Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Diretor do Le Monde Diplomatique lança, em Madri, cem horas de entrevista com Fidel Castro

Casa de América, Calle de las Cibeles, Madri, lançamento do mais recente livro do jornalista espanhol, Ignácio Ramonet, que tem brilhando em seu currículo a direção do Le Monde Diplomatique, o jornal mensal de política internacional editado na França que, diga-se, já gozou de muito mais prestígio entre jornalistas de todo o mundo.

Ramonet explica à platéia, curiosamente dividida (para um brasileiro) entre jovens de várias tribos e pessoas com mais de sessenta anos, porque seu livro de 656 páginas  – “Fidel Castro – Biografia em duas vozes” – é diferente dos que já foram escritos com base em entrevistas com o líder cubano. Ramonet, que também é professor de Teoria da Comunicação da Universidade Denis Diderot, de Paris, e um dos organizadores do Fórum Social Mundial, explica como lapidou cem horas gravadas em seus encontros com o líder cubano, entre o final de janeiro de 2003 e dezembro do ano passado. Trata-se da mais caudalosa entrevista com Fidel Castro já publicada. O pingue-pongue do diálogo é mantido no livro, e organizado por temas gerais, em 26 capítulos.


 


Um truque jornalístico interessante utilizado pelo autor foi o de recorrer a personalidades, escritores  e jornalistas pedindo quais seriam as cinco perguntas fundamentais que eles fariam a Fidel, entre as quais os escritores José Saramago (Portugal), Manuel Vázquez Montalbán (espanhol, já falecido) e Eduardo Galeano (Uruguai). Na lista dos convidados, apenas um brasileiro: o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Emir Sader.


 


Em sua apresentação do livro de ontem à noite, Ramonet discorreu sobre o “gênero superficial” que marca a maioria das entrevistas feitas pelo ‘jornalismo ligeiro’, condenou o papel de “interrogadores” desempenhado por muitos profissionais, e explicou que sua intenção foi a de aprofundar a conversa com entrevistado – o que seria impossível se, de cara, suas perguntas se mostrassem agressivas ao entrevistado. Apesar desse cuidado, advertiu que não deixou de fazer perguntas incômodas “reproduzindo os questionamentos que predominam nos artigos e reportagens sobre Cuba”, e defendeu sua tese de que, “apesar de tudo o que se diz de Fidel Castro, não se pode negar que ele foi testemunha privilegiada de muitos eventos históricos dos últimos 40 anos”.


 


A idéia do livro, segundo Ramonet, nasceu quase por acaso, durante a Feira do Livro de Havana de 2003, quando ele cruzou com Fidel Castro, que percorria os estandes ao lado Prêmio Nobel de Economia de 2001, o norte-americano Joseph Stiglitz. Fidel o reconheceu. Ramonet havia acabado de publicar um livro com rara entrevista do subcomandante Marcos, o lìder dos zapatistas mexicanos, e lhe apresentou Stiglitz como “o maior radical”. ‘Ao lado dele, sou um moderado”, reforçou.

O trio trocou algumas palavras sobre o Fórum Social Mundial que acabara de ser realizado em Porto Alegre. O encontro realizado no Brasil deu o mote para Fidel Castro comentar o aparecimento de “uma nova geração de rebeldes, muitos dos quais norte-americanos”, que, “sem violência, utilizam novas formas de protesto que causam tremores nos senhores do mundo”.


Enquanto Fidel soltava idéias “aos borbotões”, Ramonet conta no livro que, naquele momento, lhe pareceu injusto que as novas gerações não conhecessem melhor sua trajetória, e que, “vítimas inconscientes da permanente propaganda contra Cuba, situavam Fidel Castro apenas como um personagem ultrapassado da época da Guerra Fria”.


 


É essa a sua motivação central: apresentar Fidel Castro, às vésperas dos 80 anos, como último exemplar de uma geração que acreditou na força das armas para conquistar o poder. De sua geração, apenas Nelson Mandela continua vivo. Ramonet chama a atenção para essa capacidade, após Fidel Cstro ter enfrentado diferentes graus de oposição e hostilidade de dez presidentes norte-americanos.


Não é por esse motivo, porém, que o autor tenta cultuar Fidel como herói das massas, esquivando-se de temas desconfortáveis – justamente aqueles que a mídia conservadora amplifica –, mas sublinha:


 


“Todos os balanços anuais da Anistia Internacional criticam a atitude das autoridades cubanas em matéria de liberdades (liberdade de expressão, liberdade de opinião, liberdade política), e assinalam que, em Cuba, há dezenas de ‘prisioneiros de opinião’.”


 


“Seja qual for o motivo”, continua, “se trata de uma situação que não se justifica. Como tampouco se justifica a aplicação da pena de morte, hoje suprimida na maioria dos países desenvolvidos (com as notáveis exceções dos Estados Unidos e do Japão). Nenhum democrata pode considerar normal a existência de presos de opinião e a manutenção da pena capital”.


 


“Esses balanços críticos da Anistia Internacional, entretanto, não apontam casos de tortura física em Cuba, de ‘desaparecidos’, de assassinatos políticos ou de manifestações reprimidas a golpes de força. Também não se registrou um único caso de levante popular contra o regime. Nem um único caso em 46 anos de Revolução. Enquanto que, em alguns estados considerados ‘democráticos’ – Guatemala, Honduras, República Dominicana, e inclusive México e Colômbia – sindicalistas, oposicionistas, jornalistas, sacerdotes, prefeitos, líderes da sociedade civil continuam sendo assassinados, sem que esses crimes suscitem a excessiva emoção midiática internacional”.


 


“A isso, devíamos ainda acrescentar que, nesses estados e na maioria dos países pobres do mundo, a violação permanente dos direitos econômicos, sociais e culturais de milhões de cidadãos; a escandalosa mortalidade infantil, o analfabetismo, os sem-teto, os sem-trabalho, os sem-saneamento básico, os mendigos, os menores abandonados, as favelas e os morros, a droga, a criminalidade e todos os tipos de deliqüências são fenômenos desconhecidos ou quase inexistentes em Cuba”.


 

Nessa alternância, dando uma no cravo outra na ferradura, o autor do livro tenta demonstrar sua imparcialidade – apesar de se curvar à dimensão histórica do personagem que inspirou o livro. O respeito à História é a melhor lição que o livro pode dar.