Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Desdém por idéias não poupa nem a violência

Toda a grande imprensa brasileira tem correspondentes nos Estados Unidos. A julgar pelo que não saiu nos jornais de hoje, nenhum deles foi cobrir um seminário na Universidade Harvard, em Cambridge, Massachusetts, sobre a maior aflição do cotidiano nacional – a violência. Ou, se um deles foi e mandou matéria, ela parou numa geladeira da redação, quem sabe por culpa de algum editor pouco chegado ao jornalismo de idéias.

A exceção ficou por conta do colunista Merval Pereira, do Globo. Não se sabe se a convite dos organizadores do evento ou se enviado pelo jornal, mas o fato é que está lá. Dando uma de (bom) reporter, mandou um texto de 900 palavras com o qual talvez se possa fazer tudo menos deixar de ler.

O seu único senão foi ter escrito Universidade de Harvard, como se ela ficasse numa cidade com esse nome. (Nos Estados Unidos, até existe uma Harvard, mas perdida nos cafundós do Colorado.) Não é um erro que se deva esperar do lido e viajado Merval.

Mas vamos ao que interessa, o seu artigo-reportagem “As faces da violência”.

”A guerra entre a polícia e o tráfico no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, serviu de pano de fundo para as discussões sobre criminalidade na América Latina. A percepção política se misturou aos estudos técnicos ontem, no seminário promovido em conjunto pelo Centro Alfred Taubman da Universidade de Harvard e o Instituto Fernando Henrique Cardoso para discutir a definição de uma política pública de enfrentamento do crime e da violência na América Latina.

”Coube ao ex-presidente brasileiro definir a questão mais em termos políticos do que propriamente acadêmicos: o problema mais importante no momento para o Brasil é o combate à criminalidade.

Para ele, assim como chegamos a um ponto de saturação que levou à criação do Plano Real para controlar a inflação, a sociedade brasileira exigirá de seus dirigentes um basta à violência. Esse momento, para Fernando Henrique, já está amadurecendo, pois ninguém agüenta mais o nível a que a violência chegou no país. Mas, para uma ação efetiva, disse Fernando Henrique, será preciso uma liderança política que assuma a coordenação das ações, que vão desde a reorganização da polícia até a revisão do sistema judiciário.

Do ponto de vista técnico, houve uma definição clara por parte do diretor do Centro Taubman, o economista Edward Glaeser, considerado o maior especialista da atualidade em economia social e urbana: se não aumentar o risco do criminoso, não se reduz a criminalidade. Os estudos mais recentes demonstram que as políticas sociais não são suficientes por si mesmas para reduzir a criminalidade, mesmo porque não há uma correlação absoluta entre pobreza e criminalidade.

Assim como caiu em desuso a tese de que a prisão pode recuperar o preso, há também hoje a convicção, segundo Glaeser, de que é preciso utilizar mais as penas alternativas e multas do que a prisão, que é um meio efetivo de redução da criminalidade com um custo muito alto, não apenas financeiro, mas social.

Fernando Henrique citou a rebelião nos presídios de São Paulo, ano passado, para lembrar como o aumento da massa carcerária, que teve efeitos positivos na redução de homicídios, trouxe a reboque a falta de capacidade do estado de controlar as prisões, que passaram a ser dominadas pelas diversas gangues e a comandar o crime de seu interior.

Para Edward Glaeser, a pena de prisão só deve recair sobre o criminoso que chamou de “especialista”, enquanto a maioria dos casos pode ser resolvida por penas alternativas e multas. Mas esse critério não pode ser sinônimo de leniência com crimes violentos.

O ex-presidente foi direto quando falou da corrupção no país. Para ele, não há como não interligar a corrupção da polícia com a da política e a do sistema judiciário. Essa cadeia de responsabilidade gera a impunidade, que estimula a criminalidade. Nesse ponto, a análise política se une à do sociólogo e à dos especialistas em estudos da criminalidade para definir que a certeza da punição é o remédio mais efetivo no combate à criminalidade e à violência.

Glaeser fez uma análise dos efeitos da violência sobre as cidades e mostrou que, além da destruição de vidas – o maior dano possível -, há custos diretos, como a redução do valor das propriedades, e indiretos, como o desestímulo aos investimentos. Ele citou estudos que mostram que o crime provoca a evasão de pessoas qualificadas das cidades afetadas, e citou o caso do Brasil, onde um crescimento de 10% da criminalidade corresponde ao decréscimo da população a cada cinco anos.

Ao contrário, o crescimento da população e a valorização dos imóveis são os dois maiores medidores do sucesso de uma cidade. Segundo Glaeser, a redução da violência é responsável por um terço da valorização dos imóveis em Nova York. Há uma correlação estreita entre o pico da crise de violência nas cidades americanas e a desvalorização dos imóveis, e a conseqüente valorização a partir do fim dos anos 1970, quando as cidades americanas começaram a combater a criminalidade e, ao mesmo tempo, criar atrativos para seus habitantes.

O ex-presidente brasileiro abordou também a dissolução dos laços familiares como uma das causas mais sensíveis da violência no Brasil, chamando a atenção para o fato de que, se é verdade que não há uma relação total entre pobreza e criminalidade, também é verdade que a desigualdade de oportunidades favorece a dissolução familiar, tanto devido ao desemprego quanto à incapacidade dos pais de darem assistência educacional e sanitária aos filhos.

O núcleo familiar, que é fundamental na transmissão de conhecimentos e valores, e no estímulo ao estudo, no Brasil tem seu papel prejudicado, pois os pais não tiveram a chance que os filhos estão tendo hoje de ir à escola, mesmo com o nível baixo do ensino, e vivem pressionados pela exclusão social. Edward Glaeser citou entre os fatores que explicam a alta da criminalidade justamente a desigualdade, em nível de países, e o desemprego, em nível mais local das cidades.

E explicou por que as grandes cidades têm maior índice de criminalidade: estudos mostram que as cidades aproximam os criminosos de suas vítimas, por causa das grandes aglomerações, e ao mesmo tempo dificultam a prisão, dão mais facilidades para o criminoso se esconder na multidão.

Várias experiências, em diversas partes da América Latina, para reorganização policial e do sistema judiciário foram analisadas, e sobre elas escreverei nos próximos dias.

Uma estatística auto-explicativa chamou a atenção, a de casos de homicídios esclarecidos em cada cidade: no Rio de Janeiro, o índice é de meros 2,7%; em São Paulo é de 12%; e nos Estados Unidos já foi de 80% e hoje é de 64%.”

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