Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Buscando lições jornalísticas no caso Isabella

O caso Isabella mexeu muito mais com universo jornalístico nacional do que se supunha. Isto ficou claro ao longo de 30 entrevistas, no eixo Rio-São Paulo, com editores chefes e profissionais com grande experiência, ouvidos para uma pesquisa sobre políticas públicas de comunicação e informação, organizada pela ANDI.


 


O tema Isabella não fazia parte do âmbito da pesquisa e nem foi incluído nas perguntas, mas ele acabou surgindo na maioria das conversas como algo que boa parte dos jornalistas ainda não conseguiu esquecer e que a imprensa não digeriu.


 


Há muitas explicações para isto, mas o que me interessa explorar é a forma como o episódio materializou um conflito de interesses que é inerente à atividade jornalística, mas que dificilmente é visto em toda a sua dimensão, porque são raras as situações em que os componentes se mostram tão claramente diferenciados.


 


Refiro-me ao conflito de interesses entre o lado empresarial da atividade jornalística e o manejo da informação como bem público. No caso Isabella, houve um momento em que a pressão dos departamentos comerciais de jornais, revistas, rádios e televisões foi clara e direta sobre as redações.


 


Todas as redações sofreram pressões, umas mais outras menos. Os jornalistas acabaram cedendo, dando à cobertura um claro viés sensacionalista, populista, voyeur, ou seja lá qual for o adjetivo utilizado. Criou-se um clima frenético nas redações que contaminou os repórteres, com todos tentando superar todos sem ninguém saber direito onde tudo iria dar.


 


A fase frenética já passou. Nota-se, no entanto, que ficou um gosto amargo pelos resultados da correria informativa em torno do crime. Quase todos os colegas que ouvi deixaram transparecer que não gostariam de ver repetido o carnaval midiático surgido em torno do caso Isabella.


 


Embora ninguém tenha até agora parado para pensar mais profundamente sobre as lições da cobertura do crime, o tema permite uma reflexão, uma pensatta, sobre a enorme confusão criada, já há algum tempo, entre interesse corporativo e interesse informativo, na atividade jornalística.


 


A atividade empresarial é movida pela lógica do lucro, sem o qual o negócio jornal, rádio ou televisão não sobrevive. O negócio jornalístico depende, portanto, do faturamento, do custo benefício. Trata-se de um sistema que tem regras e normas rígidas, onde certo e errado são conceitos objetivos e muito bem definidos. Um sistema onde a matéria prima jornal, por exemplo, perde quase todo o seu valor dentro de 24 horas.


 


A lógica da informação não segue os mesmos parâmetros. A informação é um elemento indispensável ao processo de geração de conhecimentos. Quanto mais ela circular mais ela se valoriza porque incorpora contribuições de outras pessoas. A informação não desaparece, ela é recombinada ou remixada. Além do mais, a informação segue normas fluidas, há um número infindável de nuances entre o certo e o errado. A informação só perde valor quando não circula [1].


 


As empresas jornalísticas misturaram as lógicas do negócio com a da informação, ou na melhor das hipóteses, não conseguiram trata-las de forma diferenciada. O resultado é que a informação passou a ser tratada como negócio no ambiente jornalístico. O peso econômico das direções corporativas se sobrepôs ao caráter público e não mercantil da informação.


 


O conflito entre as duas lógicas permaneceu sufocado durante muito tempo e agora ganha novo formato na medida em que a internet acelera a distribuição das notícias, incorporando os cidadãos no processo de recombinação informativa.


 


No caso Isabella, o negócio jornalístico exarcebou o consumo de notícias para alimentar o faturamento publicitário. Como lógica mercantil, estava dentro dos padrões operacionais e éticos da atividade, já que a sobrevivência do negócio depende do aumento da receita.


 


Mas na lógica da informação, a cobertura jornalística do crime estava inserida num contexto completamente distinto. Não se tratava de uma mercadoria (jornal, programa de radio ou TV) e sim de reputações, percepções, atitudes e opiniões construídas a partir de informações publicadas pela imprensa.


 


A lógica da informação apontava no sentido do interesse público, ou seja, da recombinação de informações que geraria conhecimentos capazes de reduzir a violência doméstica, por exemplo. Daí o conflito entre o interesse informativo público e o interesse mercantil de empresas privadas.


 


A existência deste conflito não é nem boa e nem ruim. É um dado de realidade. O que não podemos é misturar os dois, mascarando o interesse público como se fosse privado, e vice versa. A sobrevivência do negócio jornalístico depende hoje de uma redefinição do relacionamento entre as redações e os gerentes financeiros.


 


O que precisa ser mudado é o conceito das gerências corporativas de que a informação é uma mercadoria como salsicha. É preciso incentivar o consumo para aumentar a receita. Assim, todo mundo sai perdendo.


 


Conversa com os leitores:


O tema sobre o qual acabei de escrever é tão complexo quanto o conceito de informação. Obviamente, muita coisa ficou de fora deste post. Muitos conceitos ficaram incompletos. Muitas afirmações podem ser lidas de diferentes maneiras. É um risco que assumo, na esperança que a discussão entre os leitores possa corrigir os erros e preencher lacunas.






[1] Este é o moderno conceito de informação. A espionagem e o sistema de patentes trabalham com a idéia de segredo, ou seja, informação congelada. O jornalismo ainda se move, em boa parte, pela lógica do furo, ou seja, informação exclusiva à qual os concorrentes não tiveram acesso. A internet intensificou extraordinariamente a amplitude e a velocidade de circulação da informação, minando as bases do segredo de espionagem, do conceito de direito autoral e da patente. O sistema industrial pós-moderno precisa de inovação permanente, logo a informação congelada passa a ser um entrave ao desenvolvimento tecnológico.