Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Críticas 100% certas

O físico Francisco Antonio Bezerra Coutinho e o médico Eduardo Massad, ambos professores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, assinam no Valor desta sexta-feira, 22, o artigo “A mídia poderia ajudar”.

O texto trata de um aspecto raramente mencionado da crônica dificuldade de muitos jornalistas em lidar com números – o que os autores chamam de “uso abusivo de porcentagens” nas matérias, enchendo a cabeça dos leitores com cifras que parecem uma coisa e signficam outra.

É o caso de dizer que, embora os professores tenham perpetrado em dado momento do artigo a nefanda expressão “pequenos detalhes”, como se pudessem existir detalhes grandes, as suas críticas estão 100% certas.

Confiram.

“O Brasil tem um problema educacional grave: são muitas as pessoas analfabetas ou funcionalmente analfabetas no país. Melhorar este padrão de educação tem sido, assim, tema de campanha de praticamente todos os candidatos à eleição ou reeleição a qualquer cargo eletivo no governo. O problema existe e a mídia pode ajudar a resolvê-lo. Entretanto, às vezes ela atrapalha em vez de ajudar. Como?

Para responder, vamos considerar não as pessoas analfabetas, mas os brasileiros alfabetizados, que leem jornais diários, publicações mensais, ouvem rádio e veem os noticiários nas TVs – têm, portanto, todo o direito de se considerarem informados dos fatos e capacitados a emitirem opinião abalizada sobre praticamente qualquer assunto. Ora, é exatamente nesse aspecto do grau efetivo de informação da população escolarizada que a mídia poderia, de fato, contribuir muito para sua elevação, se detivesse mais atenção em pequenos detalhes. E aqui queremos abordar apenas um dos hábitos desagradáveis de nossa mídia, enfatizando que é um problema do conjunto dela, sem nenhuma exceção. Trata-se do uso abusivo de porcentagens para ‘ajudar’ os leitores a avaliar melhor e/ou comparar os números apresentados nas reportagens. Vejamos alguns exemplos muito claros nesse sentido:

1) Perdendo tempo: a variação da cotação do dólar em porcentagem.

O dólar é invariavelmente apresentado como tendo subido (ou descido), digamos, 25% para o nível de R$ 2,00 por dólar. Foram dados dois números. E se o leitor desejar saber quanto ganhou (ou perdeu) em real terá que fazer contas. Suponhamos que o leitor tenha US$ 100 e queira saber quanto ganhou em reais. É fácil ver que quem tinha cem dólares agora tem R$ 200,00. Entretanto, não é tão fácil calcular quanto se ganhou. Podemos concluir que antes da subida os US$ 100,00 valiam R$ 160,00 e que o leitor ganhou R$ 40,00.

Se em vez disso tivesse sido apresentada a queda (ou subida) do dólar em reais e o valor final do dólar, a conta a fazer seria apenas uma (de soma ou subtração). Portanto, a noticia correta, informativa e simples seria: ‘o dólar subiu 0,40 centavos em relação à cotação anterior, fechando em R$ 2,00’.

Conclusão: Não há nenhuma vantagem em apresentar a variação porcentual do dólar. Seria desejável não usar porcentagens que levam à necessidade de se fazer mais cálculos para se chegar a um resultado útil.

Mas neste caso, diria o leitor, não se perdeu muito. Afinal são apenas cálculos extras. Veja a seguir como o uso de porcentagens vai levando o leitor à erros gradativamente mais graves.

2) Confundindo tudo: o aumento da produção do petróleo no Brasil em relação ao mundo.

Considere a seguinte notícia: ‘No Brasil o aumento da produção de petróleo em 2007 foi de 30%. Este aumento é espetacular quando comparado com o aumento da produção mundial que no mesmo período foi de apenas 5%’. Vamos agora mostrar que quem leu, ouviu ou viu essa noticia, não ganhou nenhuma informação relevante. Afinal, o aumento da produção em barris no Brasil foi maior ou menor que o aumento de produção do mundo? Pela notícia dada pode ter sido maior ou menor! Suponha que o Brasil tivesse produzido 10 barris de petróleo em 2006 e 13 barris de petróleo em 2007. O aumento de produção, três barris, daria um aumento porcentual de 30%. Por outro lado o aumento mundial de ‘apenas’ 5% seria maior se a produção mundial fosse de 100 barris. (5% de 100 ou 5 barris). Ao contrário, se a produção mundial de petróleo tivesse sido de 40 barris, o aumento de 5% teria sido dois barris, ou seja, menor do que o aumento da produção brasileira.

Em vez disso, o aumento deveria ser dado em barris de petróleo nos dois casos, para o Brasil e para o mundo. A vantagem seria que, diferentemente da situação em que são dadas variações porcentuais de duas grandezas diferentes, informação relevante teria sido transmitida.

Conclusão: O uso de porcentagem para comparar crescimento ou diminuição de coisas diferentes é errado. Quase invariavelmente pode dar uma impressão falsa das variações que se deseja comparar.

3) Errando feio: o uso de porcentagens em medicina.

Para terminar, vamos apresentar um exemplo de erro crasso que se pode cometer ao imaginar que percentagens podem ser promediadas, somadas ou subtraídas. Suponha-se, por exemplo, que dois pesquisadores médicos, X e Y, tenham resolvido fazer uma pesquisa sobre a eficiência de certo remédio. Para isso o doutor X escolheu 140 pacientes, tratou 100 com a droga em questão e 40 com placebo (substância inerte). Entre os tratados com a droga, 66 se recuperaram. Um sucesso de 66%. Entre os pacientes que receberam placebo 60% se recuperaram e assim o doutor X não tem muita dúvida de que o remédio é marginalmente eficiente. Já o doutor Y escolheu 700 pacientes, tratou 200 com a droga e 500 com o placebo. Entre os que tomaram a droga, 180 se recuperaram, isto é, 90% dos casos. Já entre os que tomaram placebo apenas 430 se recuperaram isto é, 86% dos casos.

Vale notar que nos dois estudos o porcentual de casos bem sucedidos entre os tratados é maior que o porcentual de casos bem sucedidos entre os que se trataram apenas com o placebo. Parece não haver dúvida que o remédio promete. Verdade? Infelizmente não! Deve-se perceber que juntando todos os casos, entre os tratados com a droga, ou seja, 300 indivíduos, apenas 246 foram bem sucedidos, isto é 82%, enquanto que entre os tratados com o placebo, 454 indivíduos, isto é 84%, curaram-se. O placebo, na população combinada das duas amostras, parece melhor que o remédio!

Caso o leitor fique, mesmo momentaneamente, surpreso com o exemplo, fica demonstrado que o uso abusivo de porcentuais já o está afetando. O resultado não é milagroso: apenas mostra os perigos de se tentar tratar proporções como se fossem números que podem ser promediados, somados, etc. Em geral não podemos fazer isto. A mídia poderia ajudar a educação brasileira usando frações mais parcimoniosamente e não a todo o momento e em todos os casos. Este exemplo foi tirado do livro ‘Why buses come in threes?’, [por que os ônibus vêm em trincas?] cujos autores são Rob Eastway e Jeremy Wyndham.”