Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Cobrindo o ‘maior desafio da nossa era’

No pôquer da notícia, o local e o imediato ganham do geral e do abstrato. Ganham porque isso é o que o consumidor de informação busca antes de mais nada.


Tem aquela frase “pense globalmente, aja localmente”, mas, para a imensa maioria, a norma é pensar (e se informar) localmente também.


Não admira que os jornais brasileiros deste fim de semana prolongado continuem o mais das vezes dando espaço privilegiado para o de sempre – corrupção, drogas, Lula/Chávez, Ipea, Renan…


Nem pensar numa manchete de primeira página com a declaração do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, de que o aquecimento global é “o maior desafio da nossa era”.


Ah, mas isso é notícia velha, decerto objetarão todos os editores que preferem servir ao leitor, de preferência, as notícias novas da velha pauta local e imediata.


A notícia da crise ambiental, no entanto, só é velha para uma minoria, apesar de todo o justificado auê da mídia com a outorga do Prêmio Nobel da Paz deste ano ao ex-vice americano Al Gore, o do documentário “Uma verdade inconveniente”, e ao IPCC [sigla em inglês para Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudança Climática].


E mesmo que a maioria estivesse razoavelmente por dentro do assunto, a imprensa teria a obrigação de manter “o maior desafio da nossa era” no centro do radar do público.


Não se trata de editar, digamos, um tudo-sobre a questão num caderno especial, para se ler e guardar, conforme o clichê, e depois confiná-la às seções de ciência e ambiente, Ou só lembrar em maiúsculas do tema “aniversariamente”. O advérbio é do poema de Fernando Pessoa sobre o suicida que será recordado “no dia em que nasceste / e no dia em que morreste”.


No caso, por exemplo, quando o IPCC, como fez ontem, sai com um novo documento repetindo que o efeito-estufa provocado pela civilização do petróleo é um fato inconteste, que tem tudo para provocar “mudanças abruptas e irreversíveis”.


É necessário, mas insuficiente. Se as mudanças climáticas representam “o maior desafio da nossa era”, manter o assunto em foco é decerto um dos maiores desafios da mídia, a nossa e a dos outros.


Isto posto, os três jornalões brasileiros fizeram ontem e hoje serviço de gente grande ao publicar excelentes infográficos que mostram e explicam os conhecimentos consolidados do IPCC. Sobretudo o do Globo de ontem, claro como água, e o do Estado de hoje, que se espalha por duas páginas impactantes.


Já em matéria de texto, um achado a página do Globo, também de hoje, com o respeitado cientista Luiz Alberto Oliveira, intitulada “O petróleo já era” e editada por Arnaldo Bloch.


Vejam se não tenho razão:


“O petróleo é nosso. Mas é sujo, velho e, em breve, obsoleto, por motivos estritamente econômicos. Num viés que transcende a discussão ecológica e ética, o físico Luiz Alberto Oliveira — doutor em cosmologia, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e professor de história e filosofia da ciência — destoa do oba-oba reinante ao comentar as recentes descobertas na Bacia de Santos.

Há cinco anos presidindo, às terçasfeiras, em petit-comité, os exaltados debates filosóficos promovidos por Oscar Niemeyer em seu escritório, Luiz Alberto recebeu a equipe da Logo para uma conversa cuja síntese está nas notas abaixo.


Fordismo e petróleo: trágica coincidência 
A coincidência da descoberta do petróleo com o fordismo foi trágica. No início do século passado as cidades futuras eram imaginadas com grandes construções ligadas por dirigíveis, bondes e trens. Quase tudo era transporte público. Com o petróleo e o fordismo, o automóvel se tornou o eixo motriz da indústria do século XX e a ênfase no transporte público foi abandonada. O transporte individual passou a ser como um utensílio doméstico. A popularização do automóvel trouxe a fantasia da velocidade, da intensificação do movimento, que se tornou um molde para a nossa subjetividade. A associação do ímpeto à virilidade, à macheza, atropelou substituiu a profundidade, a abrangência, a leveza. O paradigma do chegar na frente, do ser mais rápido, passou a guiar o mundo.

O sol sujo 
Começa a se tornar uma verdade objetiva, inclusive sob a ótica econômica, o fato de que a queima de petróleo é absurda. O petróleo é o sol antigo (energia do sol fixada pelas plantas + matéria orgânica fossilizada), acrescentada ao sol atual. É um sol sujo.

O motor ‘informacional’ e o fim do movimento real 
Com a passagem dos motores a tração ou vetoriais (roda d’água, animais, músculo humano) para os motores de conversão (que liberam o movimento embutido num combustível), as distâncias passam a ser seccionadas e o espaço é explorado ao máximo. De 50 anos para cá — como observa o historiador da ciência Michel Serres — vem se desenvolvendo o chamado “motor processual ou informacional”. A movimentação real é mínima (se dá em microcircuitos), mas o processamento de informação é máximo. Em vez de cargas, o que se transporta são dados, percepções, imagens, emoções. Esta transformação reordena o tempo, e a conexão instantânea e coletiva abole a distância. Você está em casa mas os seus sentidos estão no Japão em tempo real. Isto cria um “presente global”, um agora planetário, que é imóvel, que não desliza. Por reorganizar o tempo, o motor informacional mais revolucionário que o de conversão. E é tão ou mais decisivo para a contemporaneidade do que foi o motor a explosão para o século passado.

O petróleo fez a economia de transformação da natureza chegar ao seu limite 
 O combustível fóssil fez com que a atividade econômica de transformação da natureza chegasse a um esgotamento. O modelo do aumento de mercadorias, transformação das necessidades e expansão do mercado em escala global — previsto por Karl Marx há 150 anos —, teve todas as suas condições cumpridas, e o capitalismo não tem mais limite ou fronteira natural. Na verdade, não há mais natureza “natural”. A própria natureza já foi recoberta pelo esquema de valores, de modo que até os oceanos e desertos já são estoques.

A obsolescência virá antes do fim das reservas 
 Inexoravelmente o petróleo vai ser deixado para trás em duas, três gerações. Não por escassez. O que vai ficar obsoleto é o uso de combustível. O petróleo vai servir para a química orgânica fina, para a confecção de plástico.


A convergência entre economia e ecologia é questão puramente econômica 
 O próprio capitalismo vai abraçar cada vez mais essas concepções preservacionistas. É o nosso velho e mau interesse, só que em outras condições. Não há mais limites espaciais para o capitalismo, o limite agora é temporal, de sustentabilidade, e não é à toa que a economia está convergindo para a ecologia. O modelo que vai predominar não é mais de expansão, mas de manutenção. Nem todos ainda se deram conta ou querem se dar conta de que ter natureza é economicamente mais valioso que desperdiçá-la. Por exemplo, filtrar carbono com a floresta é mais barato que depredar e reconstruir. E, neste contexto, queimar petróleo é cada vez mais custoso.

Se a descoberta das novas reservas fosse no tempo do Monteiro Lobato, o Oriente Médio seria aqui 
A descoberta recente na Bacia de Santos veio num momento em que economicamente o petróleo está num desvio do caminho. Se fosse em 1925, se fosse no tempo de Monteiro Lobato, o destino do Brasil seria outro. Viveríamos o Oriente Médio aqui. A presença dos marines seria ostensiva e a colonização americana, mais direta. Por outro lado, é por isso que estamos em relativa paz…

A história do século XX é a história da importância do petróleo 
Se for acompanhar as bases americanas do mundo, incluindo os porta-aviões, elas formam um colar que segue a linha do petróleo. São os sátrapas (representantes do império persa nas províncias) espalhados pelo mundo inteiro, monitorando o fluxo de petróleo. A Rússia, sentada em cima de uma Arábia Saudita, não quer saber mesmo de outro caminho. Se há 50 anos tivéssemos iniciado um processo de desvinculação do petróleo, tudo seria diferente. Mas isso nunca foi politicamente viável. O imediatismo imperou.

O motor a gelo 
Vozes se ergueram. O Clube de Roma discutiu outros modelos. Um físico britânico, Freeman Dyson, propôs várias formas de produzir energia. Uma delas era, nos países frios, converter o gelo invernal nos sistemas de refrigeração durante o verão, substituindo a queima de óleo e “limpando” o parque termodinâmico. Isso foi só uma idéia, das tantas que se discutiram. Carros elétricos já poderiam estar rodando há 70 anos! O predomínio do motor a explosão poderia ter sido curto, se as pesquisas tivessem sido aplicadas na evolução dos veículos. Não estaríamos na estagnação prolongada que o petróleo significou.

Concórdia humana? Não. A velha e implacável lógica de mercado é que vai salvar o mundo 
Os americanos querem manter o controle sobre essa transformação, mas em 50 anos o petróleo será substituído. Uma transformação decorrente do fato objetivo de que a atividade humana é o principal fator de alteração sobre o ambiente, globalmente. Mais que os vulcões.
Concórdia humana? Não. A lógica implacável do mercado mesmo. Claro que mudar é difícil. Até mesmo para os biocombustíveis, mais limpos, renováveis, frutos do sol atual, e passíveis de serem utilizados nas estruturas de dutos instaladas, já é complicado.

Uma guerrinha na Venezuela ou uma base no Suriname? 
Para evitar a transformação, invasões ainda serão perpetradas, de preferência no Oriente Médio, ou quem sabe uma guerrinha na Venezuela. Os americanos querem instalar uma base no Suriname, entre Brasil e Venezuela, com vista para a floresta…

Logo será mais importante ter o domínio do ‘saber como saber fazer’ do que ter um campo de petróleo 
A economia é cada vez mais direcionada pela tecnociência, que é a aplicação intensiva do conhecimento técnico a partir do avanço da ciência básica. A inovação é hoje o eixo da economia, e assim se transfere para a atividade econômica o ritmo vertiginoso da investigação. Surge uma espécie de ciência on-demand. O laboratório faz parte da linha de montagem, a universidade é integrada à empresa. Hoje, passou a ser mais importante a posse desse instrumental cognitivo, esse know-how sobre o know-how (saber como saber fazer) do que a posse de uma reserva de petróleo. Soberania será conhecimento, e não apenas o domínio dessa ou daquela província mineral ou territorial.

Mais uma vez o Brasil estará no descompasso da História? 
Nossos planejadores têm a consciência clara desse paradigma? Pois deveria ser o eixo central a partir do qual todos os planos se desenvolveriam e se estruturariam, ainda mais num país com tantos recursos. Ou seja, a valorização do potencial da floresta é mais decisiva que a descoberta dos poços em Santos, porque o valor econômico da floresta (à parte o biológico e o ético), pela função de filtragem do carbono que ela exerce, terá cada vez mais centralidade. Não é à toa que os créditos de carbono começam a virar moeda corrente. Mais uma vez o Brasil pode estar na contramarcha da História.

O depredador de hoje será o guarda florestal do futuro 
O caminho natural em discussão é que se comece a pagar dobrado aos depredadores o valor que eles obtêm com a soja, para que se tornem, assim, os protetores da área ainda não derrubada. Serão eles, no futuro, os bravos guardiões da floresta, o exército da proteção. E os países ricos não tardarão em querer investir pesado nessa frente.”