Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Conta outra, presidente

Sei que Lula não é muito chegado a uma leitura. Mas ele poderia fazer um favor a si mesmo se lesse a cobertura Folha de hoje sobre o discurso em que – mais uma vez – se vangloriou de que nenhum brasileiro é mais ético do que ele e – pela primeira vez – assinou em baixo da tese de que na raiz da crise da corrupção está o desejo das elites de botar-lhe arreios.

Quem começou com essa conversa foi o ministro José Dirceu, ao deixar o Planalto. Depois, Delúbio Soares e João Pedro Stédile, entre outros, fizeram coro com a teoria da conspiração.

O que a abordagem da Folha tem de melhor – e de eventualmente útil para Lula – são os comentários de intelectuais petistas históricos sobre a frase “Eu conquistei o direito de andar de cabeça erguida, com muito sacrifício. E não vai ser a elite brasileira que vai fazer eu baixar a minha cabeça.”

O jornal ouviu Maria Victoria Benevides, Emir Sader, além do tucano converso Francisco Weffort. Foi ouvir também outro fundador do PT, Chico de Oliveira, que saiu do partido no primeiro ano da era Lula por desgosto.

Este se limitou a dizer que “pretensão e água benta são de graça” e ficou por isso mesmo porque, explicou, “não quero mais nada com esse presidente“.

Maria Victoria, como quem diz devagar com o andor, lembrou que ela também é elite. E Emir pegou na veia da questão. “As elites podem conviver com Lula contanto que siga com essa política econômica”, argumentou, antes de sugerir que, em vez de ficar falando nas suas origens humildes, ele pode “resgatar o seu governo se olhar profundamente para as suas origens: que lado dessas origens de pobre, nordestino, pode ajudar ou não”.

Do colunista Merval Pereira, no Globo de hoje: “Se há uma conspiração elitista em movimento nos bastidores políticos, ela visa a preservá-lo da crise para que possa terminar o seu mandato a salvo de um processo por crime de responsabilidade. Não interessa às elites interromper o mandato do presidente, se não por uma visão histórica, quanto mais não for por mero egoísmo.”

Já está em quase toda a mídia: as elites estão se pelando de medo de um pós-Lula – e de um pós-Palocci – antes de 2007. O nome do medo é José Alencar.

Percebo agora que a premissa deste texto está equivocada. Lula não se volta contra as elites por erro de avaliação, capaz de ser corrigido pela leitura do que pensam os seus antigos companheiros. É de caso pensado que se diz alvo das elites.

Ele está falando para os brasileiros mais pobres e menos sintonizados com a substância da crise – o fato de terem apanhado o partido da ética enfiado até o pescoço no pote de melado.

Contra a vontade de Lula?

Esses brasileiros, boa parte dos quais vive nos ou veio dos mesmos grotões que o presidente – e ele não perde oportunidade de ressaltar as suas origens -, tendem a achar que os políticos, sem distinção de partido, são, sim, farinha do mesmo saco. Mas Lula é diferente: só quer o bem deles e por isso é atacado pelos bacanas. O resto é detalhe.

Se as suas respostas fossem excluídas das pesquisas sobre a avaliação do governo e a imagem do presidente, o resultado seria muito menos favorável a ele. Assim também as projeções eleitorais que lhe dão um segundo mandato.

O que Lula lançou, portanto, foi uma cartada irrefutavelmente populista. Mais depressa do que alguém poderia dizer Hugo Chávez, ele falou: “O que o povo quer mesmo é resultado. É saber se, no frigir dos ovos, a sua vida vai estar melhor do que quando nós entramos no governo.”

É, sem mais nem menos, a mais nova tradução para o rouba, mas faz, que o PT combatia implacavelmente antes de perder a inocência.

E o pior é que isso tem base. Da colunista Dora Kramer, no Estado de hoje: “Uma frase, ouvida por um político em contato com as bases do interior nordestino explica parte da avaliação positiva de Lula nas pesquisas, a despeito da crise política. As comida tá barata, doutor, disse o eleitor com clareza suficiente para que a excelência medisse a distância entre a animosidade do Brasil que se mobiliza por meio de informação e a tolerância do Brasil que está de olho no preço do arroz e do feijão.”

Volto a Lula. De um mesmo fôlego, ele disse: “Sempre fui defensor e gritei tantas vezes favoravelmente à criação de CPI neste país que eu não posso ser contra nenhuma CPI.”

Não pode ser, mas é. O Brasil que se mobiliza por meio da informação acompanhou tudo que o PT fez – contra a vontade de Lula? – para abortar a CPI dos Correios. Deputados petistas que se recusaram a retirar as suas assinaturas do respectivo requerimento foram ameaçados com o fogo dos infernos pelo ainda ministro Dirceu – contra a vontade de Lula?

Depois – contra a vontade de Lula? – tentaram matar a iniciativa na comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a pretexto de que seria inconstitucional. A operação abafa só não foi para a frente porque o deputado Roberto Jefferson disparou o segundo míssil do mensalão.

Por fim – contra a vontade de Lula? – tentaram criar uma espécie de CPI do B, para neutralizar a outra, restrita esta à Câmara (a mesma Casa do Congresso contaminada pela denúncia do suborrno de políticos) e retroativa à compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique.

Do citado Merval Pereira, também hoje: “Enquanto faz movimentos erráticos que não são compreendidos pela população menos esclarecida, a quem engana com a balela da perseguição da elite, vai também o presidente mexendo todos os pauzinhos que pode, através dos representantes do PT nas diversas CPIs montadas para empacar as investigações.”

Com todo o respeito, presidente, haja.

P.S. Do anarquista russo do século 19 Mikhail Bakunin: ‘Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana.’ [Agradeço à jornalista Cecília Thompson pela lembrança.]