Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A inexplicada reforma Frankenstein


Com ‘sua excelência, o fato’, como dizia o grande frasista Ulysses Guimarães, não se discute.


 


Por isso, seria irrealista esperar que as incertezas da reforma política – que tem tudo a ver com o meu, o seu, o nosso voto – competissem vantajosamente por espaço no noticiário com a ‘comédia bovina’, na apropriada expressão usada pela Folha ao comentar as ruminações do senador Renan Calheiros e das suas vaquinhas de presépio no Conselho de Ética da casa para salvar o seu couro – descontada a área já ocupada nos diários pelos vavás da vida e até mesmo pela ministra relaxada e gozadora.


 


É uma pena.


 


Porque, depois de vagar 10 anos pelo Congresso, finalmente adentrou o plenário da Câmara esta semana a reforma política – cujos pontos essenciais são as mudanças na forma de eleger vereadores, deputados estaduais e federais; no sistema de financiamento das campanhas para esses e todos os demais cargos que se preenchem nas urnas; e nas regras sobre o ir-e-vir dos políticos pelos partidos.


  


E deu-se algo que a imprensa noticiou mas não explicou a fundo. Trata-se da raridade que foi a guinada da maioria dos deputados, ao longo de uma única jornada, da posição favorável ao projeto de sistema eleitoral aprovado três anos atrás por uma comissão especial para… para uma posição da qual só se sabe que tem tudo para complicar a vida do eleitor e a política brasileira.


 


A comissão tinha resolvido aposentar o modelo eleitoral brasileiro de pleitos proporcionais com listas aberta – só compartilhado no mundo inteiro por um punhado de países. É o esquema familiar pelo qual você vota em pessoas (ou em siglas) para vereador e deputado, elegendo-se, em cada partido, tantos candidatos quantos indicarem os cálculos para a distribuição proporcional das cadeiras.


 


Por esse sistema, agravado pelos efeitos perversos da coligações partidárias, apenas uma minoria de candidatos se elege com os próprios votos. Ou seja, a norma é o que os cientistas políticos chamam de evasão de votos: o eleitor escolhe o candidato A do partido X, mas – sem saber – acaba elegendo o candidato B, do mesmo partido, ou do partido Y, a ele coligado. Isso tem a ver com a distribuição das sobras e dos votos em legenda.


 


Logicamente, por essas regras o principal adversário de cada candidato não é o outro candidato de outra agremiação, mas o companheiro de partido. Os custos das campanhas, em consequência, são estratosféricos. Resultado: para os financiadores de candidatos, uma terra dadivosa e boa em que, nela se plantando, tudo dá – principalmente a dependência dos eleitos em relação a eles, os doadores.


 


O modelo também torna impossível o financiamento público exclusivo das campanhas, que pressupõe a transferência de recursos não para os candidatos, mas para os partidos.


 


Daí a comissão ter se resolvido pela implantação do sistema de listas fechadas – como na esmagadora maioria dos países que adotam o sistema proporcional. Sabendo, naturalmente, quais os candidatos que compõem, ordenados, as listas partidárias, o eleitor passa a votar apenas em partidos.


 


Apurados os votos e calculado o quociente eleitoral, se verifica que um partido teve sufrágios suficientes para eleger, por exemplo, cinco candidatos. Se elegem, em consequência, os cinco primeiros da lista pré-ordenada. Se a votação der para dez, serão os dez primeiros – e assim por diante.


 


O dia do vamos ver na Câmara, quarta-feira passada, amanheceu com o voto em lista fechada pronto para emplacar, com apoio que ía do PT ao antigo PFL, passando pelo PMDB -embora não houvesse unanimidade a respeito em nenhum dos principais partidos. O certo é que, mesmo no dividido PSDB, a proposta tinha mais simpatizantes nos comandos e lideranças partidárias do que entre os comandados e liderados.


 


E, muito importante: seria uma das raras deliberações legislativas sem que o governo orientasse o voto da sua base numa ou em outra direção.


 


Para encurtar a história, a horas tantas a bancada do PSDB – cujo programa prevê todo um outro sistema, costumeiramente chamado distrital misto (como na Alemanha) se reuniu e, por vasta maioria, aprovou o voto fechado contra a lista fechada.


 


A partir daí produziu-se um surpreendente efeito dominó que a mídia registrou, mas ainda não explicou satisfatoriamente. O relator da comissão da reforma, Ronaldo Caiado, resumiu bem a ópera: ‘O projeto estava a 100 por hora quando bateu num quebra-mola que ninguém viu antes.’


 


E a imprensa desperdiçou uma dessas oportunidades excepcionais para contar uma história diferente no setor, pois nesse dia os políticos fizeram política pelas próprias mãos, em vez de dizer amém aos líderes ou ao presidente de turno.


 


[Os jornais não explicaram nem por que, no PT, o reduto dos contrários à lista fechada era a chamada ‘bancada martista’.] 


 


O fato é que, ao cair a noite, o jogo tinha virado a ponto de os defensores da mudança perceberem que, se fosse a votos, seria rejeitada. E adiaram a decisão para a próxima terça-feira.


 


Cobertura superficial – e olhe lá


 


Tendo ficado claro que a proposta original subiu ao telhado, como virou moda dizer, e dificilmente dela descerá do jeito que era, os proponentes começaram a imaginar alternativas que não fossem nem a manutenção das atuais regras do jogo – por incompatíveis com o financiamento público das campanhas -, nem, muito menos, a adoção do voto distrital, muito pouco representativo da diversidade de interesses de uma sociedade heterogênea como a nossa.


 


Daí surgiu a idéia de uma espécie de lista fechada, mas nem tanto. O eleitor poderia: ou votar na lista partidária, mas alterando a ordem dos candidatos; ou votar na lista como foi definida e, se quisesse votar uma segunda vez, num candidato individual, como sempre fez.


 


A imprensa mencionou, de passagem, que os próprios políticos não sabiam como montar esse quebra-cabeça eleitoral que o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, chamou – coberto de razão, a meu ver – ‘reforma Frankenstein’.


 


Mas, de novo, os jornais se limitaram a arranhar a superfície do problema – e olhe lá.


 


Não se sabe de algum repórter que tenha tido a iniciativa, que não seria nenhum bicho de sete cabeças, de aprofundar o assunto junto ao cientista político brasileiro que entende de sistemas eleitorais como o doutor Adib Jatene entende de cardiologia – o professor Jairo Marconi Nicolau, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).


 


Se o tivessem feito, ficariam sabendo e poderiam informar os seus leitores, entre outras coisas, do seguinte:


 


Além da lista aberta, como a que vigora no Brasil, e da lista fechada, como a comissão queria que vigorasse, existem a lista livre e a lista flexível.


 


A primeira, utilizada na Suiça, dá o eleitor duas opções: votar só num partido ou em diversos candidatos – tantos quantas as cadeiras em disputa na sua cidade ou Estado. Em São Paulo, por exemplo, o cidadão – imaginem! – poderia votar em até 70 nomes para deputado federal, desde que da mesma lista.


 


Os votos recebidos pelos candidatos individuais de cada lista são somados. No caso dos votos dados apenas ao partido, é como se cada candidato da lista tivesse recebido um voto. O total indicará quantas cadeiras caberão a cada partido. Elegem-se os mais votados. Como no exemplo anterior, se forem cinco as cadeiras, serão os cinco mais votados.


 


Já na lista flexível – que mais se aproxima da alternativa agora posta em discussão pelos políticos brasileiros – os eleitores podem votar apenas no partido, endossando assim a respectiva lista. Ou podem sufragar a lista e, opcionalmente, determinados candidatos (como na Bélgica, Dinamarca, Grécia e Holanda), ou ainda podem sufragar a lista, mas mudando nela a posição dos candidatos (como na Áustria, Noruega e Suécia).


 


O mecanismo para distribuir as cadeiras pelos partidos compreende uma complexa sucessão de etapas, das quais se falará, se for o caso, em outro texto.


 


O importante do modelo belga de lista flexível, ensina Jairo Nicolau, é que ‘embora cerca de metade dos eleitores vote em candidatos, raramente há alteração na ordem dos candidatos tal como definida pelos partidos: nas eleições ocorridas desde 1919, apenas 0,6% dos deputados perderiam seus mandato caso o voto preferencial [em candidatos individuais] não fosse permitido’.


 


Se isso serve de indício, a flexibilização do sistema pode dar ao eleitor uma sensação de poder sobre os políticos, mas, bem feitas as contas, o complicador muda quase nada na composição das câmaras e assembléias legislativas, quando determinada apenas pelo voto em lista fechada, como previa a proposta da comissão de reforma política.


 


P.S. Acrescentado às 15h55 de 16/6


 


Só depois de redigir este artigo, vi que a Folha de S.Paulo dedicou hoje a seção ‘Tendências / Debates’ à reforma eleitoral, perguntando: ‘A Câmara dos Deputados deve aprovar o voto em lista fechada para eleições proporcionais?’


 


Não, respondeu o deputado tucano José Anibal. Assinantes do jornal ou do UOL podem acessar o texto no link http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200708.htm


 


Sim, respondeu o deputado petista Luiz Sérgio. Está em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200709.htm


 


Menos mal para o jornal.


 


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