Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia diante de um desafio inédito

Seja qual for o resultado das eleições de 2006 – nos planos nacional e estadual –, a mídia brasileira, como o país, está diante de um desafio inédito.


Ela é cada vez mais uma instância não eleita de poder, num momento histórico em que os poderes eleitos ou instituídos revelam fraquezas alarmantes.


Existe hoje no Brasil uma combinação de apego proclamado à democracia reconquistada, interesse na manutenção do statu quo – não se leia a expressão em sentido restrito, como empenho apenas do establishment, mas em sentido muito amplo, que inclui ponderáveis camadas beneficiadas de algum modo por políticas públicas, mais arcaicas ou mais modernas – e uma certa tradição de falsa acomodação que permite empurrar com a barriga o desfecho político dos conflitos.


Fala-se aqui e ali em golpe, mas as principais forças políticas não pretendem, até onde a vista alcança, aventurar-se fora dos marcos institucionais vigentes.


O país não está livre de traumas


Isso não quer dizer que o país está livre de traumas.


Primeiro, porque os protagonistas podem perder o controle dos acontecimentos e descobrir-se a reboque deles.


Segundo, porque há forças poderosas não exatamente alheias ao jogo político praticado, mas total ou parcialmente indiferentes às regras democráticas desse jogo.


Exemplo recente foi dado pela organização criminosa PCC, que em maio conseguiu articular no estado de São Paulo um ataque contra instituições e agentes públicos, e alvos privados, sem antecedentes não apenas no Brasil, mas em qualquer país, exceto a Itália de Totò Riina e a Colômbia de Pablo Escobar. (O processo eleitoral suspendeu temporariamente o confronto entre o PCC e as autoridades paulistas. Ambos os lados esperam os resultados das urnas e subseqüentes definições políticas para decidir que rumo irão tomar, e esses rumos entrarão inexoravelmente em choque.)


Há outras forças, algumas de origem inteiramente distinta da do PCC, que não são solidárias com as regras da democracia brasileira. É o caso dos partidos que tradicionalmente aceitam alugar seus votos para haurir vantagens como integrantes do governismo, seja ele qual for. É o caso de movimentos como os de ruralistas armados e os de militantes sem-terra, que não hesitam em se colocar à margem da lei – há ruralistas acostumados a manipulá-la ou contorná-la em seu benefício, há sem-terra que a vêem como instrumento de dominação e opressão social, embora em ambos os casos esses grupos tenham relações com todos os níveis de governo.


Terceiro, o Brasil se vê hoje desprovido de estruturas partidárias minimamente sólidas e saudáveis. Os principais partidos, PT, PMDB, PSDB e PFL – onde há herdeiros da luta contra a ditadura, durante a qual estiveram marginalizados do poder e de suas benesses, e herdeiros da ditadura e de seus benefícios –, são ainda máquinas eleitorais, mas não têm consistência programática e estão todos comprometidos com corrupção ativa e passiva, no presente e no passado, em instâncias de poder federais, estaduais e municipais.


A corrupção é inimiga da democracia, embora conviva com ela, não importa quão dispostas estejam celebridades que se consideram virtuosas a tolerar que seus representantes políticos coloquem a mão na massa.


Quarto, o processo eleitoral pós-ditadura fracassou em vários e cruciais aspectos. Isso não é reconhecido pelos que vivem dele ou nele depositam interesses pessoais, sociais, negociais ou funcionais. Mas fracassou.


O financiamento das campanhas é reiteradamente fraudulento e isso parece ao presidente da República, autoridade máxima investida de grande poder e dos símbolos do Estado, legítimo por ser prática generalizada. Quase um direito consuetudinário.


A propaganda obrigatória para os cargos majoritários, veiculada por meios de radiodifusão, a que alcança parcelas mais numerosas do povo, torna-se cada vez mais farsesca, desde que substitui a política propriamente dita por técnicas de publicidade e de falso jornalismo. E simplesmente não permite, por limitações intrínsecas à sua própria natureza, o confronto de idéias (idéias, não slogans) de candidatos a mandatos legislativos. Os meios de comunicação impressos não têm como abrigar tal confronto em condições formalmente – mas o formalismo aí é indispensável – eqüitativas.


Nas eleições majoritárias, candidatos a vice e a suplente são eleitos sem receber um único voto. Senadores costumam entregar parte de seus mandatos a tais suplentes, muitas vezes financiadores ou facilitadores de suas campanhas.


Tudo isso frustra a expectativa de uma renovação animadora do Congresso e das Assembléias Legislativas. Severinos e Valdemares retornarão impávidos porque as estruturas que os nutriram estão intactas.


Quinto, o país está sob ameaça de perder a esperança que alimentou até aqui a paciência do povo (não confundir com a resignação aparentemente característica do mundo rural). Ou melhor, numa leitura à la Tocqueville, ainda não houve melhora suficiente para gerar expectativas mais ambiciosas e ímpetos mais vigorosos. Essa esperança é a de ver chegar o famoso futuro, e nem seria para as gerações presentes, mas já para as vindouras.


A desilusão, para mencionar alguns itens mais relevantes, poderá vir com a constatação de que:


A) A desigualdade se reduz muito lentamente levando-se em conta o ponto de partida;


B) A chamada classe média continua a ser uma fatia relativamente estreita da população – e espremida por dificuldades econômicas, sociais e urbanísticas;


C) O país perde na implacável competição internacional porque não consegue reformar o Estado – não consegue derrotar interesses corporativos incrustados no Estado – e não consegue melhorar a qualidade do ensino, quase universalizado, no ritmo e na proporção necessários para dar embasamento humano a novos saltos de produtividade;


D) O contexto latino-americano, onde se armam confrontações potencialmente graves, tende a exigir sacrifícios em incontornáveis gastos públicos com preparação militar, não para a guerra, mas para a imposição, caso necessário, da paz.


Colocar-se a serviço da democracia


Neste quadro, os jornalistas que têm brio profissional, interessados em dar uma contribuição para melhorar o país, estão obrigados a arquivar a arrogância, a prepotência diante dos fracos ou frágeis e a imemorial leniência ante os poderosos, e a colocar-se humildemente, escrupulosamente, a serviço da democracia.


Toda a mídia, sem eliminar as divergências de percepção, opinião e interesses – ao contrário, dando-lhes relevo, para permitir e estimular o debate de idéias –, deveria convergir agora na compreensão de seu papel crítico e num desempenho à altura dessa compreensão.


Haverá quem ceda à tentação do golpismo, da chicana, da manipulação. Mas, se prevalecer um espírito coletivo de lucidez, de respeito a regras básicas de boa e honesta informação, como até aqui, apesar dos pesares (e não são poucos), as falhas de cada veículo que delas se afastar serão denunciadas ao público e deste partirão, cedo ou tarde, sanções inibitórias e corretivas.


* * *


A mídia não gosta de falar desse serviço público essencial chamado mídia, mas cada vez mais lhe é impossível contornar totalmente essa obrigação.


Um dos sintomas desse novo estado de coisas é o número crescente de referências ao Observatório da Imprensa em veículos de grande penetração. Outro é a batalha política travada nas páginas de comentário deste site por internautas que já o vêem como uma mídia importante. Algo que ele, com 15 mil visitantes únicos por dia, em média, de fato é.


Adendo em 28 de setembro, 12 horas. Do leitor José de Souza Castro:


‘´Nas eleições majoritárias, candidatos a vice e a suplente são eleitos sem receber um único voto. Senadores costumam entregar parte de seus mandatos a tais suplentes, muitas vezes financiadores ou facilitadores de suas campanhas´.


É o caso do carioca Wellington Salgado de Oliveira, dono da Universo (Universidade Salgado de Oliveira), que se tornou senador por Minas, onde era um desconhecido, ao assumir a vaga no lugar de Hélio Costa, quando este foi nomeado ministro das Comunicações no atual governo. É o que pode acontecer, se o ex-ministro dos Transportes Eliseu Resende for eleito agora senador. Seu primeiro suplente, conforme alertei em artigo no blog www.tamoscomraiva.blogger.com.br, é o atual vice-governador de Minas e presidente da Confederação Nacional de Transportes, Clésio Andrade, que foi sócio da SMP&B e que deixou em seu lugar Marcos Valério (o do valerioduto), quando saiu para candidatar-se a vice do então candidato à reeleição ao governo de Minas Eduardo Azeredo. Lá no blog eu traço um perfil do ‘senador’ Clésio (pois Eliseu Resende, hoje com 77 anos, não deixará o suplente a ver navios, nos próximos oito anos). Aliás, o último programa eleitoral gratuito no rádio e na televisão de Newton Cardoso, principal concorrente de Eliseu, deu dois minutos de direito de resposta, a mando do TRE-MG, pela associação considerada ofensiva de Clésio com o ´homem da mala preta´.’


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