Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Calosidade na alma

A Folha de hoje teve a sensibilidade de chamar na primeira página a nota de estréia à imprensa da recém-empossada secretária municipal de Saúde de São Paulo, Maria Cristina Faria da Silva Cury.


“Ao tentar justificar a morte da moradora de rua Fátima Gomes, 49, que esperava atendimento em frente de hospital”, informa a chamada, “Cury disse que ela “morreu onde vivia nos últimos anos”.


Mas foi O Estado que contou melhor a história de mais essa tragédia brasileira, incluíndo a operaçãozinha-abafa ordenada pelo médico de plantão do pronto-socorro do Hospital Municipal Lauro Ribas Braga, no bairro de Santana, Rubens da Silva Wimgerter, quando se percebeu que Fátima estava morta.


O abafa só não se consumou, informou o jornal, porque a polícia — chamada por pessoas que estavam na recepção — chegou a tempo de impedir que o corpo fosse levado para dentro do prédio, depois de ter ficado cerca de 5 horas na porta do hospital.


Mas o ponto alto da cobertura do Estado – além da foto, inusitada para os padrões do jornal, do viúvo de Fátima com a mão na sua cabeça, na frente do PS – é a matéria específica sobre a nota oficial da professora doutora, que o padre Júlio Lancelloti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua, considerou “estarrecedora”.


Começa assim o texto mordaz do repórter Iuri Pitta:


“É difícil entender o que os médicos escrevem. Não foi diferente com a nova secretária de Saúde, Maria Cristina Cury. Logo após tomar posse, à tarde, a ex-diretora de uma faculdade particular e de dois hospitais estaduais teve de explicar suas primeiras 20 palavras, escritas em nota oficial. Na frase, ela diz que uma paciente moradora de rua, morreu onde vivia. Só não sabia que não era moradora de rua.”


Destaco o lide (ou abre, como se diz hoje) não apenas pela fina carpintaria da redação, mas principalmente porque, mantendo a objetividade, foi o que mais perto chegou de passar ao leitor a indignação com que fatos como aquele devem ser tratados — as circunstâncias da morte e o comunicado oficial da secretária.


Segundo a matéria principal do Estado, na noite de anteontem, quando Fátima passsou a se queixar de fortes dores, o marido correu ao hospital para pedir ajuda, “mas foi barrado por seguranças”.


A nota, de seu lado, sugere que a autora padece de uma enfermidade que não consta dos tratados de medicina, porém qualquer leigo pode identificar: calosidade na alma, com embotamento do senso de compaixão pelos desvalidos e de ultraje pelo que a sociedade e o Estado no Brasil os fazem padecer.


“Se houver culpa, vamos punir”, disse o prefeito José Serra, burocraticamente, ao anunciar uma sindicância para apurar o caso.


Mas nenhuma sindicância é necessária para se saber que a professora doutora, qualquer que seja a sua sapiência médica, não tem condições de exercer a função para a qual foi nomeada.


Serra teria feito a coisa certíssima se a tivesse exonerado na hora.