Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Tortura ao vivo

Assistir a entrevistas coletivas ao vivo tem sido uma tortura para o telespectador, dos salões acarpetados aos gramados de futebol. As perguntas ao presidente Lula, por exemplo, além de vagas eram de difícil entendimento. Algumas até incluíram gerúndio de telemarketing. Vejam a do Globo:




** O senhor acabou de dizer que os juros não podem ser o único mecanismo de combate à inflação. Eu gostaria de saber que outras medidas o governo poderia estar estudando para ter esse controle da inflação, além da medida de colocar dinheiro no mercado através de crédito consignado e microcrédito que o senhor colocou?


Num dado momento, o porta-voz André Singer provocou situação constrangedora. Depois de ouvir resposta a suas perguntas, a repórter da agência portuguesa Lusa cobrou do presidente a resposta esquecida à pergunta da Associação dos Correspondentes Estrangeiros, que ela representava. André interrompeu de modo deselegante, deixando a colega com cara de tacho. Nem parecia um jornalista. Pois o presidente, numa aulinha de elegância ao porta-voz, atendeu à repórter. Pena que a pergunta fosse um desastre:




** ‘O senhor acha que vai conseguir assento permanente no Conselho de Segurança da ONU ainda no seu mandato?’


Isso lá é pergunta? O presidente bem poderia responder: ‘Não acho não, estou tentando só fazer marola…’


Tem que ensinar


Enquanto isso, nos gramados…


Na coletiva posterior ao jogo Brasil 3 x 0 Guatemala, o treinador Carlos Alberto Parreira respondeu a perguntas sobre uma eventual nova convocação de Romário: não haveria por que convocar novamente o jogador, pois ele acabara de se despedir da seleção. Mas ficou pasmo quando ouviu em seguida uma pergunta mais ou menos assim:




** Mas se o Brasil já estivesse classificado para a Copa de 2006 e houvesse um jogo pouco complicado, Romário poderia ser convocado de novo?


‘Desculpe, desisto, não consigo acompanhar a imaginação de vocês’. Mais torturante ainda foi assistir no domingo a uma excitadíssima penca de repórteres entrevistando o ‘empresário’ Kia Joorabchian, poderoso chefão do Corinthians. As perguntas não versaram sobre os meandros financeiros da MSI, mas sobre futebol! Quais as credenciais de Kia Joorabchian para falar de futebol? Que repórter desconhece que o negócio dele não é futebol? E ainda festejaram o fato de que o iraniano respondeu em ‘português’…


Por fim, o goleiro do Corinthians ficou ofendido quando lhe perguntaram como se sentiria se outro goleiro fosse contratado para titular. Quem perguntou, obviamente, tinha a intenção de ver o jogador embaraçado, pois como pode se sentir um atleta jogado para escanteio? Ao comentar o episódio na semana passada no programa SportCenter, da ESPN Brasil, o jornalista esportivo Antero Greco fez uma observação interessante: ‘Virou moda ultimamente todo mundo ensinar jornalista a trabalhar’.


Tem que ensinar mesmo – pelo menos a perguntar! O jornalista americano Ken Auletta, em longa matéria para The New Yorker [ver remissão abaixo], descreveu um dia de trabalho de Scott McClellan, o secretário de imprensa de George W. Bush. Ele conta que no encontro matinal dos setoristas da Casa Branca com o secretário, em 14 de novembro de 2003, os repórteres cismaram com uma declaração de Bush dada ao Financial Times na véspera de uma viagem do presidente a Londres – a de que os americanos permaneceriam no Iraque até Saddam Hussein ser capturado ou morto. McClellan tentou explicar: ‘Ele disse que ficaremos lá até completarmos a missão, até chegarmos a um Iraque livre, pacífico e democrático’. Não adiantou. Nos 15 minutos do encontro, houve 19 versões da mesma pergunta. Mais tarde, McClellan disse a Auletta: ‘Eles estavam tentando dizer, ah, o presidente mudou o que tinha dito’.


Pura elucubração


Dezenove versões de uma mesma pergunta! Isso é entrevistar, querer uma resposta. Só não se recomenda que os repórteres tomem aulas na escola da Primeira Leitura, a quintessência do jornalismo. As perguntas que os mestres fariam ao presidente Lula em sua primeira coletiva:




‘E em que mundo vivem nossos jornalistas para que José Dirceu, Waldomiro Diniz e Aldo Rebelo não tenham sido mencionados num momento de evidente instabilidade política? Os jornalistas que trabalham e moram em Brasília não tinham uma mísera pergunta sobre reforma ministerial?! O PP de Severino vai ganhar o ministério? E Roseana Sarney? E a coalizão político-partidária que não consegue virar coalizão governamental por mais concessões fisiológicas que o Planalto lhe faça? Precisava mesmo comprar o Aerolula? E o reequipamento da Força Aérea? E o programa nuclear? E a aliança para a reeleição, em 2006? E a verticalização das alianças? E como é que se faz uma intervenção do Rio, que é derrubada unanimemente pelo Supremo (STF)?’


Tirando a primeira pergunta, o resto é desinformação, distorção e elucubração. No nível dos setoristas do carpete e do gramado.