Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Documentário faz mergulho raro na realidade da Colômbia

Será exibido hoje às dez e quarenta da noite, na TV Cultura, o documentário Colombianos, concebido pelo jornalista Ricardo Soares e editado pelo jornalista Ernesto Rodrigues. Eles deram entrevistas ao Observatório da Imprensa sobre o excelente programa, abaixo reproduzidas.


Por favor, fale da natureza do documentário, da singularidade dele no panorama dos documentários brasileiros


Ricardo Soares – Sem querer advogar uma causa perdida, não só a mídia brasileira como os documentaristas brasileiros, em geral, dão muito pouca importância – espero não estar generalizando – ao que acontece na América Latina. A gente se preocupa muito com o que acontece na Venezuela, por conta dos factóides do Hugo Chávez, ou na Bolívia e no Equador, por conta dessa mudança ideológica, mas aborda-se isso de uma maneira muito superficial e não de uma maneira profunda. E a Colômbia, com a qual nós temos 1.600 quilômetros de fronteira, é uma grande desconhecida, para usar um lugar-comum.


Acho que é um grande filão que pode e deve ser explorado, inclusive pelos jovens profissionais do documentário e do jornalismo brasileiro. Nós não conhecemos nossos vizinhos. Na verdade, temos os olhos muito voltados para os Estados Unidos, para a Europa, mas não para os nossos vizinhos.


Não se trata de ideologia, trata-se de conhecermos o que está acontecendo.


De todos os pontos de vista, a Colômbia é assunto


Recentemente o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, usou o argumento de que a mídia brasileira não tem correspondentes na África e eu me lembro de ter argumentado que não é preciso ir tão longe, porque não os tem nos vizinhos aqui do continente.


R.S. – Quando muito, coloca-se uma pessoa em Buenos Aires que cobre o que acontece nos países vizinhos. Por exemplo, a Colômbia é um país que produz uma quantidade gigantesca de notícias todos os dias. “Ah, mas economicamente…” Não. Esse é o grande paradoxo. Neste primeiro trimestre de 2007 a Colômbia foi o terceiro país que mais cresceu no mundo, só perdendo para Índia e China. De todos os pontos de vista a Colômbia é assunto. Ela tem mais população do que a Argentina, ela tem 1, 2 milhão de quilômetros quadrados [1.138.910 km2], um território gigantesco, selvático. Eu realmente me surpreendo com o pouco caso que a mídia brasileira tem com a América do Sul, a América Latina – e com a África, como lembrou o Franklin Martins, porque a África, então… Alguém sabe o que acontece em Angola, em Moçambique? Nada.


É curioso, porque tanto a diplomacia como as Forças Armadas brasileiras têm uma noção bem razoável do que acontece nos vizinhos.


R.S. – Eu consegui, tive a grande sorte de conseguir falar com todos os atores envolvidos no conflito, os paramilitares, a guerrilha, o presidente da Colômbia, o vice-presidente, ministros, e não consegui, anos tentando, sequer uma única palavra oficial de alguém das Forças Armadas brasileiras a respeito da área de fronteira Brasil-Colômbia, que é, segundo especialistas, uma chamada “fronteira quente”. Existem vários casos, registrados por oficiais da reserva, de confrontos entre guerrilheiros das Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] e tropas brasileiras. A Aeronáutica faz um enorme silêncio. E a gente sabe que eles estão muito bem informados. Parece que quem está em guerra somos nós, não a Colômbia. Com a Colômbia eu consegui mais informações do que com o Brasil a respeito do assunto.


Nisso a mídia brasileira não segue os padrões de determinadas carreiras de Estado brasileiras. Ela se divorcia disso, porque o grau de conhecimento é muito diferente. A diplomacia brasileira sabe o que está acontecendo nesses países. Pode até se equivocar. Por exemplo, Evo Morales falou na campanha; “Eu vou nacionalizar as refinarias”. Todo mundo sabia. Foi dito em praça pública, na mídia. É claro que o embaixador do Brasil em La Paz sabia.


R.S. – E todo mundo se fingiu de morto.


Atualização do documentário esperou seis anos


Porque ficou algo assim: “Mas ele é um companheiro…” Essas ilusões. É minha opinião. Mas eu queria lhe perguntar como foi todo o processo do documentário.


R.S. – Em 2001, além de fazer documentário, eu dirigi aqui na TV Cultura uma série chamada Caminhos e Parcerias. A gente mostrava projetos sociais no Brasil que davam certo sem ajuda do governo. Uma série que foi vista por bastante gente, premiada. Nesse momento, os representantes das Farc no Brasil procuraram o escritório da TV Cultura em Brasília interessados em mostrar uma visão, segundo eles, mais justa da Farc, no sentido de não ter um pré-julgamento ideológico. Eles achavam que se fosse uma TV comercial estaria manipulada pela mídia americana e eles queriam uma visão do tipo: “Olha, nós não somos os monstros que dizem”. E convidaram a TV Cultura para visitar um acampamento deles, para estar com eles numa troca unilateral de presos que aconteceria no Sul da Colômbia em junho de 2001. A direção de jornalismo naquela época, o diretor era Marco Antônio Coelho Filho, achou que quem tinha o perfil para fazer essa história era eu. E me convidou. Eu topei na hora e fui. Fiquei alguns dias em Bogotá e depois fui para o Sul da Colômbia, na zona de distensão, onde as Farc mantinham sob seu controle 42 mil quilômetros quadrados de terra que eles governavam. E ali eles entregaram os prisioneiros unilateralmente, com a supervisão da ONU. Nós acompanhamos todo esse processo e mergulhamos no acampamento deles, ficamos ali com tempo. Quando nós voltamos, houve uma avaliação de que a gente estava mostrando só um lado da questão e não os outros, não o governo, os paramilitares. E esse projeto ficou em suspenso algum tempo, quatro ou cinco anos, por conta dessas injunções políticas que fogem ao nosso controle. Só em 2006 houve verba e condições para voltar. Eu voltei para a Colômbia, fiquei mais um mês e meio, em abril e maio do ano passado, acompanhei as eleições e entrevistei todo o mundo que ainda não havia entrevistado: os barões da mídia, os escritores, os intelectuais, o povo na rua, os parlamentares, o presidente, o vice, e tive a sorte de achar o Salvatore Mancuso, que é o grande líder paramilitar que aterrorizava o país. Tive muita sorte.


Esse material foi todo juntado, eu estava editando o documentário quando muda de novo, Paulo Markun assume a TV Cultura e me convida para voltar à Colômbia, esquentar de novo esse material, agora, com a entrega dos prisioneiros por parte do governo, e o resultado de todas essas incursões foram esses dois programas da série Cultura Mundo mais o programa especial deste dia 5 (de julho), às 22h40, e ainda um documentário grande, que está em curso, um processo grande, que vai ter outros parceiros, o Markun está conversando para que a gente possa lançar inclusive em cinema. Nós temos mais de 160 horas de material captado.


É uma história que já vem de seis anos de acompanhamento, interesse pessoal meu, também, eu recebo informes quase diários sobre o que acontece na Colômbia. É um assunto fascinante. Eu acabei me apaixonando pelo assunto.


Fora das grandes cidades, guerra


A realidade belicosa da Colômbia, fora das grandes cidades, é desconhecida pelos nossos colegas jornalistas.


R.S. – Se você está em Bogotá, Cáli e Medellín, você sente um clima de aparente tranqüilidade, embora tenha sempre uma tensão no ar. É uma sociedade muito militarizada. A presença do Exército na rua é constante, ostensiva, você é revistado o tempo inteiro. Existe uma tensão no ar, mas vive-se com uma segurança maior, no dia-a-dia de cidadãos, do que se estivéssemos no Rio ou em São Paulo. Em contrapartida, se você deixar a capital ou qualquer grande cidade colombiana, você percebe que é um país em guerra. Você não pode se deslocar, por exemplo, de Cartagena até Bogotá de carro, porque você corre o risco de ter uma retenção militar, ou uma parte da estrada que é dominada pela guerrilha, ou pelos paramilitares. O seu direito de ir e vir é tolhido, na Colômbia. Há lugares onde você não pode ir. É um país muito perigoso, que tem uma grande zona em conflito constante, áreas que são muito perigosas. Por exemplo, hoje (2/7), exatamente no momento em que estamos falando, a região de Buenaventura, na costa do Pacífico, onde tem um grande porto na Colômbia, está em pé de guerra, como se fosse uma área conflagrada. E isso a nossa mídia desconhece, e muitas vezes reproduz apenas os clichês com que as grandes agências internacionais de notícias todos os dias inundam as redações.


A Colômbia é um assunto fascinante para qualquer pessoa que se interesse não só por política latino-americana, mas pelo nosso mundo contemporâneo. É um país de paradoxos. Nós temos ali uma economia que cresce, um povo alegre que vive em guerra, um presidente que só governa uma parte do país mas diz que a Colômbia é uma democracia absoluta… É um país muito louco, no bom e no mau sentido. Não é à toa que o García Márquez nasceu lá.


Jornalistas colombianos sentem-se tolhidos


Como o senhor encontrou os jornalistas colombianos, a mídia colombiana?


R.S. – Eles são muito tolhidos, e alguns até dizem isso, evidentemente que você não cita o nome, porque podem se comprometer junto a seus empregadores, porque a mídia é concentrada na mão de duas ou três grandes famílias, entre as quais a família Santos, que é dona do diário El Tiempo. O Ernesto Santos, com quem eu conversei, seria, mal comparando, representaria a figura do Roberto Marinho na Colômbia pelo poder que concentra. Ele é dono do conglomerado que engloba a revista Semana, a principal do país, e do El Tiempo.


Existe o que se pode e o que não se pode falar. Evidentemente que ninguém admite censura, mas o poder de coerção do governo Uribe em relação aos meios de comunicação é inegável. A imprensa mais à esquerda, mais independente, diz com todas as letras que a Colômbia tem censura. Uma censura que é econômica, que é feita pelos patrões, e pelo próprio governo. E os donos desses meios dizem que não há censura, que eles inclusive criticam o governo.


No dia-a-dia você vê que os colegas têm o seu raio de ação muito limitado. Por exemplo, a guerrilha não vai deixar as grandes televisões entrarem na área de conflito. Como a mídia seria manipulada, segundo as pessoas de esquerda, eles não têm acesso, por exemplo, a pessoas e lugares que eu teria, ou que outro jornalista estrangeiro teria.


Farc perderam apoio na classe média


Mas quando o senhor fala esquerda, está fazendo uma generalização.


R.S. – Com certeza.


Porque tem uma esquerda que não aceita bem esse método das Farc.


R.S. – Evidente. As Farc não são uma unanimidade, de jeito nenhum. Elas deixaram de ter o apoio massivo da sociedade há muito tempo. A classe média, os profissionais liberais, a esquerda intelectualizada não apóia a Farc, porque usa métodos absolutamente condenáveis, como atentados. O Pólo Democrático, junção das forças de esquerda que teve Carlos Gaviria como candidato muito bem votado nas últimas eleições, embora Uribe tenha ganhado com uma larga margem, o próprio Gaviria não apóia os métodos das Farc. A esquerda não apóia. Há um estudioso muito interessante, Jorge Rojas, de um organismo chamado Codhes (Consultoria para os derechos humanos y el desplazamiento), que tem a melhor definição: a guerrilha não tem apoio nos centros urbanos mas tem um largo apoio no meio rural, tem uma capilaridade nas zonas campesinas. Aí reside sua grande força. Ela tem um grande apoio dos trabalhadores rurais, dos camponeses, porque as Farc substituem o Estado nessas regiões. Agora, evidentemente a opinião pública em geral da Colômbia não apóia mais as Farc porque diz que não é mais ideologia, é um negócio, envolvido com o narcotráfico. O narcotráfico permeia todas as relações na Colômbia. Estaria envolvido com os paramilitares, com a guerrilha, com o próprio governo. A Colômbia é um grande jogo de xadrez.


* * *


Divisão entre documentaristas não faz sentido


Ernesto Rodrigues discute nesta entrevista a divisão artificial entre documentários ‘industriais’ e ‘para festival’.


Quando o documentário ficou pronto?


Ernesto Rodrigues – O primeiro programa ficou pronto na quarta-feira passada (20/6) e o segundo na segunda-feira (25/6) de manhã. Eu peguei a edição a partir do dia 1 de junho, mergulhei no material, enquanto isso o Ricardo Soares voltou à Colômbia para fazer umas entrevistas de atualização – ele fez uma ótima entrevista com a mãe da Ingrid Betancourt [senadora seqüestrada pelas Farc há cinco anos], fez também com Rodrigo Gandra, porta-voz das Farc, com o então ministro da Defesa [Camilo Ospina]. Em suma, ele deu uma atualizada e fez o que em jornalismo a gente chama de “cabeças”, ancorou o programa de lá introduzindo os blocos que a gente montou por aqui. Do ponto de vista da edição, é um trabalho de vinte e poucos dias.


Que importância teve a atualização?


E.R. – A gente tinha depoimentos antigos do chefe da guerrilha. Foi importantíssimo ter o Granda, gravado na semana passada [última semana de junho], no meio de toda essa negociação do [Nicolas] Sarkozy pedindo para o Uribe soltar a Ingrid, que tem cidadania francesa. Granda deu entrevista logo depois de ser solto e foi para Cuba.


O programa tem esses três momentos de produção, divididos no tempo, e tem o tempo de edição e roteirização, texto final e finalização que foi agora, em vinte dias. Uma pauleira que você nem imagina. Mas gratificante.


Essa modalidade de trabalho tem chance de prosperar, ou vai ficar como um episódio isolado?


E.R. – Acho que tem. Pelas conversas que eu ouvi do Markun com a equipe, o pessoal que está lá no Núcleo de Documentários, acho que a idéia é viabilizar esse tipo de trabalho. Markun me parece também muito aberto para acolher produtores independentes e, eventualmente, fazer co-produções. Acho que a proposta é séria.


É claro que tudo isso depende de dinheiro, documentário não é, na maioria das vezes, uma grande audiência, embora eu ache que, se for bem feito, tem audiência boa, tem toda uma questão relacionada com a natureza desse tipo de produto que é um pouco mais complicada do que uma novela, um filme, algum show de música.


Mesmo considerando isso, acho que existe dentro da comunidade que faz documentário uma divisão que eu acho burra, estúpida: tem gente que faz uma divisão entre documentário que chamam de “industrial” e documentário para circuito de festivais. Isso eu acho muito ruim, porque ficam dois grupos que não se falam.


Esse documentário, o que ele tem de industrial? Tem de industrial, entre aspas, o tamanho do mergulho que ele deu na questão colombiana, no investimento que foi feito, agora, ele também em termos de qualidade, em termos de “festival”, de circuito mais fechado, as características de uma narrativa, dá chance para as pessoas falarem, que é o que não acontece geralmente na tevê aberta.


Uma hora e meia de gravação para usar 12 segundos


Normalmente o que se vê na tevê aberta é o sujeito às vezes parar o trabalho dele quatro, cinco horas, o repórter vai lá, entrevista o sujeito durante uma hora e meia e sai uma frase de 12 segundos, num documentário ou num programa. Isso eu acho uma distorção violenta que está acontecendo aqui no Brasil, na tevê aberta. Um documentário como esse da Colômbia sinaliza: “Opa, péra aí”, você pode fazer algo que seja atraente, não necessariamente chato, nem acadêmico, mas que você ponha as pessoas falando, discutindo. Você dá um tratamento para as entrevistas que elas se tornam quase que uma narrativa. Precisa acabar um pouco os preconceitos dos dois lados. Tanto do pessoal que está na tevê aberta e diz: “Ah, isso aí não dá audiência, é só blá-blá-blá, é só talking head, é gente falando sem parar”, que existe esse preconceito, e também existe o preconceito dos que acham que a tevê aberta não comporta um documentário como esse.


Independentemente da viabilidade comercial, tem uma divisão dentro da própria comunidade profissional que tinha que acabar. Documentário bom é documentário bom. Ponto final. Não tem que ficar: “Ah, quais são as características dele? Passou em tevê aberta é superficial, ou ele é de festival, então é profundo”. Não é necessariamente assim.


O documentário é muito bom, está muito bem amarrado, não cai no maniqueísmo, no discurso que sai na mídia diariamente, muito superficial, muito reducionista.


E.R. – Fico muito gratificado de ouvir isso, porque foi realmente meu esforço. E que também não foi difícil, porque eu tinha todas as correntes, todos os olhares, em forma de entrevistas.


Desde a concepção Ricardo Soares parece ter percebido isso. Tem uma fala dele muito relevante, no finalzinho do episódio de ontem (27/6), em que ele diz: “Tem gente que diz que a Colômbia está em guerra desde a independência”.


E.R. – É a abertura do último bloco da segunda parte.


É a mais pura verdade. A Colômbia independente nunca deixou de ter guerra. É o que mostra Antonio Carlos Peixoto em entrevista dada ao Observatório (clique aqui para ler). É o país mais violento da América do Sul, disparado. E talvez da América toda, porque os Estados Unidos se acertaram depois da Guerra da Secessão, o México depois da Revolução, e a Colômbia não se acerta nunca.


E.R. – A Colômbia ficou aquele nó.


Qualidade e busca de audiência não são incompatíveis


O que o senhor chama de documentário para festival?


E.R. – Eu falo isso porque sou um profissional que me formei na tevê aberta. Aprendi a fazer telejornalismo para a grande massa. Documentário para a grande massa. Isso me deu um olhar, uma preocupação que muitas vezes é interpretada – não preocupação minha, mas de pessoas com esse meu perfil – como se fosse uma tentativa de tornar tudo superficial, e palatável, e fácil. Aí se acabam criando dentro da própria comunidade que faz documentário duas correntes opostas. São pessoas que não entendem, na minha opinião, que para você fazer algo profundo , abrangente, rico, discutir uma questão, você não precisa ser necessariamente chato, não pode abandonar certos compromissos com ritmo, com linguagem, com impacto – você tem que impactar as pessoas para elas poderem continuar… Tem todo um arsenal de instrumentos de linguagem de televisão que você aprende, que podem ser usados justamente para que essa discussão se dê com profundidade, mas também que ela seja atraente, o que a gente chama de segurar as pessoas, que eles fiquem interessadas em ver o próximo bloco. E não existe muito isso na banda de lá dessa comunidade. Aquela postura um pouco assim: vou fazer assim, esse aqui é o meu ritmo, e a pessoa vai ter que entender.


Ou então uma coisa que é muito comum. Às vezes as pessoas disfarçam uma incapacidade de editar com uma coisa que não termina, ou com um formato, ou uma solução de edição que fica chata, repetitiva, não fica estimulante. “Festival” é: o sujeito não tem compromisso com nada a não ser ganhar o prêmio. O trabalho dele não tem que ser analisado por um sujeito que está cuidando de um programa numa grade de programação e tem que saber o seguinte: eu vou passar isso aqui, minha audiência vai cair, vai aumentar, vai se manter, é importante, mesmo com audiência baixa, eu veicular um programa como esse. Essa é a questão que passa pela cabeça de tudo quanto é editor que seja responsável diante de programas a serem exibidos na tevê aberta ou mesmo por assinatura. Quanto falo e festival é o sujeito que faz sem qualquer preocupação em saber se aquilo vai ou não afugentar audiência. E eu, me desculpem, mas eu não consigo fazer nada para televisão sem ter uma preocupação constante de manter o meu telespectador, cuja cara eu não vejo, mas manter essa pessoa que eu imagino que vai se interessar, ligada no programa até o fim.


O senhor usou um bom recurso, aquele doce… Aquilo amarra a pessoa o tempo todo. A gente fica: “Não acabou, não acabou”, e não tem nada a ver diretamente, mas tem tudo a ver, porque é o povo, a cultura.


E.R. – Quando eu vi aquilo ali eu pensei: Meu Deus, isso eu vou ter que usar de alguma maneira. E fui intercalando. No início houve a inserção de uma frase na qual o doce era a metáfora do país. Originalmente eu nem coloquei essa frase, porque achei que aquela seqüência, porque achei que, a partir do momento em que se percebesse o segundo momento, se teria essa reação: Tem uma coisa aqui que está continuando, isso vai ter um desfecho. E que é realmente uma metáfora. É uma coisa meio repugnante, no início, no final a mulher prova um pedaço e faz aquela cara gostosa. Isso é um recurso de linguagem cinematográfica? É. E por que não usar num documentário?


Uma idéia moderna e legítima, porque está falando do povo da Colômbia, que é o protagonista desse drama todo.


E.R. – É uma metáfora pertinente. As pessoas querem fazer uma divisão que não precisa ser feita. É como se fosse “cinema de arte” e o outro. É documentário. O assunto é sensacional, é fortíssimo, muito próximo da gente, nós, o grande público, não conhece muito, só sabe de Farc, alguma coisa assim, guerrilha, Plano Colômbia, que Bogotá ficou mais segura, que Uribe conseguiu diminuir a violência, você tem que pegar esse pessoal. Você não faz para jornalista, nem para cineasta, documentarista, faz para o público.


Excesso de hermetismo pode alimentar preconceitos


Eu diria até que muitos jornalistas deveriam ver, porque eles recaem nesses chavões. A questão da qualidade versus audiência não tem a feição que muitas pessoas simplificadamente imaginam. Veja-se o caso recente da microssérie A Pedra do Reino. Sem entrar no mérito do grau de hermetismo do programa, a Globo concordou em exibi-lo mesmo sabendo, e sabendo com toda a clareza, que era hermético. Que iriam perder audiência. Não precisa ser assim, exatamente, mas a Globo topa, em nome de que, senão de uma busca de qualidade?


E.R. – Não tenha dúvida. Pode ser que no caso dessa microssérie do Luiz Fernando Carvalho a gente tem que botar na conta também um certo prejuízo que a exibição dela causa a essa abertura. Porque fica uma coisa tão inacessível que aí se cria uma barrreira: “Isso aí nunca mais”. Esse tipo de coisa eu lamento.


A questão da qualidade tem a ver com a velha história do interesse público e do interesse do público. Às vezes você fazendo um telejornal, documentário, sabe que aquilo não vai dar uma audiência … Dou um exemplo, o programa recente, que eu soube que teve grande audiência, “Por toda uma vida”, que resgatou a morte do cantor Leandro, um especial. Ibope espetacular para o horário exibido. Muito bem realizado, mas um assunto que é pule de dez. Lembrar a morte do cantor, o drama. Nesse caso você está fazendo aquilo que é do interesse do público. Mas no jornalismo, principalmente, você tem programas e reportagens, ou deveria ter, que não têm audiência, mas tem o compromisso: é importante que sejam exibidos.


É evidente que a questão da audiência é importante, mas, não tenho procuração da TV Globo, não é o único critério. Eu sou testemunha de que não é o único critério.


Se a audiência fosse o único exclusivo critério a TV Globo não manteria padrões elevados, tendo em vista o ritmo da urbanização e o ritmo da disseminação recente de aparelhos de televisão.


E.R. – O que eu acho particularmente muito gratificante neste documentário da Colômbia foi o espaço dado às pessoas falando. Que há um certo pânico, na tevê brasileira, e aí também eu acho que é um exagero da preocupação da audiência, um certo exagero de preocupação com sonoras, ou falas muito longas. Esse programa, pela repercussão que teve, guardadas as proporções, porque a audiência da TV Cultura é muitíssimo menor que a da Globo, mas ele mostra que as sonoras, as entrevistas, bem usadas, na medida, com a respiração que têm que ter, também são atraentes. Isso é gratificante. É um pouquinho de “jeito BBC” de fazer aqui no Brasil. Porque o mergulho que o Ricardo Soares e a equipe da TV Cultura deram é, de certa maneira, o padrão BBC de mergulhar nos assuntos.