Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Decomposição política da Venezuela antecede Chávez

A Venezuela de Hugo Chávez é hoje o reino das caricaturas midiáticas. Não caricaturas literais, mas metafóricas: as simplificações, a substituição, na imprensa, da análise pela velha agitação e propaganda dos partidos de esquerda e de direita. O mais impressionante é como se esquece sistematicamente o reinado de desgoverno e corrupção desenfreada que antecedeu a conquista do poder pelo coronel Chávez.


Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, o professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Antonio Carlos Peixoto faz, a exemplo de recente tópico sobre o Paraguai (ver “Mídia brasileira precisa ver Paraguai além da caricatura”), um retrospecto que permite entender melhor por que Hugo Chávez não caiu como um raio em céu azul na Venezuela. O objetivo aqui é fornecer elementos para facilitar abordagens que tenham um mínimo de contextualização. Muito longe de “esgotar” o assunto, mas procurando trabalhar com um sistema de referenciais.


Especificamente, existe um conflito de vida e morte entre Chávez e a mídia tradicional da Venezuela. A explicação do professor Peixoto é que os partidos políticos da Venezuela se dissolveram e a mídia passou a ser a arena por excelência dos conflitos.


Eis a entrevista.


Incorporação tardia ao mercado internacional


Antonio Carlos Peixoto – A Venezuela foi um país de incorporação muito tardia ao mercado internacional, porque durante o período colonial vivia apenas de exportação de cacau. As guerras de independência foram particularmente violentas na Venezuela e na Colômbia. Foram as mais violentas que houve na América do Sul. Na América Latina, de um modo geral. Até porque o Bolívar era venezuelano, então o eixo no qual ele se movia contra os espanhóis era este: Colômbia e Venezuela.


Isso desorganizou a produção e o mercado de mão-de-obra. Depois… cuidado com o que eu vou dizer. Eu ia dizer que ele se desorganizou por causa do fim da escravidão, dando a impressão, portanto, de que a escravidão não devia ter terminado. Mas a verdade dos fatos é que ocorreu isso mesmo: era uma economia agrícola baseada na escravidão, um contingente da população negra foi incorporado à luta pela independência. O resultado é que, vinte anos depois, o país tinha uma desestruturação no que se refere à agricultura.


Petróleo, cem anos de dominação da economia


É só no começo do século XX que a Venezuela se incorpora, por meio do petróleo. O petróleo domina, comanda a economia venezuelana há pelo menos cem anos. E isso coincide com a chegada ao poder de uma das mais longas ditaduras que já houve nesta parte do mundo, que é a ditadura do Gómez. Juan Vicente Gómez, que era governador de Táchira, estado andino da Venezuela.


É uma ditadura que vai durar de 1908 a 1935. Não preciso adjetivar a ditadura, mas essa foi particularmente cruel e selvagem. E o acordo assinado com as petroleiras foi um acordo também extremamente lesivo à Venezuela. Ou seja, o Estado venezuelano encaixava 10% dos royalties, muito pouco. O negócio era dominado de um lado pela Shell, inglesa, e pela Esso [então Standard Oil], americana, de outro.


Sem citar o caso paraguaio, mas existe alguma analogia no seguinte sentido: se você não tinha um núcleo que comandasse a estruturação de interesses, portanto partidos políticos, a Venezuela, do ponto de vista político-institucional, fica ao Deus-dará durante o século XIX e durante a ditadura de Gómez.


Gómez não assume o poder por meio de nenhum partido, por meio de nenhuma estruturação de interesses mais sólida. Ele assume o poder porque dá um golpe. Dá um golpe, chega ao poder e governa vinte e sete anos. As oposições, no início, eram individualizadas, quer dizer, era esse ou aquele indivíduo que precisava ser eliminado. Não há grupos agindo de forma estruturada na vida política do país.


Oposição de esquerda começa a se formar e vai para o exílio


Isto só vai acontecer nos anos 30, não porque a crise de 1929 tenha derrubado o petróleo. Eu não tenho idéia de quanto essa crise afetou os preços do petróleo, mas não afetou significativamente. Há uma série de coisas acontecendo: a política de boa-vizinhança do [Franklin Delano] Roosevelt, que não é, nos anos 30, uma política muito simpática às ditaduras, os problemas mundiais que de alguma maneira repercutem, quer dizer, o ascenso do nazifascismo.


Começa-se a ter dentro da Venezuela uma oposição de esquerda que vai se estruturando. É o embrião do partido político que foi historicamente a maior força da Venezuela no seu período anterior a Chávez. É a Acción Democrática [AD].


Rapidamente, pelo menos o núcleo de dirigentes desse partido vai se deslocar para o exílio, porque as condições internas da Venezuela não permitem a ação de um partido desse tipo. E existe exílio no México, na Colômbia vizinha, e é quando começa a surgir na vida política venezuelana a figura do Rómulo Betancourt.


Rómulo Betancourt, discípulo do peruano Haya de la Torre


Rómulo Betancourt é o grande organizador, o grande estruturador da Acción Democrática. Ele, como todas as lideranças chamadas populistas na América do Sul – mas aí é populismo no sentido clássico da palavra, não é populismo do modo como a imprensa o vem tratando – é um homem profundamente influenciado pelo pensamento do pai de todos os populismos que aqui existiram, que é o [Victor Raúl] Haya de la Torre, peruano, o criador do Apra [Alianza Popular Revolucionaria Americana]. Influenciado por ele, começa a formar uma visão de mundo que passa pela esquerda e leva à construção da Acción Democrática como um partido que absorve as coisas básicas do pensamento do Haya de la Torre.


No pós-guerra, o processo político venezuelano é alterado. Gómez morre em 35, mas ele é substituído por dois generais. [Eleazar] López Contreras [1935-41] e [Isaías] Medina Angarita [1941-45].


Depois de 45, com a onda de democratização que vai ocorrer nesta parte do mundo, a Venezuela não é resistente a isso, até muito ao contrário, a Venezuela absorve muito bem os movimentos que vêm dos Estados Unidos. Ela está exposta, está ali na boca do Caribe, e o Caribe está próximo aos Estados Unidos.


Gallegos, romancista, na presidência


Há a derrubada do último desses dois generais, Angarita, e a convocação de eleições livres. Ganha a Acción Democrática, como era de se supor. O presidente da República é também um Rómulo, Rómulo Gallegos. Gallegos é um romancista, um intelectual, escreveu, inclusive, um romance célebre na literatura hispano-americana. A televisão, o TeleCine da Net anda mostrando esse filme, eles transformaram o romance em filme. Chama-se Doña Bárbara. Pelo que eu vi, até que o filme não é mal feito. Eu não tenho opinião porque só vi a metade final.


Mas, mas como se sabe, essa onda de democratização teve fôlego curto. Rapidamente, os Estados Unidos estão jogando para a construção do chamado Sistema Interamericano de Defesa, que se concretizou na carta do Rio de Janeiro, no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca [assinado em dezembro de 1948].


No governo de Rómulo Gallegos, Rómulo Betancourt era ministro, era a figura dominante do governo. Em 1948, vem o golpe de Estado, o governo de Rómulo Gallegos durou pouco mais de um ano. Vem o golpe e são dez anos de ditadura de Marcos Pérez Jiménez [general], uma ditadura longa e pesada.


O Acordo do Ponto Fixo


E já se começa a ter guerrilha, tentativa guerrilheira?


A.C.P. – Não, a tentativa guerrilheira é posterior a isso. Em 1957, ocorre um fato marcante na história da Venezuela e, curiosamente, um fenômeno análogo vai ocorrer na Colômbia. Mas deixemos a Colômbia de lado.


Na percepção do Rómulo Betancourt e da Acción Democrática, o golpe de Pérez Jiménez tinha sido possível em 1948 porque a frente política estava dividida. Eles acertaram, quer dizer, arrombaram uma porta que já tinha sido aberta não sei quantas vezes. Se você não tem unidade na frente política para conter o golpe militar, o golpe vai passar, não tem saída. Uma frente política unida, toda ela dizendo: “Não vai ter golpe”, freia o golpe, porque aí as armas não vão para a rua. O generalato, o alto comando ou o que quer que seja vai pensar sete vezes antes de botar tanque na rua. Eles precisam normalmente de um apêndice político, e de um apêndice político forte. Ou então a frente está toda dividida e eles não precisam fazer nada. Essa foi a percepção do Rómulo Betancourt: “Não podemos repetir o erro”.


Então, em 1957, assina-se em Nova York, com o beneplácito do Departamento de Estado americano, que viu naquilo um indicador de bom senso, um acordo que tem o nome de [Pacto de] Punto Fijo, Ponto Fixo.


Por esse acordo, as três principais forças políticas da Venezuela, que são a Acción Democrática; a democracia cristã, que na Venezuela era chamada de Copei [Comité de Organización Política Electoral Independiente], incidentalmente. As democracias cristãs surgem na América Latina em algum momento mais para o final dos anos 1930, quando a Igreja [católica] espanhola, já no quadro da Guerra Civil e já antevendo a vitória de [Francisco] Franco, lança uma investida para criar nesta parte do mundo partidos democratas cristãos que sejam sólidos e que sejam, eu diria, um desaguadouro das forças conservadoras. Ou seja, para dar uma tintura católica ao conservadorismo, porque até então o conservadorismo da igreja era uma coisa e na sociedade era outra. Quer dizer, não é que ideologicamente fosse diferente, mas os nexos, os vínculos eram mais difíceis. Portanto, você tem a democracia cristã chilena, que já é fundada com o Eduardo [Nicanor] Frei pai, que foi presidente antes do [Salvador] Allende [Frei foi presidente do Chile de 1964 a 1970]. Você vai ter um esforço de criação de democracias cristãs. No caso da Colômbia, como o partido conservador é muito forte, a Igreja prefere um acordo com o partido conservador e não criar uma democracia cristã própria, mas na Venezuela, dada a aridez do quadro partidário, cria-se a democracia cristã, que vai ter o nome de Copei.


E o terceiro partido é a URD, Unión Republicana Democrática, que certamente, era democrática, mas de revolucionária não tinha nada.


Quadro político bloqueado


O acordo de Ponto Fixo diz o seguinte, e é o único ponto que interessa nesse acordo: nenhum partido poderá propor ou desenvolver uma política ou políticas que não sejam objeto de consenso por parte das demais forças. Está claro o que acontece. Quer dizer, o sistema político venezuelano, a partir de 1958, quando Pérez Jiménez é derrubado, é um sistema político tipo tartaruga. Bloqueado. A movimentação política é extremamente difícil. Em 1958, a união dessas três forças produz efeito, Pérez Jiménez é deslocado do poder, mas não é deslocado por golpe, é uma rebelião popular.


Massas de Caracas derrubam Pérez Jiménez


As massas caraquenhas e dos lugares próximos entraram nas cidades, ocuparam as ruas. Houve quase três dias de combate e chapeau, como diriam os franceses, para as massas caraquenhas, porque elas brigam muito.


Tomam a Chefatura de Polícia num banho de sangue desgraçado, recebem rajadas de metralhadora. Foi uma coisa muito cruel, mas eles tomaram. O cálculo de mortos até hoje ninguém sabe. Essas coisas nunca são divulgadas, podem ter sido 1.200, podem ter sido 5.000, morreu muita gente.


O resultado: cai Pérez Jiménez, as eleições se realizam, é mais ou menos consenso, inclusive, que a Unión Democrática deve ocupar o poder. Então, é o nosso Rómulo Betancourt que está lá.


Betancourt nacionaliza o petróleo


A primeira medida de Rómulo Betancourt, em consenso com as demais forças: elevar os royalties do petróleo de 10% para 50%. Como? As petroleiras não têm ponto de apoio dentro da Venezuela porque os outros partidos estão de acordo com isso, engolem. E o desdobramento dessa elevação de royalties é que, no final do governo de Betancourt – Betancourt é eleito em 1958, o mandato presidencial é de cinco anos – os royalties se elevam e passam a ser de 100%.


Royalties de 100%?


A.C.P – É. Equivale, praticamente, à estatização do petróleo. A totalidade dos ganhos do petróleo passa para o Estado. É o começo da PDVSA, Petróleos de Venezuela.


Isso inviabiliza a exploração do petróleo por estrangeiros…


A.C.P. – Sim, claro que inviabiliza. A totalidade dos ganhos com o petróleo passa para o Estado. Só que Rómulo Betancourt não quer usar a palavra estatização. Ele é um homem cauteloso, muito cuidadoso, gato escaldado. Passou muito tempo no exílio, assistiu a um golpe de Estado que derrubou Gallegos, é obrigado a ter um segundo exílio… Quer evitar a palavra estatização. A totalidade dos ganhos com o petróleo passa para o Estado.


Influência cubana: luta armada


O outro lado da história: a revolução cubana não pode deixar de ter efeito na Venezuela. É claro: a Venezuela está ali. É um dos países sul-americanos que estão mais perto de Cuba.


Você vai ter, dentro da Venezuela, a formação de uma frente que inclui a juventude da Acción Democrática e o Partido Comunista.


Esse foi o único Partido Comunista que aderiu à luta armada. É um Partido Comunista liderado por dois irmãos, é um consórcio familiar dos irmãos Gustavo e Eduardo Machado Morales. Há realmente um processo pesado de luta armada. A Venezuela foi o primeiro país da América do Sul no qual a luta armada se instalou. Tem, inclusive, aquela personagem que se tornou quase um mito da luta armada na América hispânica: o Douglas Bravo.


Quer dizer, o primeiro depois de Cuba. Ou melhor, tirando 1935, esse grande troféu brasileiro…


A.C.P – Sim, mas em Cuba foi uma luta para derrubar o [Fulgêncio] Batista, que era ditador. Os combatentes não sabiam que haveria uma revolução cubana com as características que veio a ter.


A Venezuela foi o primeiro país onde houve o projeto consciente, intencional e determinado da derrubada pela luta armada comunista de um governo eleito legítima e democraticamente.


Foi um negócio pesado que jogou Rómulo Betancourt numa hostilidade violentíssima a Cuba, a representação venezuelana na OEA [Organização dos Estados Americanos] ficava pedindo o tempo todo uma intervenção militar aberta em Cuba. O Betancourt, se não me engano, usou em relação a Cuba a expressão “serpentário”, ou “esse ninho de serpentes”.


Reforma agrária fracassada


E a segunda coisa que derrubou o Betancourt foi uma reforma agrária fracassada, primeiro porque ele pagou uma indenização muito alta aos grandes proprietários de terra. Houve uns títulos da dívida pública, no caso a dívida agrária que ele criou para expropriação das terras, e esses títulos ofereciam aos antigos proprietários uma remuneração bastante alta.


O governo não teve dinheiro para investir na agricultura, inclusive porque foi criada uma espécie de seguro social-desemprego. A população rural foi para a cidade receber a grana e, como me disse uma vez um venezuelano, “para beber rum e tocar violão a noite inteira”. Acordavam tarde e não trabalhavam. Isso aqui é a América Latina, não adianta, não é poético.


Na Europa a seguridade social é para ajudar a encontrar trabalho e não morrer de fome, para não matar a mão-de-obra potencial. Mas aqui não funcionou. Os resultados: a produção agrária, que já era pífia, praticamente acabou, e com o dinheiro do petróleo, a partir do último ano [de mandato] do Betancourt, em 1963, a Venezuela vivia de quê?


Importavam alface e tomate de avião da Flórida



É aquela história: reclamam muito do Chávez… Olhem um pouco também para o que se passou antes. Eu não sou favorável a uma série de coisas de Hugo Chávez, mas é preciso entender que certas coisas têm nexo. Importavam alface e tomate de avião da Flórida, importavam frango congelado da Flórida, numa rota aérea Miami-Caracas. Despejavam um bom número de produtos alimentares. Alface e tomate, cultura de fundo de quintal, isso vinha de avião da Flórida.


A verdade dos fatos é que o dinheiro do petróleo serviu para financiar desperdício durante muitos anos. Agora também, em boa medida, está financiando o Evo Morales, financiando Fidel Castro. A Venezuela [está] vendendo petróleo para Cuba a preço bem abaixo do mercado, obviamente Cuba não pode pagar cinqüenta e poucos dólares o barril.


Cuba faz compra esse petróleo barato da Venezuela e vende a preços de mercado, se financia, como fazia com o petróleo da União Soviética, que desapareceu no início dos anos 90, e aí a queda do PIB de Cuba foi de trinta e tantos por cento. Deu uma pobreza grande que até hoje está sendo um pouco subestimada. Quando se fala nesses dados de mortalidade infantil, educação, etc., tem dados realmente notáveis, mas tem muita pobreza em Cuba.


A.C.P. – O financiamento da União Soviética em Cuba, sob várias formas, inclusive petróleo, chegava a 12 milhões de dólares por dia. Mais ou menos 4 bilhões e 500 milhões de dólares por ano.


Havia também a compra de açúcar superfaturado. A União Soviética vendia petróleo barato e comprava açúcar caro.


A.C.P. – Quando o preço de mercado caía abaixo de determinado ponto, a União Soviética comprava a totalidade por um preço que foi estipulado, se não me engano, em 1960. Não sei se houve revisões no preço, não sei como é que funcionou dali para a frente esse negócio, mas o certo é que o financiamento era muito alto.


Em 1963, voto ganha da guerrilha


Fidel tinha de um lado o bloqueio americano, o bloqueio não pode ser esquecido nunca, mas de outro lado ele tinha esse subsídio soviético. Hoje não tem bloqueio americano na Venezuela, ao contrário, os Estados Unidos compram a maior parte do petróleo da Venezuela, mas tem o subsídio desse petróleo. Quer dizer, não me espanta tanto assim que surja um Chávez num mingau político como o que o senhor vai certamente abordar na sua descrição. Vai chegar nesse momento em que tantas são as lambanças e a loucura e o egoísmo, sei lá como se chama isso…


A.C.P. – É avidez de dinheiro, mesmo, porque o que correu de dinheiro esses anos todos de Caracas em direção a várias praças financeiras nos Estados Unidos não está no gibi. É avidez mesmo, é um negócio de louco.


A guerrilha vai encontrar o ponto de inflexão, depois de atingir o ponto mais alto da curva, nas eleições de 1963. Rómulo Betancourt é um homem experiente em matéria de política. Além disso, não é um sujeito covarde. Em 63, se aproximando das eleições, ele martelava: “Povo venezuelano, vamos às urnas”. Porque ele entendeu que derrotar a guerrilha não era uma questão militar. Era uma questão, antes de mais nada, de massas, de povo, e nas semanas que precederam a eleições, quando Betancourt está largando a presidência, esse agrupamento guerrilheiro chamava-se Faln, Forças Armadas de Libertação Nacional, ocupou Caracas.


As ruas de Caracas se transformaram num inferno nos dias anteriores à eleição. No dia da eleição, os correspondentes voaram para Caracas e ficaram praticamente sitiados no principal hotel de Caracas, o Tamanaco, porque as ruas foram ocupadas pela guerrilha.


Foi bomba, foi carro incendiado, ônibus não trafegava. Como era uma coisa política, eles não chegavam ao ponto de grandes terrorismos como aqui no Rio de Janeiro, de jogar coquetel molotov dentro do ônibus para matar os passageiros. Os passageiros desciam, os ônibus eram incendiados. Caracas foi um inferno, mas Rómulo Betancourt ganhou.


Por quê? Porque no dia da eleição, o povo saiu de casa e foi votar. Aí viu-se que a guerrilha estava isolada e o governo, por extensão o Estado venezuelano, tinha levado a melhor. Elege-se a figura de Raúl Leoni, outro velho membro da direção da Acción Democrática, companheiro de Betancourt no exílio, percorreu todos os pontos da escalada da Acción Democrática, era um dos velhos quadros. Ocupou a presidência de 1963 a1968, a pressão guerrilheira diminui, não termina, mas diminui. Ela agora está mais ou menos fixada nos seus santuários.


Havia santuários no interior da Venezuela?


A.C.P. – Santuário é um modo de dizer, quer dizer, nas suas zonas, nas suas áreas de ação, onde o exército ainda não tinha conseguido penetrar, mas ela também não estava se expandindo. Então, pode-se dizer que com Raúl Leoni começa a haver uma normalidade institucional.


Em 1968, há eleições, entre aspas, quando ganha o chefe histórico da democracia cristã, da Copei, Rafael Caldera. Esse ainda é mais conhecido porque ele ocupou a presidência num esforço desesperado de salvar o quadro institucional nos anos 90, antes do Chávez emergir em 1998. Foi o último presidente da Venezuela dentro desse sistema de acordo entre os partidos.


Desconfia-se que não houve eleição competitiva nenhuma, que a máquina da Acción Democrática não funcionou, botaram lá um candidato de fachada para permitir a vitória de Rafael Caldera. A tal história do acordo entre os partidos. E Caldera ocupa o governo.


Almirante candidato do Partido Comunista


Eu esqueci duas coisas importantes: em 1958, contra Rómulo Betancourt, o Partido Comunista lança a candidatura de um almirante reformado chamado Wolfgang Larrazábal [chefe da junta militar que assumiu o poder na derrubada de Pérez Jiménez], que ganhou nas grandes cidades, como o Partido Comunista Brasileiro nas eleições logo após o Estado Novo.


E, mais grave do que isso, o governo do Betancourt enfrenta as Faln, quer dizer, a luta armada, mas ele enfrenta também duas rebeliões militares. Desconfia-se, talvez um historiador venezuelano possa dizer isso, ou um cientista político, que a força do PC venezuelano dentro das Forças Armadas era grande, porque Betancourt enfrenta duas rebeliões em duas grandes bases militares. Foram dois levantes militares pesados que estão, obviamente, ligados à candidatura do Wolfgang Larrazábal, em 1958. Mas isso tudo está controlado, de modo que quando Caldera deixa o poder as coisas estão mais tranqüilas.


No primeiro governo de Andrés Pérez, petróleo em alta


Em 1973, a Acción Democrática volta ao poder com aquele desclassificado que é o Carlos Andrés Pérez, que foi afastado do governo por corrupção. Depois, no final do governo de Andrés Pérez, no segundo governo, Chávez armou a primeira tentativa de golpe, em 1992.


Andrés Pérez se beneficia de uma conjuntura que é excepcional. Por quê?


Ele foi eleito no final de 1973, mais ou menos na época da Guerra do Yom Kipur, que produziu a primeira alta dos preços do petróleo. É quando o preço do petróleo aumenta em cinco vezes, quatro vezes e meia, cinco vezes e meia, oscila um pouco, mas é nessa faixa. Então, o Estado venezuelano está cheio do dinheiro.


É um momento em que a Venezuela, por causa do dinheiro do petróleo, de vez em quando tem umas tentações de protagonismo político na América do Sul. Andrés Pérez tem isso: financia uma porção de coisas, está com muito dinheiro.


Dinheiro do petróleo compra adesão social


Enquanto eu aguardava um emprego em Paris na Sciences Po [Fondation nationale des sciences politiques], que demorava a sair, Fernando Henrique [Cardoso] chegou a me dizer: “Olha, se esse negócio demorar muito você me escreve porque eu arrumo um emprego bem remunerado para você na Venezuela no dia seguinte”.


A partir de 1977, eu já na Sciences Po, comecei a dar aulas no Instituto de América Latina. O salário dos venezuelanos que chegavam no Instituto de América Latina para fazer mestrado e doutorado era mais alto que o meu, somando as duas coisas: pesquisador da Sciences Po e remuneração por hora de aula no Instituto.


E além disso, tinham bolsas elevadíssimas da Fundação Mariscal de Ayacucho. E tinham também bolsas dos seus governos estaduais. Viviam como nababos. Andrés Pérez pôde comprar base social internamente, era muito dinheiro.


E a Venezuela vai experimentando uma onda de protagonismo. Em 1978, ele larga o poder, é um candidato da democracia cristã que ganha, [Luis] Herrera Campíns, que tem mais dinheiro ainda. Esse homem tem mais dinheiro ainda porque ele pega a segunda alta, o segundo choque de elevação dos preços do petróleo. Foi quando o petróleo bateu, atualizando os preços, bateu 80 dólares, quer dizer, mais alto que os últimos pontos de elevação [em 2006], que bateram em setenta e poucos dólares.


Um governo que também é tranqüilo. O projeto venezuelano é criar um negócio chamado Sela (Sistema Econômico Latino-americano), que é uma antecipação daquilo que o Chávez anda pretendendo fazer, criar uma moeda única e também um banco de fomento. Então, a maldade não nasceu com o Chávez.


Alguns verão como bondade…


A.C.P. – Bondade do Chávez ou bondade do Campíns… No governo de Campíns era tudo muito bom, porque o homem era da democracia cristã, que é um partido respeitável. É essa a questão.


Em 1983 há novas eleições, sempre levando em conta que o mandato é de cinco anos e que a vida política, digamos, normalizada, começou em 1958. A partir daí, a regra eleitoral foi respeitada: a cada cinco anos, no final do ano, você tem eleição.


Presidente troca o Palácio pela companhia de uma amante


Ganha a Acción Democrática, um tal de Jaime Lusinchi, e aí começa a desordem. Começa o esfarelamento do regime, porque Lusinchi não aparecia no Palácio, apaixonou-se pela secretária e alugou um apartamento, uma garçonnière, a duas quadras do Palácio e aparecia lá umas duas ou três vezes por semana para assinar papel.


E a população, obviamente, não está satisfeita com isso porque ela vê um quadro de decomposição daquele sistema institucional construído a partir de 1958. A primeira percepção é de que o jogo político não tem contendores, não tem adversários, não tem opositores. É compadrismo. Um entra e faz a mesma coisa que o outro, quer dizer, não há enfrentamento nas instituições representativas, Câmara, Senado, etc. É uma vagabundagem, um acordo de compadres. Como o Estado é rico, tudo bem, dá para garantir a continuidade das coisas.


E muita corrupção…


A.C.P. – Muita corrupção, muita bandalheira, muita apropriação privada de dinheiro.


Andrés Pérez volta, mas o fluxo de caixa tinha mudado


Em 1988, ganha novamente o nosso amigo Andrés Pérez, só que a conjuntura dos preços do petróleo não é a mesma, aquele fervor dos anos 70, e ele vê uma situação difícil no fluxo de caixa do Estado venezuelano e toma uma medida que ele sabe que vai ser impopular, elimina o subsídio das tarifas públicas: energia, essas coisas que o governo sempre pode manipular.


Andrés Pérez enfrenta uma rebelião popular pesada. De novo, as massas caraquenhas descem às ruas, ocupam as ruas. É uma pancadaria que não tem mais tamanho e, novamente, o número de mortos é desconhecido. Há quem diga mil, mas algum tempo atrás saiu um depoimento de um equivalente a um oficial da Polícia Militar que dizia: “Eu não acredito em mil, não. Eu mesmo matei mais de vinte, como é que pode ter sido só mil?”


“C.A.P., Cinco Anos Perdidos”


Esse não é o golpe de Chávez?


A.C.P. – Não, aí nós estamos no final de 1988, começo de 1989, quando o Andrés Pérez assume. Aliás, uma coisa engraçada: quando o Herrera Campíns, em 1979, é eleito, também sem disputa, mas para eletrizar as massas ele inventou um slogan engraçado: C.A.P., Cinco Anos Perdidos. C.A.P. é abreviação de Carlos Andrés Pérez.


Chegamos aí a um governo de Andrés Pérez, a partir de 1989, movendo-se com grande dificuldade. As massas estão irritadas, o que é ruim para qualquer governo. Sente-se no ar o começo de uma decomposição institucional.


Andrés Pérez vai governar com dificuldade, ele não tem obtém o fim da subvenção, como ele queria. As tarifas de energia elétrica iam subir em 1000%. Não há cidadão honesto no mundo que resista a um assalto desses.


Ainda mais em um país que é cheio de petróleo…


A.C.P. – Pois é, não dá. Mil por cento, o que é isso? E as outras tarifas também…


É, teve algo com transporte também…


A.C.P. – O negócio do transporte público, o custo maior é de quê? Não é do ônibus, porque o ônibus você constrói ou importa, obviamente, e a partir daí, o material rodante vai ter um custo mensal…


De depreciação.


A.C.P. – É de depreciação do material rodante. Isso não implica custo praticamente nenhum. O problema é combustível, é o diesel que ele usa. Em 1992, há a tentativa de golpe do Chávez, que já era tenente-coronel pára-quedista do Exército.


Petkoff e o Movimiento hacia el Socialismo


Só tem um personagem que não apareceu na história até agora, que é Teodoro Petkoff, com seu Movimiento hacia el Socialismo.


A.C.P. – O MAS, com uma diferença do Evo Morales porque o MAS boliviano se chama Movimiento al Socialismo e o do Petkoff era Movimiento hacia el Socialismo. Apesar de que “hacia” é com “h”, mas a sigla do partido ficou como a do Evo: MAS. E ele tem uma participação importante. Petkoff era um homem instruído, o que é raro entre as lideranças de esquerda nesta parte do mundo. É um homem intelectualmente bem formado.


Ele era do Partido Comunista?


A.C.P. – Era. Ele saiu, formou uma dissidência e eu não me lembro exatamente em quais eleições ele obtém 15%, o que é significativo. Mas o crescimento, a estabilização do MAS como força opositora só serve para aumentar o grau de coesão dos partidos do sistema. É quando o compadrismo se torna maior ainda.


O MAS não consegue desalojar a Acción Democrática, o grande partido de massas, que tem uma máquina extremamente eficiente, tem o controle dos sindicatos e o peleguismo sindical corre solto, mas o MAS é uma força de certa influência, sem dúvida é.


Chávez tenta golpe de Estado em 1993


A rebelião do Chávez coincide mais ou menos com o apagar das luzes do governo de Andrés Pérez. Houve uma operação fraudulenta, mal explicada, parece que Carlos Andrés Pérez pegou uns fundos que pertenciam aos serviços de inteligência da Venezuela, não sei se de inteligência ou de burrice, mas não eram fundos contingenciados, ficavam ali à disposição do serviço, caso precisasse de um reforço de caixa. Ele pegou esse dinheiro, comprou dólar no mercado paralelo, desvalorizou o bolívar e revendeu esses dólares. Ganhou uma nota preta…


Ele, pessoa?


A.C.P. – Ele e os companheiros dele, o resto dos assaltantes, da quadrilha. Mas ele, pessoalmente, estava envolvido nisso. Então, cria-se uma situação de decomposição do Estado, não há mais como segurar aquilo. O presidente da República, primeiro recebendo repúdio popular por causa das tarifas, envolvido também num escândalo de corrupção, de ladroeira, com esses tais fundos.


Em 1993, o sistema só vai encontrar uma saída praticamente desesperada: relança Rafael Caldera. Por quê? Porque Rafael Caldera aparecia como uma espécie de reserva moral, vai governar de 1993 a 1998. É o último dos moicanos daquele sistema.


Opinião pública em clima de “Chega, basta!”, Chávez eleito


Quando há esse processo eleitoral o Chávez ainda está preso?


A.C.P. – Em 1993, está. [Foi indultado em 1994.] Em 1998 ele ganha a eleição. Porque é a tal história: você tem uma opinião pública, uma população cansada de sacanagem.


Você não explica o chavismo sem levar em conta um estado de espírito que se instalou na Venezuela. “Chega, basta!” A política é um jogo de ladrões, seja de um ou outro partido, ladrões que são cúmplices na alternância do poder e na ladroeira. Esse é o grande trunfo de Chávez.


Ao lado desse grande trunfo, ele tem outro, que é subjetivo: ele é carismático, tem um discurso absolutamente catastrófico, mas mantém o interesse da platéia. É uma mistura de Bolívar com Jesus Cristo da qual resulta no final o socialismo… Mas ele tem carisma, presença, e aí nós voltamos um pouco na história do Chávez.


Chávez queria jogar beisebol


Chávez nasceu [a 28 de julho de 1954] numa cidade chamada Sabaneta, que fica no interior da Venezuela, próxima da zona chamada llanera. Existe ali num pedaço da Venezuela e um pedaço da Colômbia, quer dizer, no oeste venezuelano, logo embaixo dessa área está a Amazônia venezuelana. E embaixo dos llanos colombianos também encontra-se a floresta amazônica colombiana.


Existe um ecossistema ali que é muito semelhante ao dos pampas. É uma zona plana, criação de gado, o tipo social é o do cara montado a cavalo, excelente cavaleiro. É uma área contígua, até de fronteira difícil de ser traçada, porque é uma planície e em algumas partes dessa planície existe uma linha divisória.


Chávez nasceu próximo daí, numa cidade pequena, ele é filho de uma família pobre, mas não miserável, um casal de professores primários. E, desde a mais tenra infância, tem uma grande admiração pelo beisebol. Quando a idade vai chegando, no final da adolescência, ele quer ir para Caracas jogar num time de beisebol.


Ora, os indivíduos mais sensatos da cidade, inclusive os pais, viram que isso não pode ser. “Como é que você vai viver em Caracas até ter um contrato com um clube de beisebol?” Só vai poder roubar para comer, porque os pais não têm dinheiro para mandar, ele não tem como se sustentar em Caracas.


Nesse caso, aconselham Chávez a entrar para a Academia Militar da Venezuela, porque o treinador do time de beisebol da Academia Militar era o mesmo treinador da equipe nacional de beisebol da Venezuela.


A Venezuela, inclusive, tem vários jogadores na Liga principal do beisebol americano. O beisebol é paixão nacional venezuelana.


Líder na academia militar


Chegando lá, ele descobre outras coisas além do beisebol. Ele é o cara que começa a formar uma liderança sobre a turma, sobre os demais cadetes da academia. Ele é tido como uma pessoa que tem coragem moral e física, quer dizer, se tem que falar pela turma diante de um general ou um coronel, ele levanta e fala. Não tinha medo de ser punido, era extremamente respeitado dentro do Exército.


Em 1992, ele faz a tentativa de golpe. Ele tem uma liderança forte entre os oficiais da geração dele e dos que vêem depois, majores, capitães, tenentes.


Eleito em 1998, em 1999 vem a tal Constituinte e, diante do crescimento do chavismo, as forças conservadoras se organizam para dar o golpe. É o famoso golpe de 2002. Esse golpe, na medida em que o Chávez não morreu, nem foi para o exílio…


O golpe que Chávez pediu a Deus


Foi tudo o que ele pediu a Deus.


A.C.P. – Foi tudo o que ele pediu a Deus, porque o chefe do golpe era um incompetente, o tal do Pedro Carmona, que chegou lá e disse que a primeira coisa que ele iria fazer era fechar o Congresso. Quer dizer, você sai de algo que é percebido como um movimento potencialmente contrário às idéias de liberdade e, para se opor ao movimento, você mata as liberdades. Em vez de dizer “Em três meses nós vamos ter eleições”, não, fecha o Congresso.


O Alto Comando venezuelano hesitou diante disso, o generalato hesitou. No que ele hesitou, você sabe que golpe tem aquela seqüência encadeada e rápida. Numas cinco, seis horas durante as quais o Alto Comando hesitou, a oficialidade leal ao Chávez foi para as ruas e conseguiu debelar o golpe, o alto comando foi apanhado no contrapé, na paralisia, não sabia o que fazer.


Chávez agora controla Forças Armadas e PDVSA


De lá para cá, o Chávez reforçou seu poder em duas direções: a primeira, dentro das Forças Armadas. Ele sistematicamente foi jogando para fora os núcleos mais de coronéis e generais contrários a ele. Hoje você tem Forças Armadas leais ao Chávez; segundo, ele assumiu o controle efetivo da PDVSA. Todos os quadros técnicos e intermediários e sindicais eram hostis a ele. Isso era esquema da Acción Democrática.


A PDVSA boicotava o Chávez, essa é que é a verdade dos fatos. Ele indicava os diretores. Quando um diretor tem todo mundo abaixo contra ele, não dirige nada, não vai ser diretor nem de terreiro de pagode. Ele conseguiu fazer uma limpa dentro da PDVSA.


Então, esses dois vetores que foram possibilitados pela tentativa de golpe reforçaram enormemente o poder do Chávez.


Fernando Henrique apoiou Chávez


Chávez enfrentou a greve com apoio sul-americano. O próprio governo do Fernando Henrique, no final, apoiou abertamente Hugo Chávez, mandou até navio com petróleo para lá. O Chávez se referia a ele como “mi hermano Cardoso”. Havia uma simpatia geral. Havia medo de que na América do Sul, se esse negócio fosse vitorioso, ocorresse uma ditadura de direita, ainda que temporária, mas que acarretasse um banho de sangue. Os países sul-americanos geralmente se alinharam com o Chávez. Não faltou apoio a ele nesse momento. E o resto da história é conhecida, está em qualquer cronologia do Chávez.


“Chávez tem verdadeiro pavor da imprensa”


Alguns cientistas políticos têm falado e já escreveram até trabalho sobre isso, a liderança midiática de Chávez. O papel dos meios de comunicação dentro e fora da Venezuela. Tem Telesur, está comprando estação de rádio da Bolívia, muita coisa acontecendo.


A.C.P. – O Chávez tem verdadeiro pavor da imprensa. Ele é gato escaldado, porque toda a imprensa da Venezuela é contra ele. Ele meteu na cabeça o seguinte: Ou eu tenho uma estratégia de contraponto a esses cachorros que vivem me insultando pela imprensa, ou eu estou desgraçado. Eu tenho que ter controle de mídia, porque senão a imprensa fica despejando uma série de coisas contra mim, deblaterando, latindo contra mim. Essa é a percepção que ele tem.


Ele acha, eu não estou discutindo se isso é verdade ou mentira, que precisa de uma imprensa sólida e forte ao lado dele. É possível ele calar a boca da imprensa na Venezuela.


Problemas de um governo sem oposição


Que projeção o senhor tem para um governo que vai liquidando com a oposição, embora recentemente, o Teodoro Petkoff tenha dito numa entrevista: “Vamos ver o saldo positivo da eleição: já existe uma oposição agora com a cara mais definida”.



A.C.P. – É o tal do [Manuel] Rosales.


É o Rosales. Petkoff diz o que existe alguma coisa parecida com a oposição se firmando minimamente depois de ter enfiado os pés pelas mãos, em 2002, principalmente. E de não ter concorrido para o Congresso Nacional, que foi uma loucura total. Que perspectiva o senhor pode ter? No seu relato fica claro que talvez o Chávez seja a coisa menos ruim que poderia acontecer na Venezuela, em função de como se moveram as forças venezuelanas. E aí eu incluo o Partido Comunista achar que ia resolver na luta armada: erro que vinte, trinta anos antes foi cometido no Brasil, com resultados péssimos, ajudou até Getúlio Vargas a dar o golpe do Estado Novo. Isso precisa ser entendido quando se fala da Venezuela do Chávez, porque senão ele é um E.T., veio de Marte, mas não é nada disso. O senhor contou como deixaram a Venezuela ser arrombada…


A.C.P. – Eles deixaram a Venezuela ser, praticamente, naufragada…


Tudo bem, mas como fica quando se olha para a frente? Nós sabemos: um governo sem oposição não funciona direito…


A.C.P. – Isso não absolve de modo nenhum o Chávez de seus ímpetos autoritários.


Eu não estou nem querendo fazer um julgamento moral, vamos dizer, usar um “medidor de democracia”, mas não dá certo. O poder começa a criar apaniguados que depois vão se agarrar àquilo desesperadamente, como os seus colegas de Paris que tinham três salários em dólar. Maravilhoso, ninguém quer largar a “boca” depois que ela se instala.


Os partidos sossobraram


A.C.P. – A Venezuela dá tanto pano para a manga… A verdade dos fatos é que o chavismo significou o afundamento das forças políticas tradicionais da Venezuela. Cadê a Acción Democrática? Ela não existe mais, sossobrou. O Copei, a democracia cristã, sossobrou. A URD, sossobrou. Acabou. Você tem pequenos círculos que procuram, desesperadamente, se unificar. Isso não foi possível durante os anos inicias do Chávez. A oposição não conseguiu unidade.


Eu vi essa entrevista do Petkoff no Globo. Ele tem razão porque, pela primeira vez, a oposição conseguiu se unificar em torno de um governador de um estado, Zulia, Rosales.


Até então a oposição ao Chávez – e essa é uma das razões do ódio dele à imprensa – era uma oposição midiática. Ela existia na imprensa, nos jornais, nos canais de televisão, eu não sei quantos canais tem na Venezuela ou tinha, antes do Chávez estatizar, criar canais estatais. Uma oposição midiática e liderada pelas federações empresariais…


Fedecamaras [Federación de Cámaras y Asociaciones de Comercio y Producción de Venezuela]?


A.C.P. – Exatamente.


Demonização e glorificação de Chávez


É engraçado que na Venezuela a Câmara Americana de Comércio, que é razoavelmente grande, não estava na oposição ostensiva ao Chávez. Agora, uma coisa que eu acho que começa a ficar uma espécie de ímpeto meio cego é demonizar o Chávez na imprensa brasileira.


A.C.P. – Demonizam, satanizam o homem, como se esse homem fosse a síntese de tudo de ruim que há na humanidade. Não é assim, não pode ser visto dessa maneira.


Nem do outro lado. Tem gente que acha que tudo o que ele faz é lindo, maravilhoso. “Isso é normal, sempre teve isso”. Fidel é maravilhoso, não sei quem é maravilhoso, mas isso é uma minoria. É uma Carta Capital, um ou outro veículo… A imprensa não tem equilíbrio. Você pega uma Veja, é um negócio impressionante…


A.C.P. – É verdade. O Globo também.


O Globo também. Agora o Globo está fazendo uma fortíssima campanha em relação aos meios de comunicação, porque nisso aí ele está coberto de razão. Fechar a televisão, ninguém vai apoiar…


A.C.P. – Não, é óbvio que não.


E uma coisa que precisa ser dita também e que não aparece no noticiário e não apareceu na nossa conversa é a seguinte: o grande homem de mídia da Venezuela é o [Gustavo] Cisneros, que é um megapersonagem, em matéria de dinheiro e de poder, um dos 120 homens mais ricos do mundo. E não tem oligopólio na Venezuela, como é o caso do México, caso do Carlos Slim. No México a telefonia foi privatizada e praticamente ficou só uma empresa privada, que é a dele. Slim se tornou o terceiro homem mais rico do mundo. E o Cisneros, eu não sei como anda de negócios pelo mundo, mas tinha negócio no Brasil, nos Estados Unidos, é o arquetípico homem da comunicação na Venezuela.


A.C.P. – A oposição ao Chávez não era propriamente uma oposição política, até porque faltam partidos organizados na oposição. A oposição se dá em torno das lideranças empresariais e da imprensa, da mídia venezuelana. Esse que é o quadro.


Por isso há uma contenda tão grande do Chávez com a mídia. Porque já não tem partido político e… para ele a oposição se chama mídia.


A.C.P. – Exatamente. É uma das razões do grande ódio que ele tem á mídia, que inferniza a vida dele o tempo todo.


O risco de depender só do petróleo


Agora, uma coisa que talvez fosse preciso complementar é o seguinte: nós não somos economistas, é claro, mas quando se constata, e eu tenho tentado checar esses dados persistentemente, que Chávez não consegue ou não quer promover uma diversificação da economia da Venezuela, acho que isso não traz um bom agouro para o futuro. O petróleo, daqui a trinta, quarenta anos, adeus.


A.C.P. – Não, ele tem reservas…


Não, mas não é reserva de petróleo. Ele tem petróleo para não sei quantos anos, sessenta e tantos anos, o The Economist publicou outro dia.


A.C.P. – Ele tem um negócio no Rio Orinoco…


O Canadá também tem isso, areias com alcatrão que são transformadas em petróleo. Aí, as reservas da Venezuela superam a da Arábia Saudita. Tudo bem, eu digo o seguinte: tendo em vista os malefícios do petróleo em todos os sentidos: políticos, ecológicos, econômicos, porque você tem crise do petróleo e desequilibra a economia do mundo – estou esquecendo os benefícios, porque é lógico que o petróleo trouxe muitos benefícios –, tendo em vista esses malefícios cada vez mais vai haver uma tentativa de substituir essa fonte de energia. É o álcool etanol, é isso ou aquilo, o biodiesel, isso enquanto outras tecnologias não surgem. Então, em vinte anos, a importância relativa de ter ou não ter reserva de petróleo pode ter mudado muito. Hoje, na África, há países que têm petróleo de má qualidade, mas o cálculo deles é que um dia o petróleo de boa qualidade vai acabar e então as petroleiras vão explorar o petróleo caro deles, só que talvez no dia em que isso for acontecer as empresas digam: “Mas eu não quero mais explorar petróleo. Tchau, petróleo”. Quer dizer, como é que a Venezuela pode ficar dependente de uma coisa só? Esse para mim é um problema grave.


A.C.P. – Você tem toda a razão. A Venezuela precisa diversificar a economia. Precisa a qualquer custo, a qualquer preço.


O sucessor de Fidel


Embora os jornais brasileiros não tenham mandado correspondentes à época das eleições, foi um vexame, ficaram baseados em agências, agora estão mandando, já estão se mexendo um pouco. Talvez isso produza uma melhoria da visão. Eu vejo também o seguinte: rei morto, rei posto. Fidel está morrendo, quem vai ficar com esse cetro não é Raúl [Castro], que não tem nenhum carisma e também não vai durar muito, é Chávez.


A.C.P. – Com certeza. Ele é o grande nome da esquerda latino-americana.


Num Fórum Social Mundial, daqui três anos, ele vai ser o que Fidel era, se ele continuar na trilha atual.


A.C.P. – Com dinheiro. Dinheiro que deveria ser muito melhor empregado se houvesse juízo. Quer dizer, nós estamos num ponto onde o Chávez cada vez joga mais na área externa e obteve alguns sucessos com Evo Morales, com Raphael Correa, e López Obrador teria sido…


Para ele teria sido “show de bola”. Ia nadar de braçada…


“Eleições no México foram traficadas”


A.C.P. – Quer dizer, o México precisou traficar aquelas eleições, porque foram traficadas.


Foram?


A.C.P. – Foram. No primeiro momento de recontagem, o López Obrador já aparecia com uma vantagem de cento e tantos mil votos e a recontagem estava começando. Durante 48 horas depois desse primeiro aviso, um silêncio absoluto e, ao fim dessas 48 horas… foram três dias de recontagem. Nas primeiras 24 horas eles deram esse aviso, nas 48 horas não disseram mais nada e aí encerraram a recontagem dando essa vantagem pífia para o [Felipe] Calderón. Outro trambique. Ninguém tem dúvida disso, não. Eles precisavam desse trambique, não iam permitir a vitória de Obrador.


Se não houvesse Chávez, talvez eles até permitissem a vitória do Obrador. É discutível, não sei. Mas, com Chávez o Obrador não podia ir ao poder de jeito algum.


Agora, ao mesmo tempo, você tem um esforço de reunificação da oposição venezuelana, de uma oposição mais permanente do ponto de vista político. O desempenho deles também não foi ruim, 40%. É mais ou menos parecido, em termos numéricos, com Lula e Alckmin.


O Lula até fez melhor do que o Chávez, tendo muito menos controle sobre o Estado que o Chávez tem, ele chegou a quase 61%. Isso mostra que existe potencial para a oposição crescer, 60% a 40%, você com um deslocamento de alguns pontos percentuais…


Se mudar 10 pontos percentuais já empata…


A.C.P. – Se mudar 8 pontos já é um desespero, fica 52% a 48%.


(Transcrição de Raiana Ribeiro.)


[Este texto passou por uma revisão em 13/2/2007. Apenas a redação foi alterada em algumas passagens. Não houve supressões ou acréscimos de conteúdo.]


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