Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A foto não é o que sugere. E o texto perdeu o foco.

O Estadão de ontem trouxe na primeira página uma foto que ocupa mais de 1/4 do espaço disponível. Com o crédito de Celso Júnior, da Agência Estado, mostra o presidente da República e outros no palanque do Dia da Pátria.

O que se vê em primeiro plano, muito mais do que Lula e os seus convidados, é uma imensa bandeira negra com a inscrição “impeachment”, em diagonal, sobre fundo verde-amarelo, imitando a faixa presidencial.

A impressão que se tem é que o protesto ocorreu a um palmo do nariz do presidente. A legenda corrobora: “Enquanto Lula assiste ao desfile em Brasília, manifestante agita bandeira pelo impeachment”. A rigor, nenhum manifestante aparece; só o pano.

Na matéria se entende por quê: “A arquibancada em frente ao palanque… estava ocupada por dezenas de petistas… Os contras estavam mais afastados… Alguns levaram cartazes e bandeiras pretas…”

Do modo como saiu, porém, a foto sugere não só que a bandeira estava próxima de Lula, mas que o protesto tinha sido um fato marcante do 7 de Setembro federal.

A assessoria de Imprensa do governo retrucou com um e-mail zangado, que o jornal publica hoje sob o título “Planalto contesta foto do Estado”. Ao lado, repete a imagem da véspera sobre uma legenda que por sua vez repete o erro do texto original: “Lula assiste ao desfile; manifestante pede impeachment”.

O e-mail, assinado por José Ramos Filho, secretário adjunto de Imprensa, argumenta, em essência, que “o uso de lentes especiais e a edição da fotografia” desinformaram o leitor, “induzindo-o a imaginar uma cena que não ocorreu”, porque a bandeira, que se encontrava em outra área, a 60 metros de distância do espaço das autoridades, “foi superdimensionada pelo recurso fotográfico utilizado”.

“Salvo melhor juízo”

A cena ocorreu, sim. Em algum lugar nas imediações da área reservada ao desfile, havia uma bandeira negra com o termo impeachment — e o alvo não era propriamente o presidente nigeriano Olusegun Obasanjo, à direita de Lula.

Mas a resposta do jornal foi infeliz. “Salvo melhor juízo”, ironiza, “esta é a primeira vez na história da imprensa em que se tenta desmentir uma foto”.

“Desmentir” é palavra errada. Tão errada como a frase “uma cena que não ocorreu”. O que o Planalto fez foi contestar a impressão que a foto deixou. E a contestação procede.

Menos mal que o redator do Estadão teve o cuidado de se proteger com um “salvo melhor juízo”. Porque algumas das mais famosas fotos do século 20 foram “desmentidas”.

Como se ‘desmente’ algo por não ser o que parece, o que se aplica à foto do Estado.

É o caso da mais celébre imagem da guerra civil na Espanha, de 1936 a 1939. Em 1937, o legendário Robert Capa clicou um soldado republicano sob o impacto de um tiro: ele aparece de braços abertos, o tronco para trás, o fuzil solto no ar.

Capa a intitulou “A morte de um militante legalista”. Mas ele nunca dissipou a suspeita de que tenha sido encenada: se o militante legalista morreu, diziam os acusadores, não foi naquela ocasião. (Capa morreu em 1954 na guerra da Indochina.)

Numa ilha do Pacífico e na capital do Reich

Comprovadamente coreografadas foram duas outras imagens, divulgadas como instantâneos de momentos definidores da segunda grande guerra.

De uma se diz que é a imagem mais reproduzida na história do fotojornalismo. Feita pelo americano Joe Rosenthal em fevereiro de 1945, mostra um grupo de fuzileiros navais hasteando a bandeira americana na ilhota de Iwo Jima, no Pacífico.

A composição é uma obra genial. Tudo, porém, posado — revelaram alguns dos seus atores.

A outra foto encenada foi a do soldado russo, cravando a bandeira da foice e do martelo no topo do Reichstag (o parlamento alemão), como se acabasse de chegar lá, numa Berlim em ruinas.

O autor, o ucraniano Yevgeni Khaldei, tinha até trazido a bandeira da União Soviética para esse fim. Fez várias tentativas. A que que valeu é posterior à tomada da capital alemã pelo Exército Vermelho.

Portanto, pode-se fazer imagens jornalísticas fraudulentas de muitas maneiras, com esse ou aquele objetivo. Ou pode-se editorializar, na edição, imagens honestas.

No episódio do 7 de Setembro, melhor teria feito o Estado se publicasse hoje a imagem original, sem cortes, com a sua ficha técnica completa: onde foi feita exatamente, com que câmara e lente, e sob quais parâmetros técnicos (abertura, velocidade, ângulo de inclinação da máquina e por aí).

Menos para responder ao Planalto do que para o leitor julgar por si mesmo. Ética jornalística também é isso.

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