Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bicudo critica clamor por mais repressão

Hélio Bicudo põe em epígrafe, no primeiro capítulo – “Esquadrões da morte” – de seu livro Minhas memórias, uma citação de Nelson Rodrigues, tirada do Jornal do Brasil (10 de março de 1969):


Estamos todos comprometidos. A imprensa, o rádio e a televisão, porque dão cobertura promocional às bestiais execuções. Nós é que cruzamos os braços. Os membros do Esquadrão da Morte são retocados, idealizados. Criou-se o mito selvagem e irresistível. Nem se pense que a matança seja impopular. Amigos meus, colegas, batem na tecla: ´São bandidos´. São bandidos, mas entregam-se, estão de braços levantados e, de qualquer forma, impotentes, indefesos. E, se matarmos, seremos piores do que eles e ainda mais bandidos. Ouço aqui e ali vozes repetindo: ´A polícia faz bem. Faz bem´.”


Essas palavras se aplicam ao que parte da mídia faz hoje. Uma parte importante, que fala para multidões. Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, Hélio Bicudo diz que teve grande ajuda do Estado de S. Paulo, onde trabalhava como editorialista, do Jornal da Tarde e do Pasquim quando enfrentou o Esquadrão da Morte da Polícia paulista. Sem a imprensa, não teria conseguido agir, talvez nem sobreviver. Mas Bicudo reconhece que a mídia deixou-se levar pelo discurso da repressão e a situação só fez piorar nesses quase quarenta anos.


No livro ele diz com toda clareza: “Tratava-se de um esquema que favorecia determinadas quadrilhas de drogas em detrimento de outras, assegurava redes de prostituição e adotada o sistema mafioso de venda de proteção. Os crimes atribuídos ao esquadrão chegavam a centenas – e nunca se soube quantos realmente foram”.


Esse panorama não mudou, só agravou-se. E diante do noticiário corrente o leitor médio não é informado dessa realidade. Entre outras razões, porque a principal fonte de informação dos repórteres são as autoridades policiais.


Bicudo acha que o caminho para superar este estado de coisas seria a imprensa “cobrir a atuação policial, o comportamento da Justiça, do Ministério Público e da Defensoria Pública e a posição dos advogados”. E “assumir uma linha de defesa da vida, em qualquer circunstância”.


O livro de Bicudo chega até os dias de hoje. Relata sua participação na comissão do PT que ouviu as denúncias de Paulo de Tarso Venceslau contra Roberto Teixeira, compadre de Lula, e sua empresa CPEM (Consultoria para Empresas e Municípios), contratada por prefeituras petistas. Faz um mea culpa por não ter acatado sugestão do hoje deputado federal José Eduardo Martins Cardoso, também integrante da comissão, para que se aprofundassem as investigações. Menciona em seguida o caso Lubeca, durante a gestão de Luíza Erundina na prefeitura de São Paulo: propina que teria sido paga por uma construtora e serviria para financiar a campanha presidencial de Lula. Sem querer “prejulgar ninguém”, medita: “Talvez tenha começado aí um perigoso procedimento de esconder, de colocar embaixo do tapete, coisas difíceis de serem explicadas, como se viu anos depois no caso mensalão, que veio à tona em 2005”.


Eis a entrevista, concedida em 16 de março.


Imprensa foi decisiva na luta contra o Esquadrão da Morte em 1970


Que importância teve a imprensa na luta contra o Esquadrão da Morte?


Hélio Bicudo – Primeiramente foi importante a sensibilidade dos Mesquitas [família proprietária do Estado de S. Paulo]. Quando voltei para São Paulo, com minha carreira já feita no interior, o Paulo Duarte, que já me conhecia, entrou em contato com o Júlio Neto – que foi meu colega de turma na Faculdade de Direito – e assim eu fui parar no Estadão, onde fiquei por mais de vinte anos.


A minha atuação nas investigações do Esquadrão da Morte da morte contou com a boa vontade do Estadão, com a boa relação que eu mantinha com os Mesquitas, e a própria linha legalista do jornal – que, apesar de ter apoiado o golpe, retirou o apoio depois dos rumos que o regime tomou, embora eles mantivessem boas relações com o regime. Tive uma entrevista de mais de uma hora com o então coronel Rubens Restel (hoje general reformado), muito ligado ao jornal, e ele próprio se convenceu de que era preciso apurar e levar os membros do esquadrão a responderem perante a Justiça por seus atos.


O coronel Restel inclusive saiu em minha defesa em uma reunião que ocorreu com o comandante do II Exército – eu soube disso através de um jornalista do Estadão ligado aos militares. Mas não obtive nenhum fruto dessa reunião, já que a determinação de se investigar o esquadrão sofria grande intervenção do governo federal para que as investigações não avançassem, e só obtive êxito quando cheguei ao Supremo Tribunal Federal.


O que teria acontecido se os jornais tivessem se omitido do dever de noticiar suas investigações?


H.B. – Sem o apoio da imprensa, especialmente o Estadão e o JT, eu não teria feito nada, pois a coisa se tornou pública, com editoriais e uma ampla cobertura no noticiário policial. E o assunto precisava ficar constantemente em evidência devido às pressões e ameaças que eu sofria. Até escrevi uma carta-testamento para ficar com o Júlio e publicar caso ocorresse alguma coisa comigo.


A Folha de S. Paulo teve alguma participação nessa retaguarda jornalística, outros jornais, a televisão?


H.B. – A Folha não tinha naquela época o status de hoje. O Estadão era o grande jornal de São Paulo. Talvez ela tenha noticiado alguma coisa a respeito do esquadrão. O Pasquim, sim, fez reportagens de capa, inclusive cheguei a ser entrevistado pelo Ziraldo e pelo Jaguar.


Apesar de ser um assunto de repercussão nacional, ele ficou mais restrito ao estado de São Paulo. Não me lembro de outros jornais, como o Jornal do Brasil e o Globo, terem noticiado o caso. A televisão não deu nada, nunca.


Violência policial piorou


Pessoas que trabalharam com o delegado Sérgio Fleury, o cabeça do bando, como o senhor diz no livro, estão na Polícia paulista até hoje. Simplesmente porque são da carreira. Mas o público não se dá conta disso.


H.B. – O esquadrão foi a ponta de lança de uma atuação policial, ligada à violência, que perdura até hoje e que piorou, inclusive. Matou-se muito em São Paulo no ano passado, na repressão às ações do PCC, e nada foi apurado até agora. Deveria haver uma investigação para saber quem matou os policiais e agentes penitenciários e processar os culpados, mas a polícia descambou para o lado da represália, matando pessoas que nem sequer tinham antecedentes criminais, eliminação pura e simples. Essa violência abre espaço para cada vez mais violência.


Existe uma conexão muito clara entre polícia violenta e polícia corrupta. Jorge da Silva disse isso num debate organizado pelo Observatório em janeiro. [Clique aqui para ler Debate busca raízes da violência; procurar entretítulo ‘Polícia violenta é polícia corrupta’.


H.B. – O próprio Esquadrão, na minha opinião, foi instituído inicialmente para aumentar a credibilidade da polícia perante a população, pois naquela época falava-se, a exemplo de hoje, no aumento da criminalidade. Então matavam-se pessoas presumidamente criminosas, mas que na grande maioria não o eram, só para erguer o nome da polícia.


O episódio da Castelinho [em fevereiro de 2002, doze homens acusados de ligação com o PCC foram mortos pela polícia num pedágio da rodovia Senador José Ermírio de Moraes, conhecida como Castelinho, perto de Sorocaba, interior paulista] remete a esse início do Esquadrão da Morte, quando afirmaram que “mataram doze bandidos que iriam cometer um crime”, mas absolutamente não o eram. O processo ainda vai levar mais uns dez, quinze anos, e isso significa impunidade, uma mola para a violência.


Existe liberdade de imprensa para tratar desses temas?


H.B. – Há liberdade em termos, já que a própria imprensa se autodetermina. A mídia mostra apenas casos pontuais, que mostram um determinado tipo de violência. E somente aqueles que remetem à classe média alta, ou que envolvem alguém conhecido nacionalmente se tornam ad eternum, como foram os homicídios da atriz Daniela Pérez e, recentemente, do menino João Hélio. A mídia procura mostrar um cenário à sociedade, e não entendo o porquê disso. A lei vigente no Código Penal não importa, e sim uma punição que não está no processo legal, que extrapola os limites do processo.


Contra o conceito de crime hediondo


O senhor é a favor de legislação específica para os chamados crimes hediondos?


H.B. – Sempre fui contrário a essa qualificação de crimes hediondos, porque no Código Penal não cabem subjetivismos, e este é um problema subjetivo. Um homem que atropela onze pessoas num ponto de ônibus não comete um crime hediondo?


A mídia se deixa conduzir pelo discurso da repressão?


H.B. – Quando você dá uma entrevista a um jornalista, ele coloca somente o que interessa à direção do jornal, e isso já ocorreu comigo diversas vezes, seja no jornal ou na televisão. Só sai o irrelevante. Os jornalistas muitas vezes querem mostrar a verdade, mas ela é ofuscada pela política das empresas, pela necessidade de se obter audiência e venda.


Veja mais, sobre a questão dos presídios em São Paulo. Existem algumas medidas que foram impostas pela Corte Interamericana de Justiça ao governo do estado de São Paulo e a mídia nem sequer toca no assunto. E, por ter ratificado e reconhecido a jurisdição da Corte, o Brasil é obrigado a cumprir suas decisões.


No caso de Araraquara, o Brasil recebeu uma série de determinações a serem cumpridos, como separar presos primários dos demais e dar alimentação adequada. Na Corte eles se espantaram quando falei que os presídios no Brasil não possuem refeitórios e os presidiários comem dentro das celas, como animais, sem colher nem garfo.


E mesmo com tudo pontuado e com a determinação da Corte, não conseguimos visitar os presídios de São Paulo. Posteriormente recebi um ofício do secretário de Assuntos Penitenciários dizendo que eles não se opunham à visita, mas eles achavam que as visitas deveriam ser “pré-montadas”. Isso aconteceu no início deste ano.


O que seriam “visitas pré-montadas”?


H.B. – Quando você vai ouvir um preso, você pergunta como ele está sendo tratado lá, se falta atendimento médico, etc., mas se a autoridade prepara o preso, dá um tratamento especial a ele, ele diz tudo o que não acontece na verdade. A visita tem que ocorrer sem aviso prévio.


Carandiru, Castelinho, impunidade


O senhor considera satisfatória a apuração da onda de assassinatos após a onda de ataques do PCC, em maio de 2006?


H.B. – Isso não teve repercussão. A mídia se comportou de uma maneira pouco esclarecida e não insistiu na apuração. Hoje não se sabe se houve processo contra ou a favor da atuação policial. O caso da Castelinho, por exemplo, caminha para se tornar um novo Carandiru, que até hoje não há uma condenação efetiva, e já se passaram 14 anos. Ambos possuem uma grande quantidade de réus (54, no caso da Castelinho), e até todos serem ouvidos demanda muito tempo.


No caso da Castelinho houve uma operação alucinada de infiltração de presos numa quadrilha, descrita no livro Cobras e Lagartos, de Josmar Jozino. Havia um personagem principal.


H.B. – Eu falei com esse cidadão quando ele estava preso em Itaí [interior paulista]. Eu estive lá conversando com ele, não sei se está foragido ou está morto. Foram quatro presos infiltrados nesse episódio e o principal deles, que armou tudo, levou o armamento, a munição, que ele dizia não ter efeito letal, coletes para todo o pessoal, que então foi fuzilado. Quando eu peguei os autos de corpo de delito, não acreditei. Então pedi os resultados dos exames e vi que os tiros tinham sido da cintura para cima. Tudo isso eu relatei para a Corte.


Existe demanda, com a participação da mídia, por uma polícia violenta.


H.B. – Temos o exemplo do Afanázio Jazadji, que durante muitos anos, em seu programa de rádio, levava o povo mais simples a apoiar a violência. E isso pegou de tal forma que, logo após a chacina do Carandiru, houve uma manifestação espontânea de apoio à atuação da Rota.


A imprensa falhou na missão de descrever uma realidade e propor aos cidadãos a discussão de uma política pública de segurança mais eficaz.


H.B. – Os meios de comunicação, de qualquer maneira, se subordinam ao poder do Estado. A questão do Esquadrão da Morte é nova se comparada com as “expedições de vigilância e captura” que saíam da Capital para matar supostos bandidos no interior do estado na década de 30, como capitães do mato. É um assunto no qual a imprensa nem costumava tocar.


Na verdade, procuro separar o jornalista e o empresário nesse sistema. Em relação ao jornalista, há ainda muito despreparo para abordar os problemas gerais da sociedade. Por exemplo, um jornalista veio me entrevistar sobre Poder Judiciário. Ele não sabia o que era Poder Judiciário, então ele não tinha o que me perguntar. Ou então fazem perguntas que são incabíveis, não há como responder.


O trem no desvio


Como o senhor avalia o comportamento da mídia? Ela teria embarcado numa pregação repressiva? Embarcou num trem…


H.B. – … que está num desvio. Seja por interesses empresariais ou outros, a mídia embarcou na repressão, e isso vai estourar no futuro. Tudo aquilo que é sugerido contrariamente à lógica vigente não se torna conhecido. Estive há poucos dias atrás com o presidente da Câmara [Arlindo Chinaglia] e sugeri a realização de um seminário sobre esse problema, com a participação de especialistas do Brasil e do exterior. A partir das conclusões tiradas seriam tomadas as medidas a serem aplicadas. Até escrevi uma carta sugerindo a forma de se fazer o seminário.


O Observatório da Imprensa tem buscado um pouco mais de profundidade na discussão. Começamos pelo Rio de Janeiro.


Governo paulista apoiou o esquadrão


H.B. – A questão das milícias no Rio de Janeiro é uma loucura total, um Esquadrão da Morte que vai chegar aos mesmos resultados. A idéia do Sérgio Cabral [governador do Rio de Janeiro] de cada estado ter seu código penal é uma mostra de ignorância total da realidade brasileira.


Constata-se no Rio de Janeiro uma articulação muito forte, e crescente, entre crime, polícia e política.


H.B. – Veja o exemplo de São Paulo. Quando foi instituído o Esquadrão da Morte, o secretário de segurança pública, Hely Lopes Meirelles, e o governador do estado, Abreu Sodré, saíam em defesa do Esquadrão, com o Sodré chegando a ir à televisão, inclusive.


Hely Lopes Meirelles foi um juiz “linha-dura”.


H.B. – A trajetória dele para mim foi uma surpresa. Ele foi juiz no interior do estado na mesma época em que trabalhei por lá como promotor. Ele até sofreu um atentado durante um interrogatório, devido a um abuso de poder que cometeu. Ele sempre foi um juiz muito rígido e como secretário de Segurança não foi diferente, tanto é que o Esquadrão nasceu com ele. Há inclusive uma fotografia dele com o pessoal do Esquadrão.



No Rio de Janeiro o esquadrão da morte foi obra do então coronel Amaury Kruel, chefe de Polícia do Distrito Federal, na década de 1950.


H.B. – A idéia de esquadrão aqui em São Paulo já vem desde a época das expedições de “vigilância e captura”. E o número de mortes de lá para cá aumentou. Eu disse em uma palestra que eu dei na PUC do Paraná, ainda durante a ditadura, que o esquadrão hoje evoluiu para a Polícia Militar.


A PM tinha participação no Esquadrão da Morte que o senhor combateu?


H.B. – No esquadrão da morte a Polícia Militar não teve participação, quem integrava era a Polícia Civil.


A Justiça deveria ficar mais perto do povo


Na sua visão, os padrões do jornalismo brasileiro melhoraram ou pioraram?


H.B. – Não acredito que tenham piorado. É evidente que ainda existem casos de despreparo, como o desse jornalista que veio me entrevistar sobre o Poder Judiciário e não sabia nada a respeito. Mas quando você não consegue passar uma mensagem para os jornalistas, ela cai no absoluto esquecimento. Um exemplo, que cito em meu livro: quando eu fui promotor no interior, trabalhei em algumas comarcas onde havia fóruns com edificações bem antigas, da década de 1920, que abrigavam delegacia de polícia, destacamentos policiais, juiz, promotores e um pequeno presídio. Era todo um conjunto de pessoas que trabalhavam juntas, o que facilitava a comunicação e o atendimento das pessoas. O juiz sabia o que e quem estava julgando. E esse acompanhamento não existia em São Paulo, onde você recebia uma pilha de processos onde não dava para saber quem era quem, ou ainda se havia alguma falha no processo, já que ele passa pela mão de vários juízes – o que recebe a denúncia não é o mesmo que interroga o réu, que não é o mesmo que ouve as testemunhas, e assim por diante, dentre outros problemas. E isso não mudou desde o tempo que eu trabalhei na 1ª Comarca de São Paulo para hoje. Durante o governo do Carvalho Pinto [1959-63], sugeri a aplicação do modelo existente no interior, criando 56 varas distritais em São Paulo.


O projeto foi para a Assembléia Legislativa, mas com a vitória do Ademar de Barros nas eleições, o projeto acabou arquivado. Quando José Sarney assumiu a presidência da República, ele chamou entidades de defesa dos Direitos Humanos – dentre eles a Justiça e Paz, da qual eu era membro na época – para uma conversa com ele no Palácio do Planalto. E ele dizia que a primeira medida a ser tomada era revogar a Lei Fleury. Eu discordei, dizendo que ela só tem de ruim o nome – uma vez que ela permite que os réus primários respondam julgamento em liberdade, mesmo se condenados em primeira instância. [A lei ganhou esse nome porque foi criada para livrar de prisão preventiva o delegado Sérgio Fleury.]


Por que havia interesse em revogar a Lei Fleury?


H.B. – Porque ela ficou conhecida como um instrumento de prevenção, e o que interessava para o Sarney era reprimir. E citei rapidamente o projeto que sugeri ao Carvalho Pinto, mas isso não foi comentado. Logo depois, em um almoço com o Fernando Lira, ministro da Justiça na época, ele sugeriu que se fizesse uma experiência com o modelo em Brasília. Chegamos a montar uma pequena equipe e escolher o local onde seria instalado o primeiro módulo do projeto. Mas com a saída do Fernando Lira do ministério, o projeto voltou para a gaveta.


Na minha opinião, essa é a única forma de se resolver o problema de segurança e de lentidão da Justiça em São Paulo. Do jeito que está não funciona, inclusive quanto às prisões. Se a estrutura judicial e penal em São Paulo fosse descentralizada, ficaria mais fácil ouvir as testemunhas; e, para os juízes, seria mais fácil para acompanhar mais de perto os casos que julgaram e ainda julgam. Temos a experiência da APAC em São José dos Campos, que era um presídio no centro da cidade, mas que nem parecia tal, não havia um guarda na porta. Mas já foi desativado.


Mais repressão vai fazer o sistema explodir


O que existe em São Paulo hoje é uma loucura. São 140 presídios com mais de 140 mil presos, isso é ingovernável. Há anos eu luto pela implantação desse projeto, mas não se vê nenhuma reportagem na imprensa falando dele.


Essas medidas de aumento da repressão que estão sendo tomadas atualmente pelo Congresso Nacional vão arrebentar um sistema que já se encontra completamente saturado, no futuro ele vai acabar explodindo. É uma loucura construir ainda mais presídios em São Paulo


Algo que tem relação com a questão policial, mas é de outra natureza: há quem diga que o governo poderá em algum momento usar com finalidades políticas o gigantesco banco de dados acumulado pela Polícia Federal nos últimos anos.


H.B. – Isso está dentro da filosofia do PT de ter e manter o poder a todo custo. Na verdade hoje são algumas pessoas do partido que lá estão e que querem permanecer, e isso é terrível. O Márcio Thomaz Bastos, por exemplo, não se utilizaria dessa arma. Mas acredito que o Tarso Genro pode fazer uso dela, apesar de não ser fácil. A mesma questão de perpetuação se refere também a um provável terceiro mandato do Lula; pode até conseguir, mas não será fácil.


A idéia estaria embutida na proposta de ampliar as consultas plebiscitárias.


H.B. – Eu estou chamando a atenção do pessoal para isto. Estão interessados em bombardear o projeto da Ordem dos Advogados, que para mim está tranqüilo. O problema está em outra proposta, da deputada Vanessa Grazziotin (PC do B do Amazonas). Ali se abre caminho para tudo.


Idéias para melhorar a cobertura jornalística


Se o senhor fosse hoje diretor de um jornal moderno, esclarecido, a serviço dos interesses da população – pelo menos daquilo que é percebido como tal –, que caminho o senhor recomendaria aos seus editores para cobrir a questão da violência?


H.B. – Acho que o caminho seria cobrir a atuação policial, o comportamento da Justiça, do Ministério Público e da Defensoria Pública e a posição dos advogados, porque a classe não está unanimemente voltada para a prevenção.


A forma de organização da polícia, por exemplo, passa de um modo muito tênue pelos jornais. Quem é que sabe que a Polícia Militar ainda está ligada ao comando do Exército? Ninguém sabe que há um órgão do Exército que traça as diretrizes da Polícia Militar, que na verdade é uma força auxiliar do Exército, conforme consta na Constituição inclusive. Há essa dicotomia entre as polícias Civil e Militar, que estão em confronto permanente. E também a forma de organização do Poder Judiciário completamente distante da população e visto por ela somente como mais uma função burocrática.


O Ministério Público, por exemplo, tem uma juventude que se excede. Se você é vítima de um crime e o promotor pede o arquivamento desse processo, e o juiz defere, você não tem recurso. Você não tem como fazer aquilo voltar. A não ser que o promotor queira. O procurador-geral da Justiça não tem o poder de dizer para ele: Faça. A coisa se esgarçou muito. É um democratismo que não é democracia.


O senhor é a favor do segredo de justiça?


H.B. – Sou contra. Há casos episódicos, marido e mulher, que podem ser resolvidos na hora pelo juiz, mas não faz sentido um processo inteiro correr sob segredo. A Justiça deve ser aberta.


O chefe da Polícia Civil do Rio, Gilberto Ribeiro, data de uma reforma de códigos de 1984 uma exacerbação da violência. Houve algo no Código Penal, no Código de Processo Penal, a que se possa atribuir essa escalada?


H.B. – Não, isso é um problema de atuação, de juízes, de promotores e da polícia. Há todos os instrumentos para se atuar, só não o fazem porque não o querem. Se quisessem fazer todo um processo de forma oral, nada impede, basta que o processo esteja documentado em ata.


Presos vivem como animais


Por que não se faz? Por que não se quer?


H.B. – Por comodismo. É cômodo ser um juiz que trabalha das 13 às 17 horas, por exemplo. Tanto os juízes como os promotores se burocratizaram. Eu mesmo já me senti um burocrata. Tive sorte de ser destacado pela Procuradoria Geral da Justiça de São Paulo para trabalhar em casos como os do Ademar de Barros e do Esquadrão da Morte, que permitiram que eu atuasse de fato como promotor público. Não tem nada a ver com o Ministério Público ficar sentado na cadeira recebendo pilhas de processos.


E o sistema carcerário?


H.B. – Se é que ele pode ser chamado de sistema… É evidente que as pessoas devem ser punidas conforme a lei. Sou contrário a penas muito elevadas e restritas. Por isso falo tanto no módulo, presídios com no máximo 200 pessoas, pois aí é possível uma atuação junto aos presos. A figura do diretor de presídio hoje desapareceu, ele mal conhece os acusados que estão lá dentro, nem sabe o nome. Mil pessoas? Além dele não ter autoridade nenhuma, já que quem exerce mesmo a autoridade são os próprios presos. Ou esse problema é resolvido adotando-se medidas simples ou então pode-se construir o presídio que quiser, porque não se reeducará ninguém.


Defesa da vida, em qualquer circunstância


O senhor não perderia tempo discutindo mudanças na lei?


H.B. – Não, deve-se aplicar a lei, e não utilizar medidas ilegais, como o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). É tratamento desumano e inconstitucional. Está na Constituição que não se pode fazer. E se faz. E agora piora ainda mais com as novas linhas de atuação do parlamento brasileiro, que a imprensa cobra.


Os advogados são grandes interessados na manutenção do statu quo. Inclusive grandes criminalistas, como Márcio Thomaz Bastos.


H.B. – Sem dúvida, pois é muito cômodo advogar no fórum central. Quando eu propus a descentralização durante o governo Carvalho Pinto, foi uma chiadeira geral. são os grandes interessados na manutenção desse sistema. O advogado é comodista e conservador.


O que seria efetivo para mudar essa cultura de violência. Estamos imersos numa espécie de bolha de violência. Bandido usa violência, polícia usa, o povo pede. Como romper esse invólucro de chumbo?


H.B. – Assumir uma linha de defesa da vida, em qualquer circunstância.


(Transcrição de Rodrigo Borges Delfim.)