Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Vantagens das transcrições integrais

Noticiou-se na quinta-feira-feira (14/2) decisão do STF que determina transcrever integralmente o conteúdo de interceptações telefônicas em investigações criminais de determinado processo. Passou-se imediatamente a discutir a jurisprudência. Manda o bom senso que não se exija a transcrição de tudo que foi gravado, mas dos telefonemas usados como evidências pela acusação, ou, nestes, das partes da conversa que interessam ao caso.

É inútil para o andamento do processo, seria mera catimba de advogados de defesa, exigir a transcrição ipsis literis. Digamos que um dos interlocutores, depois de tratar de negócios (com ou sem aspas), tenha tempo de sobra para contar o programa feito com as crianças no feriado (e seu interlocutor tope escutar). Querer que isso entre na obrigação de transcrever não seria razoável.

Entretanto, a integralidade dos trechos propriamente acusatórios é muito bem-vinda no que diz respeito a uma das partes interessadas, a mídia jornalística. Quer dizer, não será saudada com foguetório pelas redações acostumadas a trabalhar com retalhos e insinuações, loucas para ter o mais rápido possível uma matéria que “venda”. Servirá, ao contrário, para cortar as asas dos fiteiros, na acepção neológica que Alberto Dines deu ao adjetivo.

Em outras palavras, ficará mais difícil forçar a barra para extrair de diálogos fragmentários supostas evidências de escândalos. Ao mesmo tempo, é bom ter em mente que se indícios toscos decorrem do chamado trabalho porco, quase sempre o verdadeiro escândalo é muito mais grave e menos perceptível. Os jornalistas geralmente “condenam” (em suas cabeças e em sua prática) com pouco, e exatamente porque a investigação é rala deixam de atinar com problemas muito mais cabeludos.

Esto funciona así

Outra vantagem das transcrições com início, meio e fim é permitir que se façam estudos sobre o comportamento dos corruptos. Um professor, Fernando Jiménez, e um jornalista, Vicente Carbona, ambos espanhóis, fizeram uma pesquisa dessa natureza, publicada na revista mexicana Letras Libres (o PDF pode ser baixado aqui; texto em espanhol).

O estudo se chama “’Esto funciona así’: Anatomia de la corrupción em España”. Jiménez e Carbona usaram transcrições para identificar padrões de comportamento de corruptos espanhóis. Num boxe, assinalam seis “elementos do imaginário”:

1.      Os frutos da corrupção: o bolso e outros fins. O que se procura com a transação corrupta? Desde logo, o enriquecimento pessoal, mas em muitos casos existe alguma outra finalidade.

2.      “Ter a chave”: o cargo público como oportunidade. Que conceito de cargo público têm essas pessoas? O “serviço público” se apresenta como oportunidade que lhes permite “ter a chave” para satisfazer determinados interesses particulares.

2B. “Se você não faz, é um imbecil”. O conceito de cargo público como oportunidade tem um corolário – se você não aproveita a oportunidade, é um imbecil (gilipollas, no original; o termo é usado literalmente nas gravações).

3.      “Além do mais, não lhe acontecerá nada”. A ideia de impunidade. Assegura-se ao político que as consequências de participar de atividades delituosas são perfeitamente dribláveis. Os intermediários, ou brokers da corrupção, se encarregarão de assegurá-lo.

4.      “Mas não ferre o pessoal”. É condição para se aproveitar de cargo público que se jogue com certa prudência. Se alguém parte com uma perspectiva absolutamente predatória, seguramente não permanecerá muito tempo no cargo. Por isso, convém ampliar a lista dos favorecidos pelas transações corruptas.

5.      ”A coisa funciona assim”/ “é o sistema”. O quinto elemento persuasivo nessas conversas transmite a ideia da inevitabilidade da corrupção. Passa-se a idéia de que seria estranho ter expectativa diferente.

Com as devidas adaptações culturais e adequada historicização, o resumo se aplica por aqui. Afinal, é conceito arraigado a famosa “herança ibérica”. Mas certamente um estudo dessa natureza feito na terra da jabuticaba revelaria exuberante e impiedosa criatividade. No fundo, tudo condensável no berro que trinta anos atrás o grande João Rath costumava lançar na redação do Globo, pondo-se no lugar dos malandros: “E eu?! E eu!?”