Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A questão racial

O professor da Faculdade de Economia e Administração da UFRJ Marcelo Paixão analisa a mídia de um ângulo pragmático, de quem aprendeu a se fazer ouvir: ele compra ingresso na esfera pública com pesquisas. “Dialogo com a imprensa porque faço pesquisas com indicadores sociais, microdados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE), com o Censo, as pesquisas de mortalidade”. Paixão inovou na semana passada ao mostrar numa pesquisa que se os brancos do Brasil formassem um país, ele estaria em 44° lugar no IDH, e um Brasil dos negros estaria na 105ª posição. Ele detectou uma mudança de posição da mídia em face da questão racial. Até um determinado momento, os principais veículos de comunicação compuseram uma unanimidade em face do diagnóstico das profundas desigualdades brasileiras. Quando foi estabelecida a política de cotas para afro-brasileiros nas universidades, formou-se novamente um consenso, mas contrário à medida.


Sem entrar na discussão das vantagens e desvantagens do sistema de cotas, essa capacidade de transitar em bloco de um consenso a outro talvez possa servir para uma análise antropológica das elites brasileiras. Na opinião do professor da UFRJ, o Estatuto da Igualdade Racial causará polêmica porque dispõe sobre alocação de recursos. Ele o compara a outras legislações, como os estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso.


Marcelo Paixão considera positivo o saldo do debate até aqui porque deu visibilidade a um tema que durante todo o século XX foi varrido para baixo do tapete. Mas acha que a discussão está só no começo.


Eis a entrevista que ele deu ao Observatório da Imprensa.


Como o tema das relações raciais conquistou seu lugar no debate?


Marcelo Paixão – Ao longo dos últimos dez anos houve uma abertura para o debate de determinadas questões que diziam respeito à sociedade brasileira, principalmente o tema das desigualdades sociais, da pobreza, da miséria. Esse debate passou a ser feito de uma forma mais constante e o desenvolvimento dele, ao longo dos últimos anos, foi nos levando progressivamente a uma análise mais qualitativa sobre quais eram os determinantes, qual era o perfil desses problemas sociais. Paulatinamente nós fomos vendo que essas desigualdades, a pobreza e a miséria no Brasil poderiam ser analisadas dentro de seu recorte etário, do recorte de relações de gênero, do recorte regional, até, finalmente, vermos que esse debate não poderia ser feito sem levar em consideração também os indicadores sociais da população brasileira desagregada pelos grupos de raça/cor. E isso implicou também um avanço do debate no país. A mídia acabou se posicionando a respeito, em geral concordando com a idéia de que indicadores deveriam ser vistos de forma um pouco mais crítica.


O senhor detectou uma mudança desde que foram propostas as cotas.


M.P. – Houve, sim, talvez de dois anos para cá, uma inflexão nessa postura da mídia em relação ao tema porque houve o debate sobre as cotas. E ali, ao contrário de quando se fazia uma análise dos indicadores das pesquisas em geral, a posição da mídia foi majoritariamente contra. Os editoriais dos principais órgãos de imprensa foram bastante evidentes, nesse sentido – o Globo, a Folha, a Veja, o Jornal do Brasil, todos eles se manifestaram bastante contrários a essa medida. E isso, de alguma forma, também criou abertura para que nesse debate novas opiniões acabassem sendo mobilizadas. Geralmente tendiam a não ser tão críticas em relação ao padrão brasileiro de relações raciais, ao contrário, tendiam a valorizá-lo. O debate deixou de ser colocado apenas por uma das opiniões, que seriam as mais críticas, e passou a ter um caráter mais de disputa entre aqueles que tinham posições mais críticas e os que tinham posições mais favoráveis ao que seria o nosso padrão de contatos inter-raciais.


Que balanço o senhor faz?


M.P. – Mesmo considerando essa última inflexão, eu considero que o saldo é muito positivo, dada a maneira pela qual o Brasil, ao longo do século XX, veio tratando o tema das relações raciais. Esse era um tema praticamente maldito, banido, posto para debaixo do tapete, e, mais recentemente, tivemos a possibilidade de trazer esse debate para o espaço público. Mesmo o fato de outras opiniões estarem sendo mobilizadas, até contrárias às minhas, estarem se apresentando no espaço público, se a grande reclamação que podia ser feita era que esse tema era maldito e o debate não era feito, houve uma mudança de qualidade. A mídia, ao mesmo tempo que pauta, é pautada. As mudanças que ocorrem na sociedade brasileira em parte são provenientes da mídia, mas em parte são provenientes da própria sociedade, que afinal de contas tem contradições que são profundas, o que às vezes acaba tensionando a mídia, pela própria natureza das questões colocadas. E a questão racial é uma delas. Não sei como será o desenho futuro dessa questão, como os editorialistas vão organizar esse debate daqui para a frente, mas vejo como um saldo inerentemente positivo porque houve a abertura para um debate que, num período anterior, simplesmente era inexistente.


O senhor concordaria com a idéia de que no tiroteio do dia-a-dia a mídia perde de vista uma dimensão mais histórica de certos fatos, como a discussão no Congresso do Estatuto da Igualdade Racial e o surgimento de uma televisão para o público negro, a TV da Gente?


M.P – Às vezes a realidade vai mudando de uma forma tão profunda que fica difícil fazer um acompanhamento de cada caso, de cada episódio. Acho também que num período mais recente, nos últimos quatro meses, o debate público no Brasil ficou um pouco seqüestrado por conta dessa crise política dos escândalos que vêm se sucedendo. Houve um determinado momento em que eles eram praticamente diários. Fica muito difícil propormos um debate mais de fundo, como o das relações raciais, que está encarnado na sociedade brasileira de uma forma que não é tão imediata, não é como uma eleição, por exemplo, que tem intensidade naquele momento, depois passa e não tem mais nada. É um debate que vai continuar ocorrendo durante muito tempo.


O senhor é otimista ou pessimista quanto ao futuro do debate?


M.P. – Acho que houve progresso. Mas não estou dizendo que o progresso existente é suficiente, dado o déficit de discussão que existe. Tivemos a possibilidade de discutir coisas que há dez anos atrás sequer iam para a notinha da página menos importante do jornal, ou do programa, ou do que for, mas, dado o tamanho dos abismos sociais, dos problemas, não tenho dúvida de que nós deveríamos ter hoje uma mídia muito mais pautada para esse tema do que vem ocorrendo. Mas fico com uma nota otimista. Penso que esse tema dentro de alguns anos irá ganhar mais importância e eu possa mudar de opinião a esse respeito e dizer: Desta vez, sim, o tema das relações raciais no Brasil está pautado de acordo com a importância que tem para a sociedade como um todo.


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