Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Debate busca raízes da violência

Nada conspira tanto contra a compreensão da crise da segurança pública no Brasil quanto a sucessão de acontecimentos terríveis que põem a mídia e a opinião pública em estado permanente de sobressalto e tensão. A mídia não pode, é claro, brigar com os fatos. Acompanhar os acontecimentos, antes de mais nada descrevê-los, é condição indispensável para tentar compreendê-los. Sem esse entendimento mínimo é impossível produzir uma reflexão séria e, portanto, uma ação política – em todos os sentidos da palavra – eficaz.

Em contraponto à dinâmica jornalística da mais recente onda de violência criminosa, que aterrorizou a população do Rio de Janeiro e do Brasil nos últimos dias de 2006, o Observatório da Imprensa organizou em 5 de janeiro de 2007, com a ajuda dos professores Jorge da Silva e Roberto Kant de Lima, o primeiro de uma série de debates sobre criminalidade, violência, políticas públicas e trabalho da imprensa.

Os participantes foram, além dos dois professores citados e do autor destas linhas, o promotor Astério Pereira dos Santos e os jornalistas Jorge Antônio Barros, editor adjunto de Cidade do jornal O Globo, Sérgio Torres, repórter da sucursal carioca da Folha de S. Paulo, e André Luiz Azevedo, repórter da TV Globo.

O leitor encontra aqui a edição da primeira parte desse debate. Nos próximos dias será publicada a segunda parte. [Clique aqui para ler a segunda parte do debate.] O tratamento do texto é trabalhoso porque se trata da transcrição quase literal de uma gravação. Evita-se assim incorrer nos vícios da edição que “adapta” falas até que elas se amoldem a uma concepção inicial do repórter ou do editor. Não se trata de encerrar a conversa, mas de iniciá-la diante do público leitor.

 

O jornalista não se limita a narrar os fatos como se fosse os olhos da sociedade. Ele os seleciona e os interpreta. Sempre. E na presente introdução não se foge à regra. O debate é transcrito de forma extensiva. Mas procuro aqui sintetizar as impressões que me deixou o encontro.

Se tudo “der certo”, dará errado

A mais abrangente, a que me parece mais relevante, não é nada animadora: se todas as “boas” medidas (medidas “corretas”, à luz do senso comum e das melhores intenções de autoridades, especialistas e homens da imprensa) ora propostas pelos governantes funcionarem, a crise social brasileira, da qual a criminalidade em larga escala é indissociável, pode piorar.

 

Isso porque são medidas calcadas numa lógica repressiva. E essa lógica repressiva já deu demonstrações abundantes de que não melhora, mas piora a situação. A crise que se vive hoje é a crise do modelo repressivo, nunca abandonado. O abuso da repressão é antidemocrático, enfraquece a autoridade e alimenta a corrupção. Isso fica bem patente na primeira parte do debate.

 

Estruturas sobreviventes da ditadura

A segunda conclusão é que as estruturas de espionagem a serviço da repressão política da ditadura não foram desmontadas. Viraram lucrativa indústria dentro do, à margem do ou mesmo contra o Estado. Onde se lia “informações” hoje lê-se “inteligência”. Sem que a participação política dos cidadãos tenha sido, até agora, capaz de colocar essa inteligência e essas informações a serviço de plataformas de governo apoiadas nas urnas. Isso aflorou na segunda parte do encontro.

Destaco em seguida algumas contribuições dos debatedores na primeira rodada da conversa.

 

Para Jorge Antônio Barros, por incrível que pareça o Rio de Janeiro já viveu uma situação urbana pior do que a atual. Em 1995, foram registrados cerca de 8.400 homicídios, número que caiu mais de 20% em 2005. Uma redução sentida mais pelos habitantes da periferia e dos bairros pobres do que pela classe média, que se vê cada vez mais acuada. Barros se mostrou preocupado com o grau crescente de corrupção nos organismos policiais.

Roberto Kant de Lima é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fez mestrado em Antropologia pelo Museu Nacional, da UFRJ, doutorado em Antropologia por Harvard e pós-doutorado pela Universidade de Alabama e pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele recapitulou a trajetória de uma Polícia voltada desde a constituição da nação brasileira para a segurança do Estado. Um Estado que classificou como oligárquico.

Jorge da Silva é coronel da reserva da PM do Rio de Janeiro. É formado em direito pela Universidade Federal Fluminense. Fez mestrado em Letras pela UFF e doutorado em ciências sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). (Clique aqui para ter acesso à tese de doutorado em pdf.) Foi subcomandante da PM no segundo governo de Leonel Brizola (1991-1994), presidente do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (governo Anthony Garotinho, 1999-2002) e secretário de Direitos Humanos (governo Rosinha Garotinho, 2003-2006). Silva disse que a ideologia tradicional no Brasil sempre foi ter lei e ordem para conter as massas, não para integrá-las. Classificou como um equívoco a idéia de que a questão da segurança se resolve com o emprego da Polícia. Disse também que uma Polícia violenta é sempre corrupta.

Astério Pereira dos Santos é oficial da reserva da PM do Rio de Janeiro. Formou-se em direito pela UFF. Foi diretor de presídios entre 1975 e 1981. Foi promotor da Vara da Infância e da Juventude. No governo de Rosinha Garotinho, foi secretário de Administração Penitenciária. No governo de Sérgio Cabral (iniciado em 2007), tornou-se coordenador de Segurança e Inteligência do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ele contou sua experiência do tempo em que a administração penitenciária do Estado do Rio estimulou, com a ajuda da mídia, o surgimento de facções criminosas.

Da vivência como promotor da Vara da Infância e Juventude, Astério relatou diálogo freqüente com familiares de jovens infratores: “Doutor, meu filho só vende. Meu filho não usa arma. (….) O pior, o senhor sabe, tem várias pessoas que aparecem aí, todo dia, na sociedade, importantes, que vão lá comprar com ele”.

Em relação à corrupção policial, Astério mencionou algo que iria ser manchete no Globo de domingo, (14/1): comandantes de batalhões da PM e delegados não podem ignorar sinais de riqueza incompatíveis com a remuneração de seus subordinados.

Sérgio Torres vinculou a piora da situação no Rio, desde a primeira metade dos anos 1980, à chegada maciça de cocaína e armas pesadas “por interesse econômico de fora para dentro”. Na década seguinte, disse, as quadrilhas se consolidaram com algum verniz ideológico, traduzido em práticas assistencialistas, verniz que já se perdeu. Ficaram apenas bandidos “sanguinários, maus ao extremo, e drogados, dependentes”.

Sérgio desejou que as ações do novo governo sejam bem-sucedidas, mas manifestou ceticismo: “Todo início de governo é proativo. Eles vão para a rua, vão para hospital, reúnem gente. Tomara que dê certo. Mas sou, por tendência, um pouco pessimista”.

André Luiz Azevedo contou que no início da década de 1970, quando trabalhou na Rádio Jornal do Brasil, a emissora nem sequer tinha repórter de Polícia. Depois, a intensificação da violência levou a uma mudança nas redações.

Ele afirmou que o noticiário de Polícia tem muito mais destaque no Rio do que nas demais regiões do país devido às características geográficas da cidade e ao modo de trabalhar de sua imprensa, que chega mais rápido aos acontecimentos. André Luiz se disse chocado com a denúncia de corrupção que provocou a demissão da TV Globo do jornalista José Messias Xavier. 

UFF pesquisa segurança pública

O anfitrião do encontro foi o professor Kant de Lima, coordenador executivo do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas. Ele explicou que o Nufep, vinculado ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, liga-se academicamente ao mestrado e ao doutorado de Antropologia, que tem uma linha de pesquisa sobre segurança pública, conflitos e democracia. Além disso, é o núcleo executivo de inúmeros projetos, entre os quais existem cursos sobre segurança pública ministrados não só para agentes de segurança como também para o público em geral. Entre esses cursos, um é para Guardas Municipais e outro, financiado pela União Européia, faz parte do currículo dos oficiais superiores (capitães, majores e tenentes-coronéis) da PM. Delegados de Polícia há dois anos freqüentam o curso, como forma de integração.

“Com esses cursos a universidade não pretende fazer a cabeça de ninguém, nem tentar ensinar a ninguém coisa nenhuma”, disse Kant, “mas ela discute com essas pessoas as coisas que sabe, para que, num ambiente acadêmico, se desenvolva uma reflexão crítica sobre os problemas da segurança pública que afligem a todos”.

A iniciativa do encontro foi do Observatório da Imprensa. Como os convites, por correio eletrônico, haviam sido lacônicos, era necessário combinar ali mesmo as regras da conversa. Foi explicado aos presentes que a finalidade seria a publicação no mais curto prazo possível de um relato da reunião. Embora se tratasse de uma reunião fechada, os jornalistas presentes deveriam ficar à vontade para usar as informações e organizar pautas a partir das falas.

A proposta de organização do debate se estruturava em torno de metáforas espaciais, para obter três tipos de contextualização. Primeira, vertical, no tempo, confrontando-se as diferentes periodizações oferecidas pelos presentes. Segunda, horizontal, uma contextualização “temática”. Quando se fala em segurança pública, não se trata apenas de polícia e justiça. Há muitos outros temas envolvidos: sociais, políticos, econômicos, simbólicos, comunicacionais ou midiáticos, territoriais ou urbanísticos, logísticos (transportes), étnicos (muito relevantes no Brasil). E seriam possíveis, ainda, especificações, subtemas, como educação, saúde, saneamento. A terceira contextualização seria novamente vertical: o que é superfície e o que é mais profundo (ver entrevista com Paulo Baía em 29 de dezembro).

Como sair da superficialidade praticada principalmente por autoridades e pela mídia de massas (ou dita de massas, porque a imprensa no Brasil atinge relativamente pouca gente)? Há muito as autoridades aprenderam a “formatar” seu discurso para o tempo ou o espaço exíguo disponíveis nos veículos, ou para se conformar às “pensatas” da mídia, ou para responder a jornalistas pouco preparados. E a mídia também trabalha num registro que muitas vezes acata mansamente o “declaratório” oficial.

Em seguida, a transcrição da primeira rodada de intervenções. Entretítulos e explicações entre colchetes acrescentados por mim.

“Por incrível que pareça, já foi pior”

Jorge Antônio Barros – Eu acompanho a questão da segurança desde 1981, quando comecei no Jornal do Brasil como repórter da área de Polícia. Eu sonhava ser crítico de artes plásticas… Minha percepção, basicamente, por incrível que pareça, é que já tivemos, em termos de violência urbana, uma situação pior. O que estamos vivendo neste momento, e o caso atual é um exemplo claro disso, são espasmos que trazem sempre uma novidade aterrorizante para a população. Cada vez se acrescenta um ponto. Agora foi um ônibus incendiado da Viação Itapemirim que estava de passagem pelo Rio, eram pessoas que nem iam ficar no Rio. E houve mais mortes do que no caso do 350 [ônibus incendiado da linha 350 (Passeio-Irajá), na Penha, em novembro de 2005; morreram cinco pessoas, entre elas um bebê de um ano]. Em cada espasmo desses há um fato, ou um conjunto de fatos, que aterrorizam mais a população. Mas, por incrível que pareça, acho que a situação da violência urbana como um todo já esteve pior. Em meados da década de 1990 nós chegamos ao ápice do número de homicídios – por ano, no Rio, me corrijam se eu estiver errado, em 1995, devem ter ocorrido 8 mil homicídios…

Jorge da Silva – … 8.438

Jorge Antônio Barros – … e era um número que estava mais ou menos estabilizado. E diminuiu [6.620 em 2005; as estatísticas estão no site do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes; clique aqui para ter acesso aos dados]. Parece que não é nada. Essa redução do número de homicídios não afeta diretamente nem as classes médias, nem o público que lê jornal, um público pequeno, mas afeta o cotidiano da periferia, da Baixada Fluminense, das favelas. Este é o ponto principal: já esteve pior.

Ninguém estuda a fundo a corrupção

Uma questão fundamental nesse processo, e esta piora cada vez mais – me preocupa que ninguém esteja preocupado em medir exatamente isso – é o nível de corrupção das polícias. Não conheço ninguém fazendo uma pesquisa profunda sobre isto: como a corrupção está crescendo dentro do aparelho policial, cooptando cada vez mais níveis dentro das corporações, tanto na Polícia Civil como na Polícia Militar, e na Federal, também, que tem seus problemas, mas eles são menos expostos.

A questão da corrupção está por trás desses espasmos.

No símbolo da PM, a coroa do rei de Portugal

Roberto Kant de Lima – O Rio tem uma situação muito especial quanto à representação da cidade em relação às forças de segurança pública, e, em conseqüência disso, apresenta divisões que não são perceptíveis dessa maneira em outros lugares do Brasil, especialmente no Sul. O Rio foi a única cidade que se tornou a sede do Reino de Portugal. Desde que nós tivemos Brasil, Estado brasileiro, a polícia teve essa marca. Nossa Polícia Militar tem até hoje em seu símbolo a coroa do rei de Portugal. A escola de formação da PM no Rio se chama D. João VI. Isso não acontece à toa. As forças de segurança se apresentam como segurança do Estado. E não é algo que vem do regime militar. É muito mais antigo.

Segurança para um Estado oligárquico

E que Estado é este? É um Estado profundamente elitista, cujas elites não são cidadãs, são oligárquicas. Quando se implanta no Império uma desigualdade entre brasileiros – as ruas aqui de Niterói são todas “Barão de Baependi”, Visconde de não sei das quantas; tudo brasileiro, não é português, não – desigualdade entre brasileiros, escravidão, que é também desigualdade jurídica… Uma sociedade de desiguais.

Quando se vai para a República, temos oligarquias. E, quando há um governo centralizado, com Getúlio Vargas, a Polícia desempenha um papel fundamental – Filinto Miller, etc. – e finalmente se tem o governo militar, que, por uma série de motivos, contribui para essa visão de que a segurança do Estado é mais importante do que a segurança das pessoas.

Paralelamente a isso se tem o desenvolvimento do Rio como um pólo que atrai gente de todo o Brasil e que aloca essas pessoas desordenadamente, sem nenhuma política de saneamento, por exemplo… favela é o nome genérico para vários agrupamentos que o Estado mesmo fez, ou pessoas fizeram, ou resultaram de invasões não permitidas.

Faltam escolas para socializar cidadãos

Isso cria um problema fundamentalmente educacional. Não temos escolas onde as pessoas sejam socializadas na sua civilidade. Pesquisas que fizemos mostram que a violência doméstica é uma coisa seríssima, porque as pessoas não são socializadas para administrar seus conflitos pacificamente, só sabem a via da força, e não têm onde aprender outra via, porque a escola não chega lá. A escola não é para ensinar matemática, português. Isso é besteira. A escola é para socializar as pessoas para viver coletivamente sem conflito.

Proteção virou mercadoria

E, com uma segurança pública voltada para o Estado,o que provoca esse efeito de corrupção que o Jorge [Antônio Barros] mencionou, porque esse Estado é apropriado particularizadamente. Então se vende, com a maior tranqüilidade, a proteção que esse Estado pode dar. Transformou-se isso numa mercadoria. No caso das milícias, virou mesmo uma mercadoria. Vende-se a proteção. É igual à máfia. E sai no jornal: tem gente que gosta, diz que é bom.

A ideologia sempre foi conter, não integrar

Jorge da Silva – Para dar uma periodização, posso falar da minha experiência. Começo pela década de 80, em que temos Brizola voltando do exílio e assumindo o governo do estado. Ele entra na contramão da ideologia das camadas mais altas, que é a ideologia tradicional de sempre ter lei e ordem para conter as massas. A ideologia tradicional do Brasil sempre foi essa, de conter, não de procurar integrar.

Gangorra eleitoral: “lei e ordem” X “direitos humanos”

Instaura-se no Rio de Janeiro uma espécie de gangorra eleitoral. Quatro anos depois [Moreira Franco, 1987-1990], sobe o lado de lei e ordem. “Vamos acabar com a violência em 100 dias”. Quatro anos depois [Brizola novamente eleito, 1991-1994], novamente o discurso dos direitos humanos. Quatro anos depois [Marcello Alencar, 1995-1998], o discurso de lei e ordem, inclusive com promoções por bravura, a “gratificação faroeste” [que alguns definem como um estímulo monetário do tipo “matou mais, ganhou mais”].

Equívoco: imaginar que Polícia resolve a questão da segurança

Na minha percepção, como pessoa que trabalhou na segurança pública a vida toda, há um equívoco fundamental nas duas propostas: imaginar que a questão da violência no Rio de Janeiro, em qualquer lugar, se resolve com a Polícia. O problema estaria em como usar a Polícia. “Se se usar dessa forma, resolve-se. Se se usar daquela forma, resolve-se”. Esse é o grande pecado nas duas maneiras de ver a coisa.

Cidade cada vez mais partida

Outro problema. Zuenir Ventura foi muito feliz em falar de cidade partida [título de um livro] – é uma sociedade muito fragmentada. As pessoas têm citado muito ele. Mas, partida, e daí? O que fazer para que ela não seja partida? E o que se observa é que a partir daquele momento as coisas ficam mais partidas ainda. O que se vê são grupos se auto-segregando em carros blindados, em condomínios fechados. Então, está estabelecido: temos aqui duas sociedades e quem tiver mais poder e voz vai contar com os serviços públicos de forma privada. As camadas mais altas da sociedade querem a Polícia a seu serviço contra os indesejáveis.

Impossível ignorar a questão racial

Quem são eles? Uma coisa muito problemática é que está fora da discussão, observa-se isso e fica-se muito perplexo, as pessoas descartaram totalmente a questão étnica, a questão racial. “Este não é um problema”. Como é que se discute a violência numa cidade como o Rio de Janeiro, que na sua origem é uma cidade negra – era negra no final do século XIX – e isso não é um problema?…

Kant de Lima – E escravocrata.

Jorge da Silva – “Não, isso não é um problema”. No mundo acadêmico e na própria mídia há uma atitude ferrenha contrária a qualquer manifestação de estudos e pesquisas que tragam essa questão à tona. Quando o Mauro fala: “Vamos mergulhar um pouquinho mais fundo”… Talvez não seja nem o papel da mídia. Com os fatos acontecendo, como ela vai parar e ficar analisando? Mas acho que o papel da academia, principalmente, dos intelectuais, é dar esse mergulho e proporcionar material para aqueles que estão no dia-a-dia num timing totalmente diferenciado.

Polícia violenta é Polícia corrupta

Outra coisa, já mencionada, é essa questão da corrupção. Alguns anos atrás eu escrevi um artigo sobre a corrupção e a violência dizendo que é uma grande ilusão das elites políticas, intelectuais, econômicas imaginar que se possa ter uma Polícia violenta que não seja corrupta. Não tem como. Por quê? Porque uma polícia, para ser violenta, precisa trabalhar acima da lei. E por que iria trabalhar acima da lei só para praticar violência e não para praticar corrupção?

Outro erro muito presente nas análises sobre a atuação da Polícia é que segurança vira sinônimo de polícia. Segurança é outra coisa, muito mais ampla. E imaginar que a Polícia existe no vácuo, que a Polícia não integra um sistema de justiça criminal, com Ministério Público, com atuação dos advogados criminais nas delegacias, na rua. E que a Polícia também não integra a sociedade que está aí. As análises sobre a Polícia, a segurança, a corrupção devem ser feitas sempre dentro de um contexto.

 

Astério Pereira dos Santos – Eu também gostaria de falar da minha experiência. Eu trabalhei na inteligência e contra-inteligência do governo estadual – aliás, colocado por influência do Jorge [da Silva] – em 1971, 72…

Mauro Malin – … Governo do Estado do Rio antigo [governador Raimundo Padilha]…

Astério – Mas isso eu apaguei do currículo… Isso foi tão grave, porque quando terminou o governo, o Padilha terminou muito mal com [a chegada de] Geisel, porque ele tinha sido líder do Costa e Silva na Câmara dos Deputados, cortaram o salário dele, a fusão [com a então Guanabara] já era uma represália, no entendimento nosso, dos que aqui estávamos.

O Astério vai e se apresenta à fusão da Polícia [Militar] lá no Rio de Janeiro. Isso foi em 15 de março. No dia 11 de abril eu fui chamado ao Quartel-General e designado para dirigir um presídio, o Presídio Geral do Estado [em Niterói, atual Instituto Penal Edgar Costa]. Como o Jorge [da Silva] sabe, todos os diretores que passaram por lá, inclusive as figuras mais honradas que nós conhecíamos – por exemplo, o coronel [PM] Taveira –, foram processados. Eu achei que aquilo era uma represália em função de eu ter servido com Raimundo Padilha.

Cheguei lá, me apresentei, disse: “Eu não gostaria de ficar dirigindo presídio porque estou numa função praticamente civil há muito tempo, gostaria de fazer uma readaptação. Aí ele [o comandante] chamou todo mundo e disse: “Olha aí. Lá no Estado do Rio o sujeito escolhia para onde ia! Meu filho, é uma ordem. Você vá e assuma”. Eu fui e assumi, tudo bem. Fiquei aqui em Niterói um período, depois fui para a Água Santa [Presídio Ary Franco, no Rio]. Fiquei sete anos e onze meses nessa função até que saí, entrei no governo Brizola em 1983. E reincidi [risos], voltei agora, em 2003, depois de um período na Vara da Infância e Juventude [como promotor].

Eu tenho uma visão do que eu chamo de criminalidade na horizontal, essa que você prende Bem-Te-Vi ou mata Bem-Te-Vi, o “Curió” assume a função e no dia seguinte não há nenhum prejuízo à “organização” que aí está.

Surgem as facções

Eu posso dar um depoimento daquele período, quando surgiu a idéia primeira das facções, de organização, o nome naquela época era Falange. A primeira vez foi em razão do contato daqueles presos com presos políticos numa galeria na Cândido Mendes [Colônia Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, hoje extinta]. Não só na galeria: quando vinham para depor em juízo [no Centro do Rio, o que implicava uma viagem de barco], eles ficavam juntos. E depois o diretor geral [do sistema penal fluminense], Augusto Thompson, auxiliado pelo nosso companheiro Aluísio Russo, que já faleceu, e era o coordenador, teve a idéia sábia: “Ah, é crime político” – já que a legislação da época classificava no artigo 27 da Lei de Segurança Nacional assalto a banco como crime político, colocou todos do assalto a banco junto aos presos políticos.

Na ausência do Estado, solidariedade

A idéia de solidariedade, de confraternização, de amizade se desenvolveu mais devido à ausência do Estado – a troca do sabonete, a cessão do papel higiênico. E esse grupo começou a dizer: “Nada de greve de fome. Vamos partir para greve de trabalho, já que a estrutura toda é dependente da gente”. Nós ficamos praticamente reféns. Quando eles paravam na greve de trabalho, não tinha comida, não tinha administração, não tinha nada, e havia um domínio total deles em razão disso.

Surge em seguida um documento feito pelo capitão Salmon [Nelson Bastos Salmon] falando dessa Falange Vermelha. Em contrapartida, aqueles que estavam excluídos por eles fundaram a Falange do Jacaré, que deu origem ao Terceiro Comando, posteriormente. [Esses episódios são descritos com bastante minúcia no livro CV_PCC, A Irmandade do Crime, de Carlos Amorim, 7ª edição, 2006.]

 

André Luiz Azevedo – Por que o nome Jacaré?

Astério – Por causa do Jacarezinho. Tinha um rapaz que era da Favela do Jacarezinho. E depois surgiu um grupo neutro: o Antônio Carlos Lourenço, um preso “cabeça”, não aceitava nenhuma das duas.

Administração dos presídios incentivou facções

 

Isso era muito conveniente para a administração, que incentivava isso. Aí já vinha o papel da mídia [divulgar a existência das facções]. Era conveniente porque a partir desse momento deixou de haver unanimidade. Uma greve de fome nunca mais é uma greve de fome de todos os presos. Uma facção não concordava com a outra e a administração podia dizer: “É um movimento setorial”. E o nosso discurso, como colocou o Mauro, é o discurso de acordo com a mídia. “Parou tudo? É um negócio sério”. “Não, parou só um pouquinho, não há problema”. Dentro dessa visão, isso foi incentivado.

 

Todas essas lideranças tinham um crime de drogas no seu currículo. Poderia ser até 157 [roubo e extorsão com emprego de violência], mas tinha também o tráfico. Surgiu a idéia de se criar uma cadeia só para traficantes. E como essa cadeia tinha várias galerias, uma galeria só para lideranças que têm domínio da comunidade. E alguns secretários batiam no peito: “Todas as lideranças foram presas”. Lideranças da criminalidade horizontal: nenhum desses presos é capaz de fazer um passaporte ou de abrir uma conta bancária. Esse é o crime que você enfrenta: “organizado”.

 

Tem uns detalhes até engraçados. Estávamos fazendo uma escuta, num seqüestro, e um dos bandidos disse [Astério sussurra]: “Fala baixo, porque eles podem estar grampeando a gente” [risos]. Isso desmoraliza a “organização”.

 

Mídia pontua discurso das autoridades

Eu fico preocupado com a relação entre o que a mídia faz e o que as autoridades querem responder. Respondem como? Diz-se que a liderança da Rocinha hoje é Fulano de Tal, o Bem-Te-Vi. Então a meta é prender o Bem-Te-Vi. Prende-se o Bem-Te-Vi. E no dia seguinte o “movimento” [atividade do tráfico] na Rocinha continua.

Vamos passar para o meu período na [Vara da] Infância e Juventude. A ação socioeducativa é diferente da ação penal. Tem-se um contato com a família. Primeiro ouve-se o interno, em seguida vem a família e há um relatório da equipe técnica que vai para os autos.

“Meu filho só vende, doutor”

E normalmente a família diz o seguinte: “Doutor, meu filho só vende. Meu filho não usa arma. Mas a gente precisa, para completar [o orçamento]. Ele ganha mais que o pai dele. Meu filho só vende. O pior, o senhor sabe, tem várias pessoas que aparecem aí, todo dia, na sociedade, importantes, que vão lá comprar com ele. Então, qual é o problema do meu filho?”

 

No tipo penal do tráfico, no artigo 12, ou no 14, especialmente no 12, se alguém estiver vendendo cinco gramas, é preso como se estivesse vendendo uma tonelada, um caminhão. Tudo é artigo 12 e tudo é carimbado dessa forma. Não se pensa em dar um tratamento diferenciado a esse tipo de clientela.

 

Garotos pedem para ficar presos

E esse problema de facções que existe na fase adulta já começou a haver na infância e na juventude. Já tem criança do Comando tal, criança do outro. Muda-se um garoto para a semiliberdade, medida socioeducativa que antecede a internação, o garoto é obrigado a pular, porque é da outra comunidade. Na segunda-feira ele se reapresenta: “Doutor, eu quero cumprir aqui dentro. Não posso ficar fora”.

Até na escola há facções

E você começa a ter que separar. E eu pensava que estava nesse estágio da infância e juventude [refere-se a adolescentes]. Numa reunião da Pastoral Penal eu vi que é mais profundo. Está acontecendo agora na matrícula da escola. Na escola pública, nas comunidades. Não se consegue matricular alguém do Vidigal na Rocinha e vice-versa, seja na escola técnica, seja na escola primária. Já há essa divisão.

Polícia, só, não resolve

Não se pode resolver isso com polícia. Isso requer um enfrentamento de toda a sociedade, diferentes segmentos. Uma vez quase me bateram porque eu disse [na Assembléia Legislativa] que tinha que acontecer um episódio semelhante ao do Tim Lopes para que isso fosse repensado. Porque depois do episódio do Tim Lopes, a imprensa teve uma postura de quem está no mesmo campo que nós. Foi isso que eu quis dizer, na Alerj.

 

Por exemplo: os veículos das Organizações Globo deixaram de nomear as facções. Se todo mundo fizer isso, ajuda muito, porque essas pessoas são tão carentes que precisam desse estímulo. Se uma greve deles não é noticiada, eles ficam preocupados.

 

Acho que é preciso também ter uma mídia responsável. Eu peço até licença para citar aqui um episódio. Há pouco tempo, em maio, houve em São Paulo uma coisa muito séria. E eu ouvi uma crônica do [Pedro] Bial [na TV Globo]. Achei aquilo lindo. “Nós, que batemos tanto na Polícia, vemos agora eles dando a vida por nós”. Fazendo um mea culpa. No fundo, quem passou um tempo na Polícia se sente sempre um pouco policial. Tira-se o paletó, embaixo tem aquela coisa da ordem unida: “Um, dois”. Eu vi aquilo e pensei: Vou procurar alguém, uma autoridade da mídia, que é um poder muito forte.

 

Pesos e medidas na edição

 

Pedi ajuda a um segurança meu que é segurança de um bambambã na mídia, ele se dispôs a me receber, cheguei lá e mostrei o jornal de 9 de maio e o de 11 de maio. No primeiro, Traficante de dentro da cadeia, no Espírito Santo, manda matar um casal. Uma notícia desse tamanhinho na página. Onze de maio: Teleconferência em presídio. De uma repórter do jornal O Globo. Ela até tinha me procurado: Eu tenho um informante radioamador que fala com um preso e esse preso está dando ordem para outra cadeia, através de um rádio ponta-a-ponta, tem a gravação dele mandando dar uma propina de 200 reais para um PM. Isso deu uma página inteira.

Assassinatos em ônibus podem ser ´desvios´

 

Outra coisa. Ninguém quer matar dentro de um ônibus. Por que eu digo isso? Em 2003, havia um trenzinho que levava as famílias da portaria de Bangu até as cadeias e cobrava 50 centavos, um real para lá e para cá, e aquilo era uma fonte de arrecadação de uma ONG que, constava, era de um pastor que tinha uma “parada” errada. O secretário anterior tinha autorizado e eu propus ao secretário de Segurança: Vamos à Fetranspor [Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro] pedir a doação de uns ônibus e vamos mostrar para o preso que a Fetranspor, que está dando os ônibus queimados, é aquela que está ajudando a transportar a família dele. O secretário era o [ex-]governador Garotinho. Ele disse: “Então, vamos botar o nome de Expresso da Paz” [risos]. Eram três ônibus. Pintamos de azul, escrevemos Expresso da Paz, inauguramos, dissemos para os presos: Agora é de graça. Diminuiu a queima de ônibus. É que as pessoas se esquecem. O tempo passa…

 

E agora continuamos tendo essa informação lá de dentro, por meio de diferentes formas de investigação, de que eles não querem, é um erro ter queimado e ter deixado matar. Mas, como um comandante dá uma ordem e é executada de modo diferente, isso acontece também lá.

 

Reação contra as milícias

 

E também não se deve dizer que nesse episódio agora veio tudo da cadeia. Na reunião do comando integrado das Forças Armadas eu disse: “Alto lá. Não é tudo da cadeia, não. Em algumas comunidades onde há liderança, no caso do Alemão o Marcinho VP, ninguém vai fazer nada a partir do Alemão se não pedir ciência do Marcinho. Tem carta pedindo ao Marcinho para autorizar. Existe esse documento. [Marcinho VP é um dos presos que foram mandados para o presídio federal de Catanduvas, no Paraná.] Mas as reuniões [na véspera da onda de ataques de dezembro] foram na Mangueira, na Cidade de Deus, e era realmente revolta com relação à milícia.

 

Não sei por que razão o secretário [de Segurança, que era Roberto Precioso], quando fez um briefingzinho para enfrentar lá a imprensa, disse: “Vou acabar com esse documento aqui”. O jornal tinha publicado um panfleto que fala que a briga era em razão disso [trata-se de um texto em que o nome milícia aparecia grafado “melissia”]. Eu não entendi por que razão ele ia fazer isso e falei: “Discordo de você, não é por aí”. Mas, tudo bem. Ele foi lá e fez um discurso, e eu depois fiz outro, e ele reclamou que falta unidade nos discursos. E eu: “Meia verdade eu até falo, mas mentira não posso falar, fica difícil” [risos].

 

Verificar mapas de votação

E eu, na empolgação, ainda disse mais [para a imprensa]: “Tanto esse negócio de milícia existe que é preciso fazer um levantamento do avanço deles, e é muito fácil fazer isso, porque são zonas eleitorais, verificar quais os três deputados federais e estaduais mais votados nessas áreas”.

Esse é o trabalho de inteligência que tem que ser feito. Assessorar o governo uma política de Estado. Quem está por trás disso? Porque quando se for apurar isso lá, tem gente que vai se manifestar. Se tiver sido o mais votado, não tem legitimidade. Elas estão se expandindo. Não vende droga, mas tem maquininha [máquinas de videopôquer, nova atividade, proibida, dos bicheiros no Rio].

O bar do Telhado Azul

Na primeira [favela tomada pelas milícias], Rio das Pedras, tem um bar que eles chamam de Telhado Azul, diz que tem um quadro de isopor – quem me contou foi um profissional da imprensa em quem eu acredito – onde há vários retratos de autoridades da área de segurança colados. E eu: “Por que você não vai lá e fotografa?” E ele: “Eu não consigo. Os caras ficam o dia todo em cima disso. Eu não sou maluco”. Profissional da imprensa. Nem com uma maquinazinha camuflada ele quer fazer isso.

Inteligência policial dispersa

A inteligência policial é totalmente dispersa, não é concentrada na área da Subsecretaria de Inteligência, por exemplo. A Cispen [Coordenadoria de Inteligência do Sistema Penitenciário] tinha um quartinho de três por três na Secretaria de Segurança Pública, . Eu achei necessário criar um sistema de escuta na administração penitenciária, na [Rua] Senador Dantas [sede da Secretaria de Administração Penitenciária]. Uma determinada autoridade lá [refere-se à Secretaria de Segurança Pública], nesse momento, me disse: “Astério, agora que você já tem uma sala, você já pode me devolver a tua sala, que eu queria botar um outro setor lá”. Eu falei: “Não posso fazer isso. Sabe por quê? Tem um livro aí, diz no quinto capítulo que nós não podemos mexer com isso aí [trata-se da “Política Pública para a Segurança, Justiça e Cidadania do governo do estado do Rio de Janeiro, publicado em 2000, item 3.2.8 – Reestruturação do Sistema de Inteligência, páginas 122 e seguintes]. Você vai lá e fala com o governador”. Nós tínhamos escrito isso aí, o Jorge [da Silva] e eu. Eu já tinha falado com o capitão meu lá na Secretaria de Segurança: “Olha, não sai de lá”. Nós tínhamos que manter aquilo ali para poder interagir.

Coeso, o sistema é forte

Mas independentemente disso existem cinco ou seis escutas diferentes de delegacias diferentes, que não se comunicam. E se isso se integrar, se se integrarem os governos federal, estadual e municipal – o município também é importante: por que as câmeras da Linha Amarela não estão a serviço da segurança pública? Ou não estavam, até o início deste governo? [Sérgio Cabral.]… Vamos integrar as forças, colaborar, independentemente do matiz partidário de um e de outro.

Parece muito salutar que possamos utilizar esses recursos em prol da segurança. Vou repetir algo que o Jorge [da Silva] diz sempre: o sistema é muito forte. Lutar contra o sistema não dá. Se o sistema estiver coeso, não tem jeito, é derrota. Qualquer de nós que se rebele contra o sistema ficará alijado.

Exército relutante

E nessas reuniões é preciso incentivar essa coesão. Me dizia o comandante militar: “Mas eu não posso policiar meu entorno porque eu não tenho poder de polícia”. Eu digo: “Com todo o respeito, general, o senhor não tem poder de polícia, mas quando faz treinamento lá na Tijuca o senhor sai, prende, revista. Em nome da ordem pública”, e eu então explicitei o conceito, “o senhor pode fazer tudo. Se está havendo ameaça a próprios públicos, imagine uma unidade militar. O senhor pode colocar [soldados] ali em torno. Em cima da ordem pública o senhor está autorizado. Não precisa nem de autorização do juiz. Se não, bota um soldado lá na esquina, para garantir o poder de polícia em termos de revista – ´Estava auxiliando o policial´. Se for em flagrante, então, caso em que todo mundo pode…” Mas no momento eles querem tudo dentro da legalidade. Então, tem que montar um documento. Se quiser fazer, é coisa de boa vontade. Dá para fazer o patrulhamento e avançar.

“Só 4% querem continuar no crime”

Para dar uma nota otimista, eu acho que 96% desses excluídos que estão presos querem sair disso [ver nota adiante * ]. Quatro por cento optaram por isso, querem essa vida. E acho muito importante socializar esses rapazes [que constituem a maioria dos presos]. Não só alfabetizar, mas sobretudo proporcionar acesso à arte, ao teatro que eles desenvolvem lá dentro, e hoje eu estou vendo com muita satisfação a penetração desse movimento da Cidade de Deus, que tem ido aos presídios, o Afro-Reggae, a Cufa [Central Única das Favelas], do MV Bill. Você bota todo mundo no pátio da cadeia de segurança máxima e não acontece nada demais. As coisas funcionam, com tranqüilidade. E sobretudo está se abrindo a possibilidade de se instalar, por que não?, uma TV comunitária dentro dessas comunidades todas – isso custa só 500 mil reais, é barato, para se ter um discurso, uma reunião que a gente possa mostrar para eles, uma mensagem religiosa das diferentes religiões em horários predeterminados. Para que todo mundo possa se comunicar, para que o preso tenha um canal com a administração. Eu acho que se pode fazer.

Garantir uma corregedoria atuante e depurar, não aumentar os efetivos

Penso, como disse o meu amigo Jorge [Antônio Barros], que o quadro da criminalidade melhorou, sobretudo os dados de homicídio diminuíram bastante, e podem diminuir mais se houver uma corregedoria atuante. E, ao invés de aumentar o efetivo, nós precisamos depurar o efetivo.

A voz do chefe

E um discurso que eu acho fundamental. Se foi melhor, em algum tempo, a segurança pública, nos diferentes governos, foi porque as pessoas acreditavam em quem estava chefiando. Isso é fundamental. Porque a mão-de-obra vai ser sempre a mesma. As pessoas aceitam o discurso do chefe. E todo mundo quer manter seu emprego. Tem gente que sabe o caminho da ilegalidade, que já praticou, mas pode se enquadrar e começar a mostrar serviço, desde que seja fiscalizado. Mas a gente só costuma apurar a corrupção do policial depois que ele já está com apartamento na [Avenida] Vieira Souto, no Recreio [dos Bandeirantes], e dinheiro no exterior.

Sinais de riqueza

Eu me lembro de quando o Jorge [da Silva] editou uma ordem, como chefe do Estado-Maior, sobre os sinais, os indícios de riqueza. Você entra no pátio do quartel, vê o carro que está estacionado, vê onde ele está morando. O comandante teria que ser responsabilizado pelo que está acontecendo. E esta corregedoria, que apura, não pode ter corporativismo. O governo que quer obter respaldo da sociedade tem que ter uma corregedoria unificada, independente, atuando em todas as instâncias que têm envolvimento com a segurança pública.

[ * Astério Pereira dos Santos teve que deixar a reunião, pouco depois de sua fala, porque foi chamado para ajudar a organizar a transferência de presos de Bangu para a penitenciária de Catanduvas. Discutiu-se mais adiante o número que ele mencionou. Em entrevista dada em 13 de janeiro, por telefone, ele esclareceu a conta: “Existem 43 presídios, e desses há um com 450 vagas, Bangu III, e outro com 48 vagas. Os grandes problemas estão concentrados nesses dois. Mas tem também, dentro do contorno de segurança máxima, que inclui Bangu II, IV e V, um percentual de elementos-problemas que eu não tenho condições de concentrar aí. Fora desses dois, embora tendo problema, a maioria ainda quer uma chance de trabalho. Nisso se baseia o cálculo de 4%” (o Rio de Janeiro tem 14 mil presos; quatro por centro correspondem a 560 presos). “Quando você manda 12 presos para outro estado, consegue um clima de tranqüilidade, fica todo mundo recuado”.]

Sérgio Torrres – Eu identifico que na década de 1980 – eu começo a atuar no jornalismo no início dela…

Astério – “O Fluminense”… [risos]

Drogas e armas de fora para dentro

Sérgio Torres – … Exatamente… Sabe tudo [risos]… Aquelas quadrilhas incipientes do tráfico que havia na década de 70 começam a se fortalecer. Identifico duas razões para isso: a chegada da cocaína ao Rio de maneira massificada, ainda na primeira metade da década de 80, e a chegada de armas poderosas. Até então eram bandidos de 38 [revólver calibre 38]. Acho que isso aconteceu por interesse econômico de fora para dentro. Não foi o bandido do morro, o bandido pobre, que foi atrás disso. Veio a ele. E ele se apegou àquilo porque era muito lucrativo.

Acabou-se o verniz ideológico

O que isso propiciou na década seguinte? As quadrilhas se consolidaram, com um verniz, uma poeira ideológica que veio a se perder agora, nesta década. Não tem mais ideologia de nada. Aquela história que havia no início da década de 90, até o final dessa década, de “paz, justiça e liberdade”, aquilo criou uma certa ideologia que eu acho que se perdeu hoje porque essas quadrilhas se disseminaram, se pulverizaram por todos os morros, acabou um pouco a fidelidade. Os criminosos que tinham uma prática assistencialista, que eram originários daquelas comunidades, hoje não são mais, já são sanguinolentos, sanguinários, mesmo, maus ao extremo, e drogados, dependentes.

Em dez anos, barra mais pesada nas favelas

Um pouco da minha experiência pessoal. Um dia, eu já trabalhava na Folha, fui ouvir o Nilo Batista [advogado e professor de direito que foi vice-governador com Brizola e chegou a assumir o governo fluminense entre abril e dezembro de 1994], e enquanto esperava fiquei conversando com o coronel [Carlos] Magno Nazareth Cerqueira, que trabalhava lá. [O coronel Cerqueira comandou a PM nos dois governos de Brizola no Rio de Janeiro, em 1983-86 e 1991-94. Foi assassinado em setembro de 1999 por um sargento da PM, Sidney Rodrigues, morto na hora por seguranças de Cerqueira. Até onde se sabe, o sargento tinha problemas mentais.] Eu fiquei batendo papo com o coronel Cerqueira. Perguntei algumas coisas sobre o que havia mudado. Ele contou que, no primeiro governo Brizola, quando ele exerceu o comando da PM, ele ia a algumas favelas acompanhado de um ajudante-de-ordens e de um motorista, sem seguranças. Ele trabalhou nisso em 83 a 86, veio o governo Moreira, ele volta em 91. Ele disse que na década de 90 já não conseguia fazer isso. Se ele fosse sem segurança, não entrava, corria risco de vida.

O que ele achava que tinha mudado? Ele tinha muita vinculação com o pensamento do Brizola, do Nilo, então ele botava a culpa exatamente naquele período de governo do Moreira Franco. Acho que ele limitava um pouco a razão de tudo isso que ocorreu, mas é a experiência de uma pessoa que comandou a PM em dois governos, que tinha um conhecimento e era uma pessoa séria.

Todo início de governo é proativo

Eu realmente não sei o que vai acontecer agora. Todo início de governo é proativo. Eles vão para a rua, vão para hospital, reúnem gente. Tomara que dê certo. Já vimos governos anteriores que no início fizeram exatamente a mesma coisa. Governador que foi a hospital. Governador que fez reunião, criou força-tarefa, comissões. Realmente não sei o que vai acontecer. Eu sou por tendência um pouco pessimista. Creio que tende a não ser uma coisa que venha a dar resultados profícuos a médio prazo, digamos.

Noticiário policial era secundário

André Luiz Azevedo – Eu acompanho o relator aqui [Sérgio Torres], que já falou sobre a década de 80, tudo isso, o Jorginho [Antônio Barros], e só para manter a cronologia eu vou retornar um pouquinho mais, vou à década de 70, antes de entrar nos anos 80, para falar sobre o que aconteceu com o noticiário, principalmente policial, de segurança, naquela época.

Nos anos 70, o noticiário policial na imprensa era praticamente secundário, feito por repórteres iniciantes ou repórteres com pouco prestígio dentro das redações. Eu me lembro que eu trabalhava na Rádio Jornal do Brasil e, em 1975, a editora da rádio era a Ana Maria Machado [escritora, autora de obra notável para o público infantil, eleita em 2003 para a Academia Brasileira de Letras] e pela primeira vez a rádio sentiu a necessidade de contratar um repórter especializado em Polícia. Até aquele momento, a JB, uma rádio que buscava um público elitizado, não sentia necessidade de ter nenhum repórter de Polícia. Em 1975, pela primeira vez, o noticiário policial passa a ter um certo prestígio. Ela contratou um repórter de Polícia, Jorge Oliveira, que fez aquela entrevista em que o Lúcio Flávio [Vilar Lírio; assaltante que inspirou o livro Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia, de José Louzeiro, 1976, e o filme homônimo de Hector Babenco, 1977] falou “Bandido é bandido, polícia é polícia”. Entrevista que ficou famosa.

Nesses anos 70 o noticiário policial começa a aumentar. Depois, o Sérgio [Torres] já falou, eu acompanho exatamente o que ele falou.

Quero vir para esse último noticiário, o que aconteceu nessa explosão de violência e nessa explosão de noticiário na imprensa.

No Rio, fatos se tornam mais visíveis

Primeiro, precisamos levar em consideração as condições do Rio de Janeiro. Não só as condições de visibilidade, mas até as condições geográficas da cidade, onde a imprensa chega rapidamente a qualquer local e consegue transmitir, dar a algumas informações uma visibilidade que em outras cidades, como São Paulo, não existe.

Em São Paulo, durante aqueles ataques de maio, raramente se teve uma imagem dramática, forte. Eles botaram fogo em muitos ônibus e só no final apareceu a primeira imagem de um ônibus incendiado. Aqui no Rio, no primeiro ônibus incendiado, da Itapemirim, a imprensa chegou com rapidez e aquela imagem do ônibus pegando fogo estava em todos os veículos.

Anteontem [3 de janeiro], houve um novo incêndio de ônibus e novamente a imprensa conseguiu com facilidade as imagens.

Essa característica geográfica do Rio, onde os acontecimentos ocorrem perto da imprensa, ou a imprensa tem agilidade, isso facilita que os fatos no Rio tenham maior repercussão.

Corrupção fragiliza a Polícia

Acho que também contribui muito para a repercussão dos fatos a própria situação da Polícia, que acaba o governo [Rosinha Garotinho] com grandes denúncias de corrupção na cúpula. Isso fragiliza a Polícia de tal maneira que provoca até uma certa ansiedade pelo que há de vir com os novos comandantes. Mas também coloca a situação policial em primeiro plano. Fica evidente para todos que cobrem a área que a questão da corrupção policial está entranhada na violência no Rio e é uma questão de base para a solução dos problemas policiais.

 

Fato terrível: jornalista denunciado por corrupção

Pela primeira vez, tem-se um fato terrível, a corrupção de um jornalista trabalhando num grande veículo, e essa corrupção sendo lançada a público. No passado, acompanhamos relatos, em biografias de Chateaubriand, de Samuel Wainer, de David Nasser, sobre a corrupção jornalística.

Todo mundo sempre acompanhou as histórias das redações onde poderia haver gente ligada a jogo do bicho, ligada a áreas militares [refere-se à corrupção dentro dos organismos de repressão da ditadura], sempre algum tipo de corrupção, mas nunca recebemos na cara um fato tão grave como esse [demissão do jornalista da Rede Globo José Messias Xavier, acusado, a partir de escutas telefônicas, de receber propina de chefes de quadrilhas de caça-níqueis para passar informações aos bandidos], demonstrando que nós, jornalistas, também somos vítimas da corrupção, também podemos estar nessa mesma situação que denunciamos. Esse foi um fato novo, terrível, que levou a uma discussão dentro das redações sobre onde nós falhamos, erramos, e como podemos nos precaver, o que podemos mudar.

Limite pouco nítido entre noticiário responsável e censura

Outra questão importante, que o Astério levanta, questão permanente, é a discussão sobre a diferença entre o noticiário responsável e a censura da informação. Esse é um tema presente. Tem que se resolver caso a caso. Até onde vai o noticiário responsável e a partir de que ponto a supressão de uma informação é considerada censura. É uma discussão permanente, mas é claro que no calor da luta para botar a notícia no ar em vários momentos devemos ter errado.

Sobre esse fato recente, como o Jorginho [Antônio Barros] falou, é uma escalada permanente, sempre com uma situação nova, absolutamente chocante, que leva a essa grande visibilidade do noticiário de violência e de criminalidade entre nós. A característica do Rio de Janeiro, a história recente das denúncias de corrupção policial, tudo isso criou uma atmosfera para que esse noticiário ganhasse uma dimensão muito maior ainda.

Eu estava com o Sérgio [Torres] no Palácio Guanabara, dois dias atrás, e comentamos sobre um crime contra um brasileiro que estava nos Estados Unidos e voltava para o Rio Grande do Sul e tinha sido assaltado ao chegar, e morreu quando ia fazer uma surpresa para a família. Isso deu uma notícia de destaque, mas certamente se esse fato tivesse acontecido no Rio de Janeiro isso teria sido noticiário de primeira página de todos os jornais durante vários dias. É uma característica do Rio de Janeiro, até por uma tradição jornalística da cidade, também pelas questões geográficas, que tudo aqui no Rio de Janeiro tem essa repercussão muito grande.

[Fim da primeira parte do debate.]

Clique aqui para ler a segunda parte do debate.

Clique aqui para ler o segundo debate, realizado em março e publicado em junho de 2007.