-tung e, caso se encontrasse com o dirigente albanês Enver Hoxha, ia chorar que nem José Dirceu quando vê Fidel Castro.



Preconceito – 2

Nossos meios de comunicação ainda não se livraram do preconceito contra homossexuais. Isso ficou claro na notícia sobre a gravidez de Mary Cheney, homossexual, filha de Dick Cheney, vice-presidente americano. Acontece que homossexualismo não significa esterilidade: Mary e sua companheira, Heather Poe, podem perfeitamente engravidar. Há vários métodos para isso – inclusive o mais tradicional, no caso utilizado para o fim exclusivo da procriação.



Preconceito – 3

O mesmo jornal que triturou Daniele Toledo do Prado deve estar num tremendo inferno astral. Há dias, publicou duas notícias na mesma página. Acima, a informação de que um casal de classe média alta estava preso, acusado de distribuir ecstasy. Abaixo, a informação de que tinha sido preso um favelado, distribuindo drogas. O favelado saiu lá com nome completo. Os bacanas, não: só saíram as iniciais.

Quem manda nascer pobre?



E eu com isso?

Quando este colunista começou a trabalhar, nos tempos da TV a lenha, a matéria era datilografada e encaminhada à oficina, onde era composta em linotipos. Um barulho infernal, um calor de matar: cada linotipo tinha uma caldeira que derretia chumbo para a composição. A poluição era tanta que os linotipistas recebiam leite da empresa, para ajudá-los a sobreviver no ar carregado de chumbo.

Composta, a matéria era colocada numa página com moldura de aço. Quando a página estava completa, a moldura era apertada ao máximo, colocava-se um papelão especial, de amianto, por cima, e tudo era encaminhado à calandra: uma gigantesca máquina, com pressão de não sei quantas toneladas. O papelão recebia em baixo-relevo a imagem da página. Derramava-se chumbo quente no papelão e se obtinha a telha, que era colocada nas rotativas para fazer o jornal.

Hoje é tudo eletrônico, a frio, computadorizado, funciona à velocidade da luz num ambiente limpíssimo, com temperatura agradável. Chumbo? Ninguém mais nem sabe o que é isso. E, graças a esse progresso fantástico, pudemos desfrutar, na última semana, de um debate dos mais importantes: se as modelos-e-atrizes têm sido fotografadas freqüentemente sem calcinha porque se esqueceram de colocá-la, porque não gostam de usá-la, ou simplesmente como propaganda. 

Pink, Britney Spears (veja este título: ‘Pela terceira vez nesta semana, Britney Spears sai sem calcinha), Paris Hilton (que todo mundo já viu sem calcinha e sem mais nada, escondida apenas quando o namorado aparecia no vídeo), Adriane Galisteu (que estava sem sutiã, também – e precisa?) foram fotografadas sem calcinha. O pessoal lembrou até de Lílian Ramos, aquela que apareceu sem calcinha ao lado do então presidente Itamar Franco, e foi entrevistá-la – por telefone, claro, que ela vive em Roma há treze anos.

Como vemos, a nova tecnologia da imprensa tem grande utilidade!

Mas a avalanche noticiosa não fica circunscrita às calcinhas. Vejamos notícias que justificam o tempo que gastamos para tomar conhecimento delas:

1.Em Hollywood, algumas mulheres não têm tempo para depilar axila’

2. ‘Cachorro de Serena Williams morde guarda na Flórida’ – o único problema, pelo visto, é que Serena Williams não é dona do cachorro.

3. ‘Gabriela Duarte leva filho à praia’

4. ‘Nelly Furtado mostra `promiscuidade´ em show’

Que significa ‘mostrar promiscuidade’? A cantora canadense fez caras sensuais e mexeu nos cabelos. Como o show se chama ‘Promiscuous’ – entende?

5. ‘Raica e Ronaldinho separam-se, às vésperas das festas de fim de ano’

De onde saiu a notícia? O texto explica: Ronaldo Gorducho ‘teria dito’ a ‘amigos do Real Madrid’ que ambos se separaram. Não é notícia bem embasada?



O grande título

Para este colunista, este é um título tão bom que massacrou todos os demais. É informativo e, de maneira sutil, lembra que em diversos eventos circula boa quantidade de bebidas alcoólicas.

** ‘Roberto Fernandez faz Workchopp sobre criação’

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Jornalista, diretor da Brickmann&Associados