Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A tortura volta à cena

Sob o título ‘Apologia da tortura’, o advogado criminalista e ex-ministro José Carlos Dias publica hoje na Folha um artigo corajoso. O jornal também traz uma entrevista reveladora do repórter Mario Magalhães com o coronel e ex-ministro Jarbas Passarinho, ‘Ação contra o coronel é imitação da Argentina’.

Eis os textos, começando pela entrevista.

‘Com artigos na imprensa e discurso em ato público, o coronel reformado do Exército Jarbas Passarinho, 86, é apoiador destacado de um colega acusado de tortura durante o regime militar (1964-85), o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Como a Folha revelou no dia 10 de setembro, uma família de cinco pessoas aponta Ustra como autor de tortura física e psicológica em 1972 e 73, quando o militar dirigia em São Paulo a unidade local do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna).

Passarinho era o líder do governo no Senado quando a Lei de Anistia (1979) entrou em vigor. Em 1968, ministro do Trabalho, foi um dos signatários do Ato Institucional número 5, que endureceu o regime.

Em entrevista telefônica, o coronel disse que a ação visa repetir o que houve recentemente na Argentina, com a revogação das leis de anistia locais. Para Passarinho, a Justiça se sobrepõe à lei brasileira ao permitir o prosseguimento do processo contra Ustra.

FOLHA – O que o leva a apoiar Ustra?

JARBAS PASSARINHO – Ao ler o primeiro livro dele [‘Rompendo o Silêncio’, 1987], fiquei impressionado com a convicção de que ele não tinha praticado tortura. Tive um caso no Ministério da Educação: uma moça foi torturada, levei o caso ao presidente Médici [1969-74], que tomou providências imediatas. Foi o que me fez defender a idéia de que a tortura não era, como nos países totalitários, institucional. Era episódica.

FOLHA – O senhor, como Ustra, entende que o processo põe em questão a Lei de Anistia.

PASSARINHO – Também. No Exército, em curso de tática, a gente recebe uma missão. Ao analisá-la você verifica que há uma missão deduzida dentro daquela. A missão deduzida [do processo contra Ustra] é tentar fazer, ou imitar, o que o [o atual presidente Néstor] Kirchner fez na Argentina. A obediência devida só foi modificada no tribunal de Nuremberg [após a Segunda Guerra]. Os regulamentos militares dizem que o comandante é o único responsável por tudo na sua unidade. E Ustra, jovem major, recebeu uma missão.

FOLHA – Os ex-ditadores Jorge Rafael Videla (Argentina), Juan María Bordaberry (Uruguai) e Augusto Pinochet (Chile) têm enfrentado processos e prisões por crimes contra os direitos humanos. O que significa esse fenômeno para o Cone Sul?

PASSARINHO – Em primeiro lugar tem que fazer uma diferença de casos. No Brasil, nunca se comparou o país com a repressão argentina, com a repressão chilena. São coisas completamente diferentes. Talvez a história de ‘sangre caliente’ dos espanhóis responda por um pouco disso. Segundo você verifica que os nossos cinco generais [presidentes no regime militar]… O Castelo foi o primeiro que reagiu contra a tortura. Os outros já morreram. Você não pode pensar que pode acontecer a mesma coisa que aconteceu com Bordaberry e Videla.

FOLHA – O juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, não aceitou o argumento da defesa de Ustra, segundo a qual o processo não poderia prosseguir devido à Lei de Anistia.

PASSARINHO – O coronel não poderia sofrer mais qualquer tipo de punição penal. Tanto que ele está sendo processado numa área civil. Eles querem só caracterizá-lo como sendo o exemplo da tortura no regime.

FOLHA – O juiz cita na decisão que, para a ONU, crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis.

PASSARINHO – Isso é uma forma de tentar acabar com a Lei de Anistia. Será que não houve os crimes do outro lado? O juiz está se sobrepondo à Lei de Anistia. Foi uma anistia mútua. É preciso reconciliação. Para reconciliar, é preciso esquecer.

FOLHA – O Projeto Brasil: Nunca Mais estimou em mais de 40 os opositores mortos no Doi-Codi paulista na gestão de Ustra, além de mais de 500 denúncias de tortura.

PASSARINHO – Não tenho elementos para julgar, mas tenho elementos para dizer que, do lado de cá, foram 109 mortos.

FOLHA – A família Almeida-Teles [que processa o coronel], a atriz Bete Mendes e muitas outras pessoas afirmam ter sido torturadas pessoalmente por Ustra.

PASSARINHO – No movimento de 64, o chefe da 2ª Seção [Informações, do Exército] apreendeu uns documentos. Um era de aulas de capacitação do Partido Comunista. Outro era ‘Se Fores Preso, Camarada’. Dizia que ele [o preso] devia cuspir na cara, provocar a reação, e dizer a vida inteira que foi torturado. E isso existe com os advogados. Você vê o cara confessando na TV e 15 dias depois dizendo ao juiz que foi torturado.’

Agora, o artigo de José Carlos Dias.

‘O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-Codi, órgão de repressão do exército, durante os piores anos da ditadura militar, de 1971 a 1974, acaba de ser homenageado com um banquete por mais de 400 pessoas, das quais 200 oficiais de alta patente da reserva -entre eles, 70 generais. O fato é gravíssimo e alarmante.

O apoio foi provocado pela notícia de que Maria Amélia de Almeida Teles, César Augusto Teles, Janaína de Almeida Teles, Edson Luiz de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida, vítimas de tortura no DOI-Codi -além de também terem sido com eles encarcerados os filhos do casal, de cinco e quatro anos-, estão processando, perante o juízo cível, o referido coronel, com fim meramente declaratório, medida tomada em razão de estar o militar protegido pela Lei da Anistia.

Advoguei intensamente na defesa de perseguidos políticos durante aquele período, várias centenas de pessoas me confiaram mandato, outras causas defendi, por procuração outorgada pelo cônjuge ou pelos pais, na busca desesperada do ente querido que houvera desaparecido. Daí porque não só procurei defender vidas, na tutela de suas liberdades, como tentei salvá-las em vão, tornando-me patrono de memórias de seres, sem que muitas vezes se alcançasse sequer o atestado de óbito.

Afirmo em plena consciência, sob a fé do meu grau, como cidadão, como cristão, que me sinto no dever de testemunhar publicamente que o hoje coronel Ustra, vulgo dr. Tibiriçá, terá sido dos mais violentos repressores do regime militar imposto ao país, responsável pelas torturas e mortes no calabouço do DOI-Codi durante os quatro ou cinco anos em que foi lá comandante. Guardo em minha memória e em meu arquivo morto capítulos terríveis de tortura e de morte por mim testemunhados no compulsar de autos, nos relatos de testemunhas e de vítimas de violência.

Tenho a convicção, como advogado criminal há mais de 40 anos, de estar sujeito a processo por crime contra a honra. Assumirei o desagradável papel de réu, se este for o preço para que não permaneça em vergonhoso silêncio, calando-me diante do escândalo que o banquete representa. Usarei, se isso ocorrer, do instrumento da exceção da verdade para que as violências de Ustra possam, mais uma vez, ser submetidas ao crivo do Judiciário.

Causou-me surpresa ter notícia de que algumas pessoas que me pareciam dissociadas dos métodos de tortura lá estavam no rega-bofes, a homenagear e a solidarizar-se com o herói da tortura, coronel Ustra.

Resta uma lição para todos nós. A bravura das pessoas que resolveram confiar na Justiça para o reconhecimento meramente simbólico do que sofreram merece apoio, não com banquetes, mas com atos expressivos de solidariedade.

O direito que o preso tem ao tratamento digno, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e outras convenções internacionais, independe da gravidade dos fatos que o conduziu ao cárcere, sendo absolutamente injustificável o tratamento desumano e humilhante que lhe venha a ser infligido.

O coronel Ustra, premiado hoje como herói por seus camaradas, e que já foi adido militar no Uruguai durante o governo Sarney, encarna a lembrança mais terrível do período pavoroso que vivemos. Terá dito, no discurso pronunciado, que lutou pela democracia, quando, na realidade, emporcalhou com o sangue de suas vítimas a farda que devera honrar.’

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