Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Britânicos batem boca por crítica à mídia

Oh my god! O pau come solto na mídia britânica desde o começo do mês, quando chegou às livrarias Flat Earth News, do premiado jornalista investigativo Nick Davies. O título é um sarcasmo: remete a um jornal imaginário cuja cobertura se orientaria pelo princípio de que a Terra é plana.


Esse é precisamente o ponto do autor. Para ele, a imprensa do Reino Unido – e ele está falando dos chamados jornais de qualidade, como o Times, o Guardian, o Daily Telegraph e o Independent –, dissemina falsidades ‘tão profundas como a idéia de que a Terra é plana’. E elas são ‘amplamente aceitas como verdadeiras a ponto de que contestá-las soa a heresia’.


Ele acusa a mídia britânica de produzir distorções em massa, de veicular propaganda e notícias de segunda mão – em suma, de ‘reciclar ignorância’.


Davies fundamenta o seu libelo nos resultados de uma pesquisa que encomendou à Universidade de Cardiff, no País de Gales. A pesquisa cobriu mais de 2 mil matérias publicadas nos mencionados jornais e, ainda, no tablóide londrino Daily Mail.


O levantamento chegou a duas conclusões.


A primeira: apenas 12% dos textos examinados se basearam por inteiro em fatos apurados por repórteres; 8% teriam origem incerta; e 80% foram construídos totalmente, principalmente ou parcialmente com materiais de segunda mão, proporcionado por agências noticiosas e empresas de relações públicas.


A segunda: também em apenas 12% dos casos, a matéria-prima foi exaustivamente checada.


‘Outrora coletores de notícias’, escreve Davies, ‘os jornalistas em geral se tornaram processadores passivos de material alheio, boa parte do qual montado pela indústria de relações públicas para servir a algum interesse político ou comercial.’


A causa aparente estaria no acúmulo de demandas que os novos barões da mídia – como o dono do Times, Rupert Murdoch – impõem às redações. Os jornalistas deixaram de fazer matérias próprias ou de checar o seu conteúdo ‘simplesmente por falta de tempo’.


E arremata: ‘Se a isso se acrescentam as limitações tradicionais com que topam os jornalistas quando querem apurar a verdade, pode-se compreender por que os meios de massa, em geral, deixaram de ser uma fonte confiável de informação’.


Dos colegas que desancaram o livro, o mais conhecido é o vitriólico Simon Jenkins, ex-Times, hoje colunista do Guardian. Ele acha que as idéias de Davies são um ‘lixo’, por culpa do seu suposto ‘viés de esquerda’.


Davies seria um nostálgico da mitológica ‘idade de ouro’ da imprensa. Na realidade, sustenta, a imprensa britânica melhorou, em vez de piorar.


Ele não nega os defeitos da mídia – nem contesta, por sinal, as conclusões da pesquisa da Universidade de Cardiff. Mas, argumenta, ‘a diversidade do todo conta mais para a democracia do que o fracasso das partes’.


A frase é boa. No entanto, ela não reduz o tamanho do problema. A própria acusação a Davies de ser um saudosista, aliás, parece dar razão ao autor. Como é que ele pode dizer uma coisa dessas, retrucou o acusado numa entrevista, ‘quando eu nego explicitamente no livro que a imprensa britânica tenha tido uma idade de ouro’.


Nessa mesma entrevista, Davies afirma que os seus críticos ‘estão cuspindo sangue’ – ou seja, seriam eles mesmos a prova de que a mídia está doente.


Difícil enquadrar nessa categoria um dos mais sérios entre eles, Peter Preston, que dirigiu o Guardian durante nada menos de 20 anos (de 1975 a 1995).


Numa dura resenha, apontou no livro contradições e ajustes de contas pessoais do autor com a elite de Fleet Street (a célebre rua londrina onde ficavam antigamente todos os grandes jornais). ‘Não podemos nos permitir o luxo de não sermos sérios a propósito de nosso sério ofício’, contra-atacou.


A polêmica já atravessou o canal que separa a Grã-Bretanha do continente europeu. Virou assunto da coluna de José Miguel Larraya, o ‘defensor do leitor’ do El País, de Madri – um dos melhores jornais da atualidade, que se define como ‘o periódico global em espanhol’.


Larraya confessa que importou a briga que rola nas páginas do Guardian por inveja da capacidade dos britânicos de ‘discutir e polemizar sem que ninguém se sinta pessoalmente desqualificado’. Vai ver, especula, porque ‘a liberdade de imprensa existe há séculos no Reino Unido’.