Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A pergunta certa sobre o Bolsa-Família

Se já disse, repito: é pena que o jornal Valor seja lido predominantemente pelo público interessado em economia e negócios – o prato de resistência desse matutino de propriedade conjunta dos grupos Globo e Folha.


Pena porque o noticiário político do jornal, que ocupa um espaço menor que o dos jornalões, por força da natureza da publicação, deles se distingue pelo esforço rotineiro de garimpar os bastidores dos fatos ostensivos, em companhia de comentários interpretativos geralmente de boa qualidade.


Na semana anterior à eleição no PT, por exemplo, o Valor foi atrás do que os jornais convencionais não se deram ao trabalho de garimpar: o desenrolar da campanha e as tendências nas entranhas do partido – nos Estados e municípios, que é afinal onde está a falada militância.


Agora, o Valor mais uma vez foi ali onde está a notícia – e com uma pauta original. O gancho, o segundo aniversário do Bolsa-Família, o programa de renda mínima que o governo Lula conseguiu estruturar, depois de muitas cabeçadas, a partir das chamadas políticas compensatórias criadas na gestão Fernando Henrique, em especial o Bolsa-Escola.


A originalidade da pauta consistiu em procurar – a partir de histórias de vida nos grotões do país e junto a especialistas e fontes institucionais – respostas, não à pergunta óbvia “Como vai o Bolsa-Família?”, mas “Que diferença o Bolsa-Família está fazendo para diminuir a pobreza no Brasil?”


O resultado do competente trabalho jornalístico do repórter Ricardo Balthazar ocupa toda a última página dos primeiros cadernos das edições de ontem e hoje, infelizmente apenas disponíveis na internet para assinantes.


E a que conclusões chegou Balthazar?


A primeira, como está no título da matéria de ontem, é que o “Bolsa-Família avança sem abater a miséria”. Depois de descrever com riqueza de detalhes que rendem boa leitura o caso de uma beneficiária do programa, Maria José dos Santos, de Poço Redondo, Sergipe, cuja vida “melhorou um pouco nos últimos tempos”, o repórter cita o diagnóstico da especialista Lena Lavinas, do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro:


“Os pobres estão comendo um pouco melhor, mas não estão indo além disso. Para diminuir a pobreza e a desigualdade, é preciso criar oportunidades e ampliar a oferta de serviços para essas pessoas.”


Balthazar procurou também o proverbial “outro lado”, no caso o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias:


“Nosso maior desafio agora é articular o Bolsa-Família com políticas de desenvolvimento local e geração de renda. O país tem uma dívida social acumulada que nos envergonha, e resgatá-la não será um processo simples e rápido.”


O repórter não esqueceu de mencionar os elogios rasgados que o Bolsa-Família recebeu do Banco Mundial (cujos técnicos o consideram sem igual no mundo), nem de lembrar que a instituição emprestou mais de meio milhão de dólares para financiar e monitorar o programa.


Impacto ainda desconhecido


No Chile, onde existe um programa semelhante [o repórter não diz, mas se chama Chile Solidario], “assistentes sociais acompanham de perto a vida de cada um dos seus integrantes, oferecendo ajuda para que eles mudem de vida”, compara Balthazar.


O Chile Solidario atinge “pouco mais de 200 mil famílias”, fica-se sabendo. O Bolsa-Família, se lê em outro lugar do texto, 8 milhões de famílias.


O importante é que “o impacto do Bolsa-Família ainda é desconhecido”. Falta um acompanhamento mais constante dos beneficiários, enquanto iniciativas de caráter complementar, como o da compra e distribuição de alimentos produzidos pelos pequenos agricultores, atendem a poucas famílias.


Deprimente, mesmo, é a matéria de hoje sobre os efeitos do Bolsa-Família sobre a educação e saúde das famílias paupérrimas. Com o exemplo de uma escola num povoado da periferia de Paulo Afonso, Bahia, no primeiro caso, e do acesso ao posto de saúde de São José da Tapera, Alagoas, no segundo.


Em síntese, o desempenho dos alunos das famílias beneficiadas é consistentemente inferior aos dos demais. “Eles estão na escola e não aprendem”, lamenta a diretora do colégio. Os pais não acompanham o estudo dos filhos. “Só vêm [aqui] por causa do dinheiro”, diz.


Comentário da educadora, Azuete Fogaça, da Universidade Federal de Juiz de Fora: “Não há boa intenção que resista nesse ambiente. A escola para a qual essas crianças estão indo é a pior possível e não tem condições de colaborar de fato para que elas saiam da pobreza quando se formarem.”


Reforça Lena Lavinas, da UFF: “O impacto [dos programas de transferência de renda vinculados à frequência escolar sobre a melhoria do aprendizado] é nulo.”


Pelo menos para uma coisa o Bolsa-Família serve, na área do ensino. Antes, só 19% das escolas repassavam ao governo informações sobre a frequência dos alunos. Hoje, são 80%.


Na área da saúde, uma pesquisa estrangeira com o Bolsa-Alimentação concluiu que “o programa não ampliou o acesso da população aos serviços”. Para saber por que, a reportagem se detém no caso particular de Joselma dos Santos, mãe de dois filhos e grávida de outro:


“Para chegar ao posto de saúde mais próximo, ela levou seis horas andando a pé. Queria um remédio para tonturas. Estava em falta.”


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