Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Crime organizado e poder

Paulo Baía foi o primeiro a falar no debate de 12 de março. Ele colocou como pano de fundo da discussão a existência de uma sociedade “altamente hierarquizada, fragmentada, que desconhece a maior parte dos sentimentos, dos afetos e das redes de solidariedade, de sociabilidade da população brasileira”. Esses “desclassificados”, carentes de reconhecimento social, começaram a se movimentar de forma violenta, não em razão de alguma manipulação por traficantes, diz ele, mas em busca de reconhecimento como seres humanos, num primeiro movimento, logo seguido por um movimento em que exigem direitos de cidadania.


Baía não aceita o uso da expressão “crime organizado” para definir bocas de fumo. O crime organizado propriamente dito estaria mais associado ao poder. O sociólogo segue análise de sua colega Jacqueline Muniz na qual as Polícias Militares desempenham no Brasil o papel que foi desempenhado na Itália pela Máfia.


Paulo Baía – Eu nasci em Marechal Hermes, subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, fui criado lá e no Jardim Sulacap. Convivi desde menino, por ser preto, com a ação violenta e discricionária dos organismos policiais. E isso ficou mais evidente quando, mais tarde, eu venho para a Zona Sul estudar, na década de 1970, no Colégio de Aplicação da antiga UEG, hoje UERJ, e na Escola Escola Técnica de Comércio Nacional de Ciências Estatísticas. Eu era o único estudante negro na sala. Quando nós saíamos em turma, o único que era revistado era eu. Eu começo falando nisso porque a questão da violência está intimamente ligada à longa história escravista brasileira, que vem até o tempo presente – não existe trabalho escravo no tempo presente, mas análogo. Isso traz como conseqüência um tipo de estruturação do Estado que eu chamo na minha tese de doutorado de simbiótico à sociedade civil reconhecida como tal, ao mesmo tempo que promove a desclassificação social, o não-reconhecimento social de uma enorme faixa da população brasileira. Eu calculo hoje que um terço da população brasileira virou indigente, são desclassificados sociais.


A invisibilidade social


O desenho que melhor representa representa a sociedade brasileira não é o da pirâmide – etária, de renda –, é o de um pião, aquele brinquedo de criança. Os de cima só vêem os próprios pares. Não conseguem enxergar os que estão no bojo e embaixo do bojo do pião.


Provoca-se deliberadamente uma invisibilidade social, traduzida nos discursos midiáticos e nas agências discursivas, as escolas, as igrejas, os jornais, rádio, tevê – esses, rádio e tevê, eu chamo de mídia de largo alcance.


Tem-se uma sociedade altamente hierarquizada, fragmentada, que desconhece a maior parte dos sentimentos, dos afetos e das redes de solidariedade, de sociabilidade da população brasileira, via uma estrutura em que se tem um Estado simbiótico à sociedade civil organizada reconhecida como tal e uma grande massa da população sem nenhum tipo de organização reconhecida pelo Estado e por essa sociedade civil organizada.


Isso não significa dizer que nesses locais, nesses territórios, eles não estejam organizados, não tenham suas redes de solidariedade, de apoio mútuo e de convivência, mas que são desconhecidas pelos escolarizados da sociedade. E aí não é só a mídia. ノ a própria universidade.


Nós, da universidade, somos muito semelhantes à mídia de largo alcance. Nós não enxergamos esta população. Os sistemas escolares clássicos, que hoje, de certa forma, estão universalizados, também não conseguem enxergar esses segmentos da população.


Professores de Caxias não moram em Caxias


Vou relatar um fato. Fui convidado para ser consultor de um projeto chamado Paz nas Escolas, da Prefeitura de Duque de Caxias. Capacitação, formação e treinamento dos professores da rede municipal para discutir a questão da tolerância.


A minha primeira questão nesse trabalho, com mais de 600 professores, foi perguntar: “Qual de vocês mora em Duque de Caxias?” Só 55. Os professores da rede municipal de Duque de Caxias moram em Copacabana, Leme, Botafogo, Humaitá, Ilha do Governador, Olaria, Penha, e têm uma visão estigmatizada e discriminatória da Baixada Fluminense. E já partem do princípio de que nenhum tipo de trabalho educacional pode ser feito, porque aquela realidade não vai mudar. Mas eles não deixam de ser professores, continuam lá recebendo. Aliás, os salários dos professores de Duque de Caxias são os maiores salários de professores do estado do Rio de Janeiro [Caxias é sede de uma refinaria da Petrobrás e a prefeitura tem receita relativamente alta; nota de MM]. E eles, na sua agência discursiva, a tribuna da sala de aula, reproduzem a discriminação territorial, e classificam a Baixada Fluminense como local de violência, e discriminam em função de questões étnicas, de gênero, e todas as outras discriminações, reforçando o imaginário gerado da ponta de cima do pião, e fazem com que esses segmentos da sociedade atuem dirigidos para a violência e para uma baixa estima como seres humanos e como cidadãos.


Conflitos civis são classificados como movimentos manipulados



Essa realidade começa a mudar na medida em que esses atores sociais, que são invisíveis, começam a se manifestar e querer, parodiando o rock paulista, “invadir a praia” dos privilegiados, ou, para usar um samba do Zeca Pagodinho, “abrir nesta praia um sol pra mim, porque tem pedaço que é meu no teu pudim”.


Isso gera revoltas populares, conflitos civis que são sumariamente classificados como movimentos manipulados pelo crime organizado e pelo narcotráfico ligado ao crime organizado.


Aí entra uma questão que eu bato de frente. Existem muitos grupos e territórios controlados de forma despótica pelo tráfico – na minha tese eu demonstro claramente isso, sobretudo na Rocinha. Em todo o Brasil há donos que controlam o território e, ao controlar o território, controlam as instituições públicas nesse Estado simbiótico à sociedade civil organizada.


Os grupos desclassificados começam a se movimentar, de forma violenta, num primeiro movimento tentando ser reconhecidos como seres humanos e num segundo movimento, aí de natureza política mais sofisticada, exigindo direitos de cidadania.


Nesse sentido, as igrejas, todas elas, têm um papel muito importante, e, paradoxalmente, os partidos políticos considerados conservadores, ou de aluguel, também têm um papel político importante. Na medida em que o clientelismo é a base da ação política, age no sentido de responder àquele ser humano como ser humano e lhe confere direitos de cidadania, via Estado, o que reproduz as velhas teses de Victor Nunes Leal e de Maria Isaura [de Queiroz].


Por isso a minha tese se chama “A Tradição Reconfigurada – Mandonismo, Poder Local e Municipalismo no Município de Nilópolis e na Rocinha”.


PM no Brasil, paralelo com Máfia na Itália


É verdade também que a grande expansão da Região Metropolitana do Rio de Janeiro está fazendo com que surjam duas idéias de poder local. Um poder local municipal, bem caracterizado em Nilópolis, Caxias, São João de Meriti, Seropédica, e poderes locais em que o município não é caracterizado. No Complexo da Maré, ou no Complexo do Alemão, ou no complexo da Ilha do Governador, ou na Rocinha, cada território tem um déspota local, com leis próprias, regras próprias.


Eu, na minha tese, arrisco começar a formular um conceito de narcopoder e acredito que a expressão “crime organizado” para definir as bocas de fumo nas favelas é o que eu chamo de variável de distorção, de embaçamento ou de obstrução. Porque o crime, para ser organizado, necessita de uma boa estrutura de lavagem de dinheiro e proteção, para que as ações ilícitas ocorram.


Nesse sentido eu me filio a uma análise da professora Jacqueline Muniz que diz que no Brasil as Polícias Militares, cujo papel constitucional definido é fazer o policiamento ostensivo – Polícia Civil não faz policiamento ostensivo, é cartorial –, desempenham o papel que a Máfia italiana desempenhou. São elas que vendem a proteção. São elas que vendem a mercadoria política que permite toda e qualquer forma de ação ilícita, que vai desde os desvios mais simples até a ponta do que começa a ser o crime organizado, a venda de armas e munições, a chegada da cocaína, do crack, das drogas sintéticas, da maconha; o crime de receptação, especialmente na Baixada Fluminense, que são as cargas roubadas, toda uma organização para receber essa receptação e a distribuição disso por via legal, o esquema financeiro, que não é tocado – esse dinheiro vai para algum lugar, e esse lugar é o sistema financeiro, o mercado financeiro, entra como dinheiro de igreja e sai com certificado de dinheiro lavadinho, novo, seguro.


O crime organizado existe no Brasil, mas não é este que dizem nas páginas dos jornais ou nos livros de sociologia ou de história. O crime organizado está com o eixo organizacional centrado nas organizações policiais, que vendem proteção, e nas suas conexões com o Estado formal, os poderes legislativos, executivos e judiciário. A Constituição brasileira estabeleceu um novo pacto federativo que inclui um novo ente federado, o município, que é equipotente ao estado federado, à União e ao Distrito Federal, e os prefeitos e vereadores estão começando a descobrir isto agora. Este ente federado só não tem o poder judiciário, mas tem boas relações com o poder judiciário estadual e federal via ação policial.



O Estado não está ausente das favelas


Por isso é que quando eu escuto falar em ausência do Estado me dá uma certa irritação. Eu estudei dois anos e meio a Rocinha. A Rocinha tem todos os serviços públicos e privados que se possa imaginar. Tem um arrecadação formal altíssima. Tem uma sonegação de impostos fortíssima, independentemente do comércio ilegal de drogas e de armas, que também é muito elevado, graças às facilidades da classe média endinheirada para ter acesso à compra de drogas na Rocinha. E a receptação de roubo de cargas e combustíveis, esquema que a Baixada Fluminense comanda via a antiga organização dos bicheiros.


Paralelos a isso existem os grupos de extermínio que, de maneira lastimável, os nossos colegas da universidade e dos jornais chamam de milícias, uma palavra valorativa. Alguns chamam de grupos comunitários de autodefesa, expressão também valorativa para a população. Na verdade, a história das milícias está muito bem descrita no livro do José Cláudio [Souza Alvez; ver ((…página do índice…))]: 1) é o Estado que organiza as milícias; 2) a ação das milícias está centrada na divisão territorial dos batalhões da Polícia Militar e nas Delegacias Policiais. E são os agentes públicos, utilizando a estrutura do Estado, que atuam fazendo a venda de proteção, venda de mercadoria política. E passam a vender proteção diretamente ao consumidor, tirando de cena o traficante, mas sem destruir, com isso, o despotismo local. Outra falácia é dizer que onde tem milícia tem direito de ir e vir… As regras são as mesmas do despotismo local, um despotismo que não segue o ordenamento jurídico brasileiro e no qual as regras são definidas pelo dono do pedaço. O dono do pedaço é definido pelo Estado: ou o comandante do batalhão, ou o delegado de uma delegacia distrital, e eles agem juntos, porque no estado do Rio de Janeiro há as áreas integradas de segurança. Mas a ação é mais da Polícia Militar, porque a Polícia Civil recebe algo via PM ou via os poderes políticos locais, junto com os poderes econômicos locais: os comerciantes. Daí eu até citar um filme baseado num livro da romancista Patrícia Melo * * O Matador, * * O Homem do Ano [de José Henrique Fonseca], com roteiro de Rubem Fonseca, que demonstra muito bem a dinâmica dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense e na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, em que os poderes políticos locais, associados aos poderes econômicos locais – comerciantes, industriais –, financiam o aparelho estatal para agir de maneira ilegal…


E agora usam também o termo para-militar, também um termo de natureza valorativa. O livro do José Cláudio mostra muito bem a formação dos grupos de extermínio através de um aparato legal, a formação, no início da década de 60, da Guarda Noturna de Duque de Caxias, que agia legal e ilegalmente.


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