Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Calar RCTV é calar muitos venezuelanos

O jornalista e professor universitário venezuelano Boris Muñoz foi contra a atitude da RCTV no golpe de 2002 – diz que a emissora participou indiretamente do golpe –, mas também contra seu fechamento pelo presidente Hugo Chávez, no último minuto de domingo (27/5). “Ao fechar-se Rádio Caracas Televisión não apenas se está fechando um canal tradicional, com 53 anos e com ampla penetração”, disse, “se está tirando do jogo político um ator muito importante, dissidente do governo, e se está limitando a possibilidade de expressão de um grupo muito numeroso de venezuelanos”.


Muñoz falou, em entrevista dada ontem por telefone ao Observatório da Imprensa, de constrangimentos poderosos que o governo do presidente Hugo Chávez cria sistematicamente. A autocensura se apoderou de quase toda a radiodifusão não oficial. Um grupo poderoso, de Gustavo Cisneros, fez acordo com Chávez. Jornalistas começam a ser perseguidos. O governo pensa criar barreiras às comunicações via internet, sob a bandeira do combate à pornografia e à violência.


Sobre o futuro imediato, diz que há duas possibilidades básicas: a abertura do governo ao diálogo, que seria o ideal, mas considera praticamente impossível, e Chávez deixar o movimento atual se esgotar por sua própria fraqueza e, avaliando como vitória política o fechamento da RCTV, avançar em direção a um poder pessoal de corte clássico na América Latina.


Boris Muñoz foi editor da revista Nueva Sociedad, de Caracas, e é professor universitário. Ele participou em maio de 2006 do Fórum Folha de Jornalismo.


Qual é sua avaliação do movimento contra o fechamento da Rádio Caracas Televisión, a RCTV?


Boris Muñoz – O que vemos nas ruas de Caracas e outras cidades e lugares do país é uma reação a uma medida muito arbitrária do governo. Nós temos um governo que costuma tomar medidas arbitrárias e unilaterais, e algumas dessas medidas receberam uma reação muito contundente e espontânea da sociedade.


Não é algo organizado, mas que surgiu a partir da indignação que sentem as pessoas comuns ao ver o espaço democrático, do debate, da liberdade de expressão, encurtar-se. Ao fechar-se Rádio Caracas Televisión não apenas se está fechando um canal tradicional, com 53 anos e com ampla penetração. Como jornalista, não estou de acordo com a linha editorial e com a atitude que teve a RCTV diante da sociedade venezuelana em outros momentos, como em abril de 2002, quando participou, ao menos indiretamente, no golpe de Estado, ao provocar um silêncio midiático. Muita gente não compartilha essa política, mas ao fechar a RCTV, que é um meio dissidente, se está tirando do jogo político um ator muito importante e se está limitando a possibilidade de expressão de um grupo muito numeroso de venezuelanos. Constrange-se, eliminam-se possibilidades de haver canais pelos quais os venezuelanos podem expressar-se e manifestar posições diferentes da posição oficial.


Jornais mais importantes da Venezuela informam corretamente


O que está acontecendo com os jornais venezuelanos, enquanto se desenrola esse arrocho sobre a televisão na Venezuela?


B. M. – Há por parte dos jornais uma atitude muito responsável, que é de informar o que está acontecendo, neste momento, na Venezuela, enquanto a política informativa do setor oficial é de fazer a desinformação. A desinformação, literalmente falando, porque o ministro de Comunicação e Informação, Willian Lara, mandou uma carta aos diferentes setores policiais para que não informassem sobre a situação. Além disso, a informação do setor oficial já está controlada pelo Ministério de Comunicação e Informação. Por outro lado, a política das mídias privadas, dos grandes jornais foi cobrir esse vazio informativo que havia no setor oficial. E que foi muito evidente na televisão, salvo no canal de notícias Globovisión.


Os jornais independentes, o Últimas Notícias, os jornais de circulação nacional, como El Nacional e El Universal, tiveram a posição de informar e de oferecer uma perspectiva um pouco mais profunda do que está acontecendo. Nesse sentido, cobriram, dentro do possível, um vazio informativo, que não é novo, mas fica evidente nestes dias.


Há alguma medida de coação contra os jornais, a imprensa escrita?


B. M. – Há uma política sistemática de acossamento dos meios de comunicação privados na Venezuela. Essa política tem muitos ângulos diferentes. Um é que empresários próximos do setor oficial foram comprando meios de comunicação. Fazem uma política de auto-censura sobre certos fatos do setor oficial. Aí há uma ameaça direta. Outras ameaças são feitas pessoalmente pelo presidente Hugo Chávez, como a que fez nos últimos dias ao canal Globovisión, dizendo que se Globovisión não moderasse sua linha informativa, ele ia tomar medidas. Obviamente, não atinge os meios impressos. Mas essa foi uma mensagem para toda o setor de comunicação do país e, nessa medida, também, não digo que isto esteja acontecendo nesse momento, mas também poderia gerar autocensura. Até agora não houve, que eu me lembre neste momento, uma ameaça direta contra os jornais. Mas pode haver a qualquer momento.


Governo poderá controlar uso da internet


A Venezuela é um país que tem grande intimidade com internet, pelo menos em Caracas e em alguns outros centros. Qual é o panorama na internet?


B. M. – Temos, por sorte, a possibilidade de internet. A internet se converteu em um aliado da informação autônoma e independente, mas a internet também é uma Babel informativa. Não há um critério nítido sobre o que seja mais verdadeiro. O critério da veracidade é muito questionado na internet. Do ponto de vista das medidas que serão tomadas em relação à internet não há algo que eu possa dizer com certeza.


O que se pode dizer que vai ocorrer é que o governo está, neste momento, preparando uma Lei de Infogoverno. Que vai estabelecer regras sobre a internet, por um lado. Por outro, o governo nacionalizou a Companhia Anônima Nacional de Telefones da Venezuela [Compañia Anónima Nacional Teléfonos de Venezuela, Cantv], que tem um domínio muito amplo na banda larga, um domínio absoluto da transmissão de dados dentro do país. E isso poderia ser controlado, como é controlado em países como Cuba e China.


Nesse sentido, há intelectuais e comunicadores que estão alertando sobre o iminente controle da internet por parte do governo. Eu poderia acrescentar que o ministro de Comunicação e o ministro de Telecomunicação, Jesse Chacón, têm falado da necessidade de controlar os cibercafés. Para evitar que as crianças fiquem expostas a certas mensagens que o governo julga imorais. Falamos de pornografia e falamos de jogos violentos, etc.


Seria uma medida governamental para limitar o acesso dos menores a este tipo de mensagem. Mas essa é uma faca de dois gumes, porque também limita o acesso das pessoas maiores de idade. E, assim como decidem limitar a possibilidade de acessar páginas de sexo e violência, podem, eventualmente, limitar o acesso a outros tipos de fontes informativas. É uma situação muito delicada que se vive e que poderemos ver no futuro na internet.


Cisneros abre todos os noticiários com reportagens a favor do governo


Essas últimas medidas em relação à RCTV e à Cantv, todo esse panorama provocou a saída de algum jornalista da Venezuela? Alguém já desistiu, já disse: Aqui não posso mais ficar, não posso trabalhar?


B.M. – Muitos têm vontade de ir embora… Mas não sei quem irá. Até agora a situação provocou a saída de muitos jornalistas da própria RCTV, porque ficaram sem trabalho. Jornalistas de outros meios, como a La Tele e como Venevisión, apresentaram às respectivas direções suas cartas de demissão, porque existe uma política de autocensura dentro da televisão privada, também. Esse é um fato muito grave que é preciso denunciar e tornar público fora do país. Venevisión, La Tele e em menor medida o canal Televen tiveram uma política de moderação exagerada ao apresentar os protestos, por exemplo.


O caso da Venevisión é muito mais grave. Venevisión, do magnata Gustavo Cisneros, decidiu simplesmente não apresentar em sua programação informativa nenhuma crítica ao governo, ou uma porcentagem muito pequena de crítica ao governo.


Há um dado que é importante conhecer. Em todos os espaços noticiosos no canal Venevisión, as primeiras três notícias são notícias a favor do governo. E depois vêm as notícias críticas ou gerais. Aí há uma situação muito perigosa. Se o governo já conta com um controle absoluto de boa parte do espectro midiático de radiodifusão, e sobretudo na televisão, também conta com os apoios de canais privados, como Venevisión.


E mais. Jornalistas da Venevisión e de La Tele que reagiram contra a censura e a autocensura e renunciaram a seus postos. Não sei o que vão fazer, se vão sair da Venezuela ou vão mudar de atividade, vão mudar de ramo. O certo é que há casos bem conhecidos.


Outra coisa grave é a criminalização e a demonização, por parte do governo, de cerca de 50 importantes jornalistas, que estão sendo acusados de receber recursos da CIA, dos Estados Unidos. Estão dizendo que esses jornalistas, que viajaram em missões de relações públicas nos Estados Unidos, estão fazendo trabalhos de espionagem a favor do governo americano. Algo que, até este momento, e conhecendo alguns desses jornalistas, creio que é muito arriscado afirmar.


Diálogo seria o ideal, mas é quase impossível


Que cenários o senhor descortina agora?


B.M. – Creio que as manifestações demonstraram um grande descontentamento entre a nova geração sobre o manejo da política e o rumo do governo na Venezuela. E isso já é uma vitória na batalha midiática e na batalha política que se desenvolve na Venezuela. Ao lado disso, é preciso perguntar quais são os cenários vindouros.


Um cenário seria quase impossível de prever: que o governo se abra ao diálogo. Esse é o cenário mais desejável. Porque os estudantes, ao protestar, não estamos querendo que o governo caia, que Chávez saia do governo. Estão pedindo mais liberdade, estão pedindo mais diálogo.


Agora, claro, o governo tende, como de outras vezes, para uma estratégia de desgaste, de erosão do movimento. De modo que, se se prolongar, o governo vai, no final, deixar que o movimento morra, por sua própria falta de força. Tenho muito claro que, se o governo sentir que o fechamento da RCTV foi uma vitória política para ele, vai endurecer muito mais o regime. Então vamos nos aproximar perigosamente de um regime de opressão, no estilo clássico latino-americano, com estratégias um pouco mais sofisticadas, estratégias legais e estratégias midiáticas de imposição de um poder totalitário, absolutista, nas mãos de Chávez.


(Tatiane Klein colaborou na transcrição.)


Ler também “Jornalista relata quadro cada vez mais difícil para mídia independente na Venezuela”.